O Rio Grande do Norte tem na sua história alguns exemplos de pessoas geniais, que desenvolveram coisas super interessantes, como foi o caso do Professor Nicanor, conhecido como o homem que criou um carro movido a água. Antes dele um jovem de 16 anos de Ceará-Mirim criou uma arma de fogo que chamou muita atenção em Natal.
No Rio Grande do Norte, e eu sei porque nasci e vivo aqui, é muito raro, mas muito raro mesmo se valorizar alguém pela criatividade, pela capacidade de desenvolver algo inovador, algo novo e diferenciado. Aqui a valorização das pessoas a intensamente por duas situações: ser rico, ou político (Melhor ainda se for as duas coisas).
Mas como rico de verdade por aqui é algo bem raro, sobra então toda uma classe de políticos da qualidade mais baixa, ridícula, onde sobra esperteza, quase nenhum respeito pela função pública e seus eleitores, além de possuírem um extremo e elevado nível de vaidade. ATENÇÃO – Vale ressaltar que é você que está lendo esse texto o grande culpado por isso acontecer, ao votar em gente que não presta. Mas isso é outra História!
Aqui em terras potiguares quando eu era garoto eu ouvi muito falar do Professor Nicanor, o homem que criou um carro movido a água. Com o tempo descobri que ele era um engenheiro formado aqui mesmo no Rio Grande do Norte, na antiga Escola de Engenharia, cujo nome era Nicanor de Azevedo Maia e se tornou professor do curso de Mecânica Aplicada do Centro de Tecnologia da UFRN.
Não é que o carro fosse movido exclusivamente a água, mas dela o Professor Nicanor buscava extrair o hidrogênio para com isso gerar o combustível para fazer um carro rodar. Ele até comprou um veículo para os testes, rodou aqui pela região, esteve em São Paulo mostrando essa tecnologia e foi até notícia em revista de alcance nacional.
Mas aí, por razões que desconheço, o projeto parou. O que não parou foi a boataria amalucada sobre a razão para o fim dessa ideia…
Quando garoto escutei pessoas que iam até a loja do meu pai no bairro da Ribeira dizer que “mandaram Nicanor se calar”, que “ele parasse aquele serviço, pois senão poderia ser morto”. Tudo isso porque seu trabalho “não era bem visto pelos militares que estavam no poder”, que o “Professor Nicanor estava atrapalhando a Petrobrás”. Inventaram até a história de um certo “galegão”, um tal de um “polonês”, que estava por aqui pela terrinha para acompanha o fim do projeto, ou “as consequências poderiam ser trágicas”.
Mas pessoas com a capacidade inventiva como a do Professor Nicanor sempre existiram aqui no Rio Grande do Norte e um deles chamou a atenção da nossa imprensa décadas antes do “homem que criou um carro movido à água”.
Em novembro de 1912 um jovem de 16 anos chamado José Moreira veio da bela cidade de Ceará-Mirim até Natal. Trazia consigo uma arma de fogo de cano longo e seguiu até a redação do tradicional jornal A República, o mais importante do Rio Grande do Norte na época e que funcionava na Rua Dr. Barata, na Ribeira. Provavelmente ele deve ter sido recebido pelo então gerente José Pinto.
O jornal não indica se o jovem se envolveu em alguma confusão com a polícia por trazer essa arma para Natal, até porque esse era um tempo onde ainda existiam bandos de cangaceiros e onças pelo interior do Nordeste e se comprava armas de fogo até em lojas de secos e molhados sem maiores problemas.
Para o pessoal da redação a arma imitava um modelo Winchester, da renomada fábrica de armas de repetição acionada a alavanca, manufaturada nos Estados Unidos e conhecida como a “Arma que conquistou o western”. A mesma que nos acostumamos a ver em milhares de filmes de cowboys.
Para os jornalistas de Natal a Winchester do jovem José Moreira de Ceará-Mirim foi “confeccionada em todas as suas peças na mais acurada perfeição”. Não foi informado o calibre da arma.
Mas onde o jovem José poderia fabricar uma arma como essa em Ceará-Mirim? Acredito que isso não foi problema, pois na mesma época se desenvolvia uma mecanização mais intensa dos tradicionais e importantes engenhos de cana-de-açúcar na região. Além disso a Estrada de Ferro Central estava em franco desenvolvimento desde 1904 e o que não faltavam por ali eram forjas, ferreiros, bigornas e outros equipamentos para se criar esse tipo de armamento. Além disso, sabemos que trabalhando nessas atividades estavam pelo nosso estado vários artífices estrangeiros especializados, oriundos principalmente da Espanha e da Itália, com muitos dos seus descendentes vivendo por aqui até hoje.
Antiga casa de engenho em Ceará-Mirim – Foto – Ricardo Morais.
Temos a notícia que dias depois da apresentação na sede de A República, o artefato de José Moreira foi testado pelo tenente Luiz Júlio, da Força Pública do Estado. O militar fez vários disparos em um local não especificado e considerou a arma “muito boa”, de “ótima qualidade”, além de “certeira”. Naquele mesmo ano Luiz Júlio ganhou muita fama no estado por comandar volantes contra o bando do cangaceiro Antônio Silvino.
Então nada mais aconteceu!
Não encontrei mais uma única vírgula sobre o jovem ceará-mirinense de 16 anos e sua inusitada arma de fogo, ou algum registro fotográfico.
Pelo menos o Professor Nicanor, mesmo que isso não fosse o desejo dele, ainda teve alguns “minutos de fama” a nível nacional. Já o jovem José Moreira nem a isso teve “direito”. Imagino que o rapaz deve ter recebido vários elogios, tapinhas nas costas, enaltecimentos sobre a sua inteligência e depois foi mandado de volta para Ceará-Mirim para tocar sua vida simples de jovem trabalhador. Quanto à sua capacidade inventiva, essa era dispensável e, sabe Deus, o rumo que a sua vida tomou.
Aliás, esse tipo de situação por aqui é algo bem comum até hoje!
É ponto praticamente ivo a afirmação que o maior bandoleiro da história do Brasil foi Virgulino Ferreira da Silva, o conhecido Lampião.
Já nos Estados Unidos este título vai certamente para Jesse Woodson James, o Jesse James.
Para muitos este bandoleiro ganhou reconhecimento como um guerrilheiro, o último rebelde da Guerra Civil Americana, um símbolo que trouxe esperança para aqueles que ainda acreditavam na causa dos estados do Sul dos Estados Unidos. Mas para outros ele foi tão somente um assaltante de bancos, trens e carruagens, além de um impiedoso assassino a sangue frio.
Jesse Woodson James
Apesar de serem pontos de vista divergentes, ambos são verdadeiros.
Embora seja verdade que grande parte da história de Jesse James é puro mito, também é verdade que muito do que se sabe sobre esta figura é baseada em fatos reais. Mas com a ficção e a realidade agora enredada – é quase impossível separá-los.
Então, quem era Jesse James?
O Homem e Sua Guerra
Jesse Woodson James nasceu em 5 de setembro de 1847. Era filho de um pastor que morreu quando ele tinha apenas dois anos, e de uma mãe de personalidade forte, Zerelda, que se tornou a matriarca da família. Ele foi criado em um ambiente extremamente escravocrata, onde negro era comparado a um bicho de carga e consta que sua família tinha orgulho do sistema escravista. Morava em uma propriedade perto da cidade de Kearney, no estado do Missouri. Tinha um irmão mais velho chamado Frank, que com ele pegaria em armas, e uma irmã mais nova, Susan, e quatro meio-irmãos, frutos de um novo casamento de sua mãe com o Dr. Ruben Samuels.
Zerelda James – Casada com Robert James aos 16 anos, viúva aos 25, a mãe de Jesse, Zerelda, casou-se novamente aos 30 com o Dr. Reuben Samuel. Ela era uma figura dominante, uma feroz separatista com nervos de aço, uma língua dilacerante e um intelecto vigoroso.
Na época que Jesse James nasceu o seu mundo era extremamente maculado pela violência. Em 1850 o Missouri era um estado onde guerras de fronteira com os habitantes do vizinho estado do Kansas eram normais e tornou a vida muito perigosa para os que viviam no oeste do Missouri – vizinhos lutaram contra vizinhos e cada ataque brutal ocasionava ainda mais represálias brutais.
Mas o problema não era apenas com os vizinhos do Kansas. O Missouri era um estado com muitas facções armadas, mantidas por ricos fazendeiros, os “coronéis” deles, que lutavam por terra, dinheiro e poder. Ninguém foi poupado. Apenas arar seu campo poderia trazer a morte – e a noite não era difícil alguma casa ser queimada e o gado de algum proprietário ser roubado ou abatido a tiros. Mas também ocorriam contínuas batalhas internas e conflitos de fronteira por parte de pessoas que eram contra a escravidão – chamados de “Jayhawkers” (os nossos abolicionistas), que lutavam contra aqueles que eram pró-escravidão, chamados “Bushwhackers”. Sobre todos os aspectos, era um prelúdio sinistro e localizado do que seria a futura Guerra Civil Americana, ou Guerra da Secessão.
Fazenda da família James em 1877.
Quando o grande conflito entre os estados do norte e do sul dos Estados Unidos oficialmente estourou, em 12 de abril de 1861, muitos habitantes do Missouri deixaram suas terras para lutar pelo exército do Sul, os chamados Confederados. Estes estavam com medo que suas famílias e propriedades fossem atacadas pelas forças da União, os do Norte. Para evitar isso, milícias armadas foram criadas para proteger os que ficaram. Frank James juntou-se a um destes grupos de proteção em 1861.
Um dos líderes desses grupos era um jovem de 24 anos chamado William Quantrill. Este organizou várias centenas de homens sob a sua liderança, oferecendo seus serviços para a Confederação. Eles foram empossados em serviço no ano de 1862 e foram reconhecidos como uma parte importante da causa do Sul no Missouri (este reconhecimento é causa de extremas controvérsias até hoje nos Estados Unidos).
William Quantrill
Valente, astuto, um verdadeiro guerrilheiro, mas igualmente um sanguinário, William Quantrill e seus homens realizaram diversos ataques em várias localidades. Muitos de seus combates eram para a defesa dos habitantes do Missouri, mas muitas outras de suas ações não aram de carnificina em massa, roubo desenfreado, estupros em quantidade e destruição massiva de patrimônio. O mais famoso (ou infame) sucesso de Quantrill ocorreu na madrugada de 21 de agosto de 1863, quando seu grupo composto por mais de 300 homens, realizou um ataque contra a cidade de Lawrence, Kansas. Quando eles terminaram, mais de 150 habitantes foram mortos, 200 casas e empresas estavam destruídas. Frank James estava na incursão a Lawrence.
O ataque a Lawrence, Kansas, em 21 de agosto de 1863, foi a pior atrocidade contra civis na Guerra da Secessão.
Em represália as ações de guerrilha de Quantrill, as milícias pró-União invadiram as propriedades das famílias dos membros do bando, incluindo a fazenda da família James.
No sertão nordestino de Lampião, nas décadas de 1920 e 1930, quando a polícia (em grupos conhecidos como volantes) realizavam perseguições aos cangaceiros, não tinham nenhuma piedade para conseguir informações junto aqueles que acreditavam ajudar estes bandoleiros nordestinos (os chamados coiteiros). Sessenta ou setenta anos antes, a família de Jesse James sofreu da mesma maneira nas mãos das milícias pró-União. Um dos meio irmãos do futuro bandoleiro quase foi enforcado para abrir alguma informação sobre Frank. O próprio Jesse foi chicoteado impiedosamente e sua mãe Zerelda apanhou bastante, mesmo estando grávida. Consequentemente Jesse, então com 16 anos, ou a andar com Quantrill e mais tarde com o seu sucessor, Willian “Bloody (sangrento) Bill” Anderson. Este último era conhecido por cortar as cabeças de seus inimigos com uma típica espada de pirata e levava os escalpos de muitas de suas vítimas em seu alforje.
Em Combate
Em agosto de 1864 Jesse estava com os guerrilheiros, quando ele foi baleado no peito, mas salvou-se e logo voltou à luta. Ele levou esta bala em seu corpo para o resto de sua vida. Em um ataque à cidade de Centralia, no Missouri, o bando de Bloody Bill Anderson matou 25 soldados da União desarmados e roubaram seus uniformes. Mais tarde uma tropa da União ao saber o que aconteceu, saiu em busca de Bill e seus homens. Quando eles foram encontrados, os guerrilheiros mataram mais de 100 dos seus perseguidores, em uma bem montada emboscada. Jesse foi identificado como aquele que matou o comandante dos soldados.
William “Bloody Bill” Anderson – Foi um chefe guerrilheiro cuja campanha de terror ao longo do rio Missouri em 1864 é amplamente considerada uma das mais brutais da história americana. Jesse James o seguiu durante essa época e nos anos posteriores falou com orgulho da filiação a esse homem.
Este seria o maior engajamento da carreira de Jesse como um guerrilheiro confederado. Dois meses após esta batalha, Bloody Bill foi morto em uma emboscada. Os dias dos guerrilheiros foram chegando ao fim, com muitos dos irregulares fugindo para os estados da Louisiana e Texas. Após a morte de Quantrill, os seus homens ou foram capturados, fuzilados, ou fugiram, incluindo neste último grupo Frank James.
Jesse James como um jovem guerrilheiro. Esta foto foi tirada em Platte City, Missouri, em 10 de julho de 1864, mostra o bandoleiro aparece com três revólveres modelo Colt Navy.
Enquanto Frank tinha ido para Kentucky, Jesse seguiu para o Texas, onde ficou até 1865. Após um tempo nesta inatividade, Jesse e alguns outros guerrilheiros decidiram voltar para o Missouri e se entregar. No caminho alguns soldados da União abriram fogo sobre eles e, pela segunda vez, Jesse foi baleado no peito. O ferimento era grave e ele foi levado para a casa de um tio, onde recuperou a saúde com a ajuda da prima Zee Mimms, por quem se apaixonou. Eles iriam se casar nove anos mais tarde.
O Guerrilheiro que se Transformou em Fora da Lei
Ressentimentos políticos, juntamente com dificuldades econômicas no Missouri, acrescentaram novas feridas a velhos problemas. Jesse e Frank James poderiam ter seguido para sua casa e objetivado levar uma vida pacífica, como fez a maioria dos outros guerrilheiros. Mas depois de uma vida tão “emocionante”, os dois irmãos logo se juntaram com alguns antigos guerrilheiros e começaram suas carreiras criminosas.
O líder guerrilheiro do Missouri Fletch Taylor (à esquerda), que mais tarde perderia seu braço direito, era o oficial comandante de Jesse James em 1864 antes dos James se juntarem ao grupo de “Bloody Bill” Anderson. Frank (no centro) e Jesse (direita) posaram para a rara foto em abril de 1864.
Salvo engano, Lampião ou 20 anos como cangaceiro, já Jesse e Frank James estiveram de armas na mão por 16 anos. Tal como Lampião, não se sabe quantos crimes os irmãos James cometeram, mas uma vez que eles tinham alcançado alguma notoriedade, foram acusados de mais assassinatos e roubos do que poderiam ter realmente cometido. Coisas da fama!
Mas se Lampião visava atacar principalmente as casas dos proprietários rurais, onde ficavam suas economias pela falta de casas bancárias no sertão nordestino, nos Estados Unidos eram os bancos o principal alvo dos irmãos James.
Acredita-se que o primeiro banco que eles roubaram foi na cidade de Liberty, Missouri. O fato ocorreu em fevereiro de 1866, o bando tinha cerca de 12 homens, que entraram na cidade tranquilamente montados em seus corcéis. Deixaram o estabelecimento bancário com quase 60.000 dólares e dispararam contra dois espectadores, matando um. Outros roubos semelhantes ocorreram no Missouri e em estados vizinhos entre 1866 e 1867. Logo os irmãos James, juntamente com seus primos, os Youngers, são apontados como suspeitos dos assaltos. O bando a a ser conhecido como quadrilha dos James/Youngers.
Jesse e Frank James
Qualquer que fosse a dúvida de que os James estavam envolvidos em assaltos a bancos, esta foi eliminada quando roubaram o Banco Davies, na cidade de Gallatin, Missouri, em dezembro de 1869. Depois disso, seus nomes, com recompensas por suas cabeças, seriam ligados a crimes no Missouri e em outros lugares.
Jesse entrou neste banco e pediu a John Sheets, um ex-capitão do exército União, caixa e principal proprietário do banco, para trocar uma nota de 100 dólares. Quando este se sentou para escrever o recibo, Jesse percebeu que aquele era um ex-oficial do Norte e, sem pestanejar, atirou na sua cabeça e no coração. Apesar de dois outros assaltantes terem disparado contra um funcionário do banco, este conseguiu escapar e alertou a cidade.
Jesse James
Seus habitantes se posicionaram e, como quase todo mundo no velho oeste tinha uma arma de fogo, dispararam impiedosamente sobre o bando na medida em que estes saiam do banco e tentavam pegar seus cavalos. Ao montar em seu alazão, Jesse James caiu e foi arrastado por cerca de 40 metros antes que pudesse retirar o pé do estribo. Ele então subiu na garupa do cavalo de Frank e fugiram. Só depois conseguiu tomar outro cavalo de assalto.
Logo a imprensa estampou que o assassinato do ex-oficial da União Sheets, teria sido uma “vingança política” e muitos sulistas aprovaram o assassinato cometido por Jesse.
O Nascimento de uma Lenda
Embora os membros da quadrilha dos James/Youngers afirmassem aos quatro ventos que roubavam dos ricos para dar aos pobres, não há registro de que eles tenham dado algo a alguém. O mais próximo disso foi pagando aos que os apoiavam durante suas fugas.
A quadrilha dos James/Youngers
A quadrilha então volta a sua atenção para outra fonte de dinheiro – as ferrovias. Eles atacaram o seu primeiro trem em uma noite de julho de 1873, em Iowa. A quadrilha também roubou diligências. Eles provavelmente teriam assaltado postos de gasolina e lojas de conveniência, se estas existissem na época.
Apesar de ser oferecido cada vez mais dinheiro pelas cabeças dos membros da quadrilha dos James/Youngers, eles seguiam tranquilos. Entre os roubos, os irmãos James se escondiam nas cidades médias e grandes. Jesse e Frank viveram em vários locais, junto com as suas respectivas famílias. Jesse e Zee Mimms tiveram um filho e uma filha. Frank também se casou e de sua união nasceu um filho. As duas famílias unidas, ajudavam os irmãos James a se esconderem nas áreas urbanas.
Jesse era vaidoso com sua aparência, fumava charutos e raramente bebia qualquer coisa alcoólica mais forte do que a cerveja. Apesar de algumas madames contestarem esta versão, consta que ele nunca traiu a mulher e jamais levantou a voz com crianças. Ele tinha duas marcas de balas no peito, outra na coxa e faltava um pedaço do seu dedo médio esquerdo. Ele também tinha um pé esquerdo ligeiramente torcido. Afirma-se que era canhoto, tinha uma voz de contralto. Lia a bíblia, podia recitar salmos e poderia cantar hinos religiosos se quisesse. Consta que nunca se arrependeu de seus roubos, ou de seus muitos assassinatos. Ele tinha uma grande necessidade de atenção, poderia ser muito gentil, muito educado e era bem versado sobre os acontecimentos do seu tempo.
Livros publicados no final do século XIX sobre Jesse James
Jesse e Frank James estavam nas páginas dos jornais de todo o país. Mas foi o jornalista John Edwards, um ex-oficial da Confederação, escritor e editor de vários jornais depois da guerra, que viu em Jesse uma oportunidade de criar um ponto de encontro para a oposição à opressão que os antigos militares do Sul sofriam daqueles que estavam no poder. Edwards tornou Jesse o símbolo de uma causa perdida.
Jesse gostava de seu novo status, tornando-se obcecado com sua imagem pública. Ele leu jornais e muitas vezes escrevia cartas para os jornalistas e até mesmo chegou a planejar assaltos com base em sua percepção da reação do público. Com a contínua campanha de propaganda, Jesse se tornou um herói para muitos.
O Fim da Gangue James/Youngers
Os homens da famosa agência Pinkerton, de caçadores de bandidos, foram chamados várias vezes para capturar os membros da gangue James-Younger e não conseguiram. Em represália, numa noite de janeiro de 1875, várias bombas incendiárias foram lançadas na tradicional casa da fazenda da família James. Uma meia irmã de Jesse e Frank morreu e sua mãe Zerelda perdeu a mão.
Fazenda da família James, mantida totalmente original
O ataque pensado pelos agentes Pinkerton foi um fracasso, além de realizarem uma ação contra uma família indefesa, provocaram a morte de uma criança inocente, o que automaticamente trouxe simpatia e o apoio a quadrilha dos James/Youngers. Então veio o notório assalto ao banco em Northfield, Minnesota, em setembro de 1876.
Oito membros da gangue entraram na cidade, três ficaram em seus arredores, três entraram no First National Bank e dois ficaram do lado de fora. Quando o caixa do banco se recusou a abrir o cofre, sua garganta foi cortada e, em seguida, ele foi baleado – muito provavelmente por Jesse. Outro caixa fugiu para soar o alarme entre os moradores de Northfield. A rua foi imediatamente liberada pelos transeuntes e os habitantes da cidade começaram a atirar nos bandidos. Dois deles morreram, juntamente com um civil, e o resto da quadrilha fugiu.
Armas que pretensamente pertenceram a gangue James-Younger, em uma exibição na década de 1920.
Foi organizada uma caçada humana para rastrear os bandidos em fuga, esta acabou matando outro marginal e capturando Cole, Jim e Bob Younger. Jesse e Frank escaparam. O assalto foi um grande fracasso – três homens morreram, três foram presos (depois receberam sentenças de prisão perpétua), dois escaparam e nenhum dinheiro foi levado.
Hollywood aproveitou este fracasso do bando James/Younger na película “The Long Riders”, de 1980 (No Brasil foi intitulado “Cavalgada de Proscritos”), onde a cena deste assalto, apesar de certos exageros em relação ao fato real, é visualmente intensa (Veja a cena – http://www.youtube.com/watch?v=vr0MlCjzJak)
Bill Stiles e Clell Miller, do bando dos irmãos James, mortos no assalto de Northfield. Seus corpos foram fotografados em um estúdio. Embora pareça sombrio para os tempos atuais, fotos de bandidos mortos ou capturados e divulgados como lembranças. Isso também serviu ao propósito prático de ajudar em sua identificação.
A Morte de Jesse James por um Covarde
Depois de algum tempo, Frank decidiu sair do grupo e se aposentar. Já Jesse buscava montar um novo bando para continuar roubando por mais alguns anos. Mas os tempos e a política começaram a mudar. A eleição de Thomas T. Crittenden para governador do Missouri em 1880 foi o começo do fim para Jesse.
Na esperança de manter o grupo vivo, Jesse convidou os irmãos Robert (ou Bob) e Charles Ford para participar de um assalto ao banco da localidade de Platte City. Entretanto os irmãos já tinham decidido não participar de roubo algum, mas receber a recompensa de 10.000 dólares pela cabeça de Jesse. Ação que era patrocinada pelo governador Crittenden.
Robert Ford
O governador prometeu aos irmãos Fords um perdão completo pelo ado de crimes, mas eles teriam de matar Jesse, que era então o criminoso mais procurado dos Estados Unidos. Crittenden tinha elegido a captura dos irmãos James como sua prioridade política. Barrado por uma lei que não autorizava o oferecimento de uma recompensa vultosa pela captura de bandidos, o governador buscou apoio nas estradas de ferro e estes lhe cederam os 10.000 dólares.
Foto recentemente apresentada, que mostra Robert Ford (à esquerda) e Jesse James. A foto mostra o notório fora da lei americano e seu infame colega de gangue, que o trairia em troco da recompensa, matando-o a tiros em 1882. Ela pertence a uma família de fazendeiros do Texas, transferida de geração em geração. Eles aram os últimos anos tentando provar que era legítima. A legista Lois Gibson, do Departamento de Polícia de Houston, confirmou sua autenticidade em 30 de setembro de 2015. Ela pode render muito dinheiro para a família.
Em 3 de abril de 1882, os irmãos Ford estavam junto com Jesse e sua família – a respeitável família Thomas Howard – em uma casa em Saint Joseph, Missouri. Depois de tomar café da manhã, os Fords e Jesse James entraram na sala de estar em preparação para a viagem para Platte City. De acordo com Robert Ford, tornou-se claro para ele que Jesse tinha percebido que ele e seu irmão estavam lá para matá-lo.
Desenho mostrando o assassinato de Jesse James por Robert Ford
No entanto, em vez de xingar ou matar os Fords, Jesse atravessou a sala de estar, colocou seus revólveres em um sofá e depois subiu em uma cadeira para tirar a poeira de um quadro. Bob Ford vendo a oportunidade, tirou o seu revólver calibre 44 do coldre, apontou-o para a parte de trás da cabeça de um homem desarmado e puxou o gatilho. Jesse ouviu o barulho do engatilhamento da arma e foi virando a cabeça, quando a bala o atingiu.
Casa onde Jesse James foi morto, hoje um museu.
Após o assassinato, os Fords foram ao encontro do governador Crittenden para reivindicar sua recompensa. Eles se entregaram às autoridades legais, mas ficaram consternados ao descobrirem que foram acusados de assassinato em primeiro grau. Em um dia, os irmãos Ford foram indiciados, se declararam culpado e foram condenados à morte por enforcamento. Duas horas depois, Crittenden lhes concedeu um perdão completo. Apesar do acordo, os irmãos Ford receberam apenas 500 dólares, uma fração do dinheiro originalmente prometido.
O corpo do bandoleiro Jesse James.
Por um tempo Bob Ford ganhou dinheiro posando para fotos como “o homem que matou Jesse James”. Junto com seu irmão reencenaram o assassinato em um espetáculo por várias cidades. Mas o desempenho dos Fords não foi bem recebido. A maneira como Bob havia assassinado Jesse James, enquanto ele estava de costas e desarmado, trouxe muitas inimizades em diversas cidades onde o espetáculo foi realizado.
Com tuberculose e viciado em morfina, Charles Ford se suicidou em 4 de maio de 1884. Quase dez anos depois do assassinato de Jesse James, no dia 8 de Junho de 1892, Robert Ford era dono de um saloon em Creede, no Colorado, quando foi morto com dois disparos de uma espingarda calibre 12 no peito. O assassino foi um homem que aparentemente tinha problemas mentais e desejava ficar famoso como “o homem que matou o homem que matou Jesse James”.
Vejam que ser famoso já não era fácil desde aquela época!
Propaganda de um show onde as atrações principais eram Frank James e seu primo Cole Younger
Propaganda de um show onde as atrações principais eram Frank James e seu primo Cole Younger
Depois que Jesse foi morto, seu irmão Frank se entregou às autoridades em 1882. Ele foi julgado e absolvido por um júri simpático. Nos últimos trinta anos de sua vida Frank trabalhou em vários empregos, inclusive como vendedor de sapatos e, em seguida, como um guarda de teatro em St. Louis. Durante algum tempo, junto com seu primo Cole Younger, participaram de shows itinerantes onde apresentavam as suas aventuras do ado. Em seus últimos anos, Frank James voltou para a tradicional fazenda da família James. Ele morreu em 18 de fevereiro de 1915, com a idade de 72 anos.
Legado – Jesse James, um Ícone da Cultura Pop
Tal como ocorreu com Lampião no Brasil, tão rapidamente quanto os jornais anunciaram a sua morte, rumores da sobrevivência de Jesse James proliferaram. Alguns disseram que Robert Ford matou alguém parecido com Jesse, em uma trama elaborada para permitir-lhe escapar da justiça. Estes contos têm recebido pouca credibilidade e nenhum dos biógrafos deste bandoleiro famoso apoiaram as versões de sobrevivência como plausível.
Cartaz origina oferecendo uma recompensa pelos irmãos James.
Nos Estados Unidos já foram rodados mais de 70 filmes e programas de TV sobre Jesse, ou incluindo Jesse, e a saga cinematográfica deste fora da lei é longa. O primeiro filme sobre ele foi feito em 1920 e estrelado por seu filho, Jesse James Jr. Mais recentemente, Brad Pitt interpretou o fora da lei em “O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford”. Houve também várias apresentações de palco. Jesse James também foi o herói em muitos romances baratos e objeto de vários livros e inúmeros artigos.
Tal como Lampião no Brasil, Jesse James continua a ser um símbolo controverso, que sempre pode ser reinterpretado, de várias maneiras, de acordo com as tensões e necessidades culturais.
O cangaceiro é personagem marcante no cinema brasileiro, ligado a uma dada mitologia do sertão e a uma perspectiva regional. Associado ao filme de cangaço, reapropriação do western, mereceu poucas representações em cinematografias estrangeiras e por isto causa surpresa a produção, na Itália de 1970, do filme O cangaceiro,de Giovanni Fago, que pretendemos analisar à luz de algumas interfaces com elementos da cultura brasileira. Consideramos a dupla apropriação do gênero (western, filme de cangaço, western spaguetti), e as atualizações temáticas, pensando as transgressões aos modelos canônicos, a partir de uma singular absorção de conteúdos historicamente definidos.
Como traduzir para o italiano a expressão “Olê, muié rendera”, tema musical do filme O Cangaceiro e canção popular do folclore nordestino? Foi esta estupefação de minha amiga napolitana naturalizada que me deu as coordenadas iniciais deste texto. Para chegar a Ciao merlettá ela me descreveu todo o percurso dessa transcodificação linguística: “Olê” seria “ciao”, “salve”, e “rendeira” é “merlettaia”: Ciao merlettaia, ciao merlettà…? O “ciao”, que em italiano significa “salve” (“oi”) e “arrivederci” (“até logo”), era muito usado em músicas populares ligadas ao trabalho ou à guerra: “Bella ciao”,“Ciao amore ciao“. O “merlettà” seria um neologismo, aceitável porque é possível cortar a sílaba final de uma palavra desse jeito, sobretudo num italiano mais popular.
Essa explicação me serve como uma luva, porque na verdade estou lidando com transferência de códigos, intertextualidades, adaptação, remake. E me serve porque aqui temos um procedimento usual neste gênero de operação de linguagem: aproximamos sentidos, imaginamos associações, sintetizamos ou ampliamos conceitos, montamos correspondências. Tudo em nome de estabelecer uma relação de contato, diacrônica ou sincrônica, com um fato original de cultura no momento de transpô-lo a outro sistema de referências. Pois esta introdução certamente localiza nosso assunto, uma reflexão assistemática sobre o filme O Cangaceiro. Não o original escrito e dirigido por Lima Barreto, com diálogos de Rachel de Queiroz, realizado em 1953 e produzido pela Vera Cruz. Não este, premiado em Cannes como melhor filme de aventura e também como melhor trilha sonora – o clássico “Muié Rendera” – interpretado por Vanja Orico e com coro dos Demônios da Garoa, um filme que teve ampla circulação internacional.
Cartaz de um dos filmes de western dirigidos pelo italiano Giovanni Fago
Estaremos falando de outro O Cangaceiro, seu sucedâneo italiano, filmado em 1970 por Giovanni Fago, chamado de Viva Cangaceiro nos Estados Unidos, com locações na Bahia e temática associada ao gênero cinematográfico inventado no Brasil, o nordestern. É ele que nos leva a pensar na questão do remake, no universo expressivo do filme de cangaço e suas apropriações e finalmente no que este filme em particular evoca.
O remake, ou refilmagem, faz parte do universo das interfaces com obras pré-existentes, onde cabem também a adaptação, a referência e a alusão. Em sua proporção industrial, o remake é associado à serie, à continuação ou ao ciclo, a domínios expressivos no interior de uma obra ou na serialização de produtos, temas ou estilos. Um campo determinado por um sistema de repetições, já institucionalizado, que integra procedimentos ligados ao universo legal, de direitos e plágios, ou referencial, de citações e iterações. Constantine Verevis se debruça sobre o assunto, e é de seu livro Film remakes que vêm as principais considerações aqui apresentadas.
Citando outros estudiosos, ele identifica três marcas para o remake: a de uma categoria industrial, que lida com assuntos de produção, que envolve estruturas de comércio e negociação de direitos; a de uma categoria textual, que lida com taxonomias e textos, enredos e estruturas; e finalmente a de uma categoria crítica, que lida com recepção, incluindo públicos, com seus processos de reconhecimento e com a consolidação de um discurso institucional. Mas é o uso da variação e da diferença (em relação aos originais) que vai levar a outras categorizações, estabelecidas por Michael Druxman e desenvolvidas por Harvey Roy Greenber: a) a refilmagem estrita, identificável; b) a refilmagem identificável, mas transformada; e c) a refilmagem não identificável, disfarçada (apud Verevis, 2006: 7). As leituras avançam por esse caminho tortuoso, com variações sobre a similaridade entre obras, a tensão entre inovação e imitação, empréstimos, autoria, questões de autenticidade e de referencialidade, homenagem, imitação ou roubo.
Mas não cabe aqui apenas articular conceitos. O que finalmente encontramos é a perspectiva, também rarefeita, de uma estética da diluição, na qual elementos de variadas formas culturais se dissolvem em outros, de maneira indefinida e inconstante, integrando- se ao universo da nova obra gestada. É de uma espécie de solução química que estamos falando aqui, dispersões que montam um sistema homogêneo, inseparáveis do dispersante. O resultado desta operação, entretanto, nem sempre é líquido e transparente. Como em qualquer obra de cinema, aliás.
A ira de Deus
O que motivou Giovanni Fago naquele longínquo 1970 a se debruçar sobre os cangaceiros foi a ideia de que eles eram “bandidos políticos”, ou seja, não apenas ladrões, mas rebeldes com posição firmada contra os latifundiários. Segundo o autor, o filme define-se, assim, pela escolha ideológica de seu objeto: uma posição política forte contra a colonização e o imperialismo. Obviamente ele já conhecia O Cangaceiro, de 1953, grande sucesso comercial na época, assim como alguns filmes do Cinema Novo. Fago argumenta que sua intenção não era fazer uma “releitura comercial” desse fenômeno, até porque respeitava certas características da cinematografia brasileira, a qual, primitiva na aparência, era, na verdade, dotada de grande refinamento e inteligência, animada por forte tensão política e impulso à rebelião. Um cinema que correspondia a suas convicções políticas e sociais, frente aos conflitos da América Latina. 1 Porém, o que define objetivamente o projeto de produção é a aquisição dos direitos da canção do velho filme O Cangaceiro.
Essa perspectiva comercial vai ser um dos únicos elementos de ligação entre a produção italiana e uma larga tradição brasileira de filmes de cangaço. Há toda uma linha de parentesco sustentando esta arquitetura, que começa nos filmes de cowboys, no bangue-bangue, nos filmes de faroeste.
Se o western – considerado o cinema americano por excelência num texto de André Bazin, publicado em 1953 (Bazin, 1991: 204) – sofreu contaminações ageiras, o que, segundo ele, não deve ser lastimado, também resistiu, mantendo os símbolos e signos que o fizeram mitológico. O cenário, a paisagem, a cavalgada e a briga, as referências históricas, “o grande maniqueísmo épico que opõe as forças do Mal aos cavaleiros da justa causa”, a Mulher em sua relação com a Virtude, até mesmo os cavalos, são todas marcas pelas quais se expressa uma ética da epopeia e mesmo da tragédia. Marcas que geram um estilo de mise-en-scène e transparecem numa composição da imagem, os grandes planos de conjunto, a quase abolição do primeiro plano, o travelling e a panorâmica que “negam o quadro da tela e restituem a plenitude do espaço” (Bazin, 1991: 206). Um gênero dotado de situações excessivas, de exagero dos fatos e de uma inverossimilhança ingênua, fundado, entretanto, numa moral que o justifica.
Cartaz do filme brasileiro O Cangaceiro, de Lima Barreto
Diluindo-se pelo mundo, o western a pelo Brasil, onde assume a forma do filme de cangaço, tematizando elementos da história local e acrescentando uma tintura cultural própria. O Cangaceiro, de Lima Barreto, é a matriz que vai moldar um longo ciclo que se condensa entre os anos 1950 e 1970, com tonalidades diversas, que vão do filme de aventuras à comédia erótica e que promove um retorno pós-modernizado na virada do milênio. 2
Walnice Nogueira Galvão (2005) associa o fenômeno da sertanização, no qual o representante mais marcante é o cangaceiro, ao regionalismo literário dos anos 1930, às artes plásticas do expressionismo social e engajado dos anos 1940 e ao faroeste americano, como de praxe, bem como a uma certa composição gráfica do cinema mexicano, com suas paisagens desérticas, seus cactos na caatinga, o gado à solta tocado por cavaleiros de sombreros. Rica iconografia calcada no inacabado Que Viva México, de Eisenstein, e suas contrafações. 3 Um circuito de referências que a obrigatoriamente por Elia Kazan e seu Viva Zapata de 1952, e chega ao western de Lima Barreto, rodado em Vargem Grande do Sul, no interior de São Paulo, com seu contrastante preto e branco, sua luz ofuscante, seu emblemático contraluz dos cangaceiros no pôr do sol, quando o cangaço vira pura mitologia, depois de desaparecido do mundo social desde a década de 1940, com a morte de Corisco.
O Cinema Novo vai retomar o imaginário sertanejo do western, relido numa tecla nacional e popular, e vai ainda segundo Walnice Galvão, ressemantizá-lo num arco cinematográfico em vários segmentos. O primeiro segmento era aquele temporalmente próximo ao golpe militar e aí estará o também emblemático Deus e o diabo na terra do Sol, junto com Vidas secas, Os fuzis e A hora e a vez de Augusto Matraga, certamente o conjunto mais visitado e seguramente, o mais próximo do olhar de Giovanni Fago. O dragão da maldade contra o santo guerreiro, anos depois, completa o grupo (Galvão, 2005: 87).
Cartaz da película Deus e o diabo na terra do sol, de Gláuber Rocha, de 1964
Glauber já preconizara, em 1957, a autonomia do cinema perante as outras manifestações artísticas, assim como Bazin, em 1953, caracterizara o western como “filho autêntico e puro do cinema”, no qual o herói se dilui no gênero, que progride em concentração expressiva (Rocha, 1997). Esta é certamente uma boa referência para pensarmos a relação western-cangaço-spaghetti e vermos como O Cangaceiro de Fago se comporta frente a tantas hibridações.
Compañeros
Na Itália, o western-spaguetti chegou num momento de crise da indústria cinematográfica e dos grandes estúdios. No entanto, para que lembremos que a releitura do western expandiu-se por toda parte e não foi só uma invenção italiana, o primeiro faroeste europeu é, na verdade, alemão. Refiro-me a O Tesouro dos renegados, de 1961, as aventuras de um índio chamado Winnetou, filmado na antiga Iugoslávia por Harald Reinl (Carreiro, 2009). De todo modo, na Itália foram rodados mais de 600 filmes nas décadas de 1960 e 1970, insuflando um pouco de oxigênio ao gênero, já desgastado, através do fomento à aparição de uma galeria de novos cineastas-autores, da composição de um elenco estelar multinacional, sem o peso da história de sua matriz americana. Boa parte dos cineastas possuía inclinações à esquerda, valendo-se das mitologias do gênero e das revoluções (principalmente da mexicana, aproveitada à exaustão), uma levada pop, uma música onipresente, expansão do campo temático das histórias, maxi-valorização da paisagem e dos recursos técnicos contemporâneos, do zoom intenso à moldura dos rostos em primeiro plano, valorizando a profundidade de campo, e mais as explosões apresentadas em uma montagem lacônica, dando sempre a impressão de faltar alguns fotogramas.
Giovanni Fago mantém desse universo, a moldura e a embalagem, mas vai buscar outros conteúdos. Ele se cerca de muitos cuidados. Seu roteirista é Bernardino Zapponi, que trabalhou com Fellini em Satyricon, Os palhaços, Roma, Casanova e muitos outros. A música cabe a Riz Ortolani, compositor experiente, com participação em mais de duzentas trilhas. Conta ainda com a colaboração do fotógrafo Alejandro Ulloa, que trabalhara com Sergio Corbucci, Umberto Lenzi, Enzo Castellari e muitos outros. Uma equipe afiada! O ator principal, Tomas Milian, vinha de uma carreira marcante no western-spaghetti, e no mesmo ano participa de Compañeros, um filme de Sergio Corbucci, na companhia de Franco Nero. Esse filme que, por várias razões, guarda muitos pontos de contatos com O Cangaceiro, entre os quais o de que ambos foram co-produções ítalo-espanholas.
Ao som de “Muié rendera”, a trama tem início com um ataque da polícia a um bando de cangaceiros, sitiados num vilarejo. O coronel Minas coordena o extermínio do bando de Firmino… e para seu azar, nesta confusão a vaca do camponês Expedito é fuzilada. Expedito é recolhido pelo beato Julião das Miragens, que lhe ensina o valor da justiça, de um Cristo que usa o chicote e pune os maus, distribuindo o que comer e o que beber entre os pobres, e lhe anuncia que ele, Expedito, é o enviado do Senhor, sob o nome de Redentor!
Um acaso, um personagem que é levado a uma situação inusitada, um protetor que o acolhe e instrui, tudo isso compõe uma situação modelar. Mas a caracterização física dos personagens é quase caricata, os diálogos são tresados por uma ingenuidade cômica que, se não compromete a verossimilhança da narrativa, aponta para um registro de tonalidades mais associadas à comédia de costumes italiana e ecos de Brancaleone.
Expedito prega nos vilarejos, convocando apóstolos em meio ao desinteresse da população. Mas quem aparece em sua frente é o bando do Diabo Negro, a quem Expedito se apresenta como o novo rei do cangaço, sagrado pelo arcanjo Gabriel para combater pela verdade e a justiça, a cruz e o facão na mão. Convidado a integrar o grupo, outra das situações-modelares do gênero, Expedito recusa e promete ter sua própria gente. A frase do cangaceiro soa quase como ameaça quando estabelece, metaforicamente, a hierarquia das relações sociais: “um facão é mais longo que a mão, mas um fuzil é mais longo que um facão”. E Expedito responde a ela se livrando da cruz.
Em Angicos, na festa cívica de inauguração da bateria de canhões da cidade, com a presença do cardeal, vemos então o dissimulado Expedito na situação de paralítico, sentado sobre um carrinho de rolimã, mas seu jeito debochado vai levá-lo à prisão, determinada pelo coronel Minas. Na cadeia, ele constituirá seu bando, depois de demonstrar sua astúcia e explodir os canhões. Expedito/Redentor, com as armas que consegue, mata os que o desobedecem, parte para o sertão e ganha notoriedade, ando a ser procurado.
É então que se apresenta sua contrapartida dramática. Num vilarejo, chega um automóvel de classe, dirigido por um holandês louro e elegante, de botas de cano alto e foulard. Munido de livros, mapas e de instrumentos, o homem dirige-se à praia. A população olha com curiosidade o automóvel diferente. Voltando, o homem encontra seu carro totalmente depenado. Só sobrou a estrutura de ferro. Enquanto ele se indaga o que teria acontecido, cresce sobre seus livros a sombra do Redentor! No contra plano, em contraplongée, Redentor aparece santificado, envolto por um halo solar. O cangaceiro intima o viajante a ler para ele um longo romance sobre o mar. E daí, deste contraste entre a força, a violência e a submissão física e a educação, a leitura e os modos cultivados do europeu vai se estabelecer o elo central da relação entre os dois homens. Esta é a trama principal, denunciada por alguns críticos como sustentada por um homo erotismo casto, demarcando um campo pouco explorado até então pelo gênero e suas derivações, normalmente pré-determinados pelo machismo e pela virilidade.
O holandês Vincenzo Helfen aproveita-se da atração que exerce sobre o camponês analfabeto e desenvolve essa amizade de acordo com sua estratégia. Torna-se a interface do cangaço com o poder local, e mesmo internacional, do qual será o representante, como veremos, e que implica finalmente a exploração de jazidas de petróleo e a maximização de seus ganhos agregados, tais como a ocupação de mão de obra local e a mais intensa circulação financeira. O holandês é relacionado ao progresso, e o cangaceiro vai ser seu associado contra o atraso do sertão.
Essa oposição qualifica a temática da transição do rural ao urbano, do pré-capitalismo ao capitalismo de ponta, permitindo, assim, que o filme seja inscrito na representação da modernização e da evolução industrial do Nordeste brasileiro. O avanço do segmento agroexportador para o de prospector de petróleo se dará na realidade com a instalação da primeira refinaria do Brasil, a Landulfo Alves em Mataripe, no Recôncavo baiano, em 1956, operações que antecedem o futuro pólo petroquímico de Camaçari. 4 O filme expressa, portanto, uma situação alegórica e quase premonitória, já que estamos presumivelmente nos anos 1930. A pertinência da objetivação do petróleo como mote propulsor da trama, guarda, certamente, relação com o olhar contemporâneo dos anos 1970.\
Dramaticamente, esse acerto é negociado por Helfen que vai possibilitar a ascensão de Redentor como autoridade no sertão, já que este, depois de perseguido, a a compor com as autoridades, e extermina os bandos rivais, para que a empreitada do petróleo possa prosseguir. O Redentor torna-se a ponta de lança de um acordo que engloba o poder civil local, os militares, a Igreja e os interesses estrangeiros, representados e patrocinados não só por Helfen e sua companhia petrolífera, mas também por um inverossímil bando de gangsters, como que saídos de uma peça de Bertolt Brecht.
Não faltam emboscadas, tiroteios e mobilizações de tropas, em que, às vezes, um tom contemplativo desarruma a potência de um filme de ação. Como, por exemplo, na caminhada ao pôr do sol, onde quem se alinha na contraluz, em postura desconstrutora e modernizante, são o destacamento militar e mais tarde, o negociador Helfen, num pungente adeus à iconografia do velho sertão.
Essas são transgressões às marcas do gênero, assim como o são a repartição equânime do tempo dramático entre os dois personagens centrais, o louro europeu e o mestiço Expedito, em encontros e confrontos, negociação de armas e tratados de paz, jantares de apresentação, concessões de salvo-conduto e danças de forró em ritmo acelerado, quase de samba. É nessa ocasião que, em um rápido plano, Expedito é visto beijando uma empregada uniformizada, único o dramático do universo feminino em relação direta com um dos dois protagonistas masculinos. Um beijinho e só, o máximo de relação hetero permitida.
Os elementos da representação, associados ao gênero e suas diluições, são bastante completos, não faltando os duelos de facão, as feiras, com cantadores e fotógrafos, a relação de subserviência dos camponeses e da própria Igreja. Na história, então, Redentor ganha uma fazenda que quer transformar num paraíso terrestre, prova de sua entrega aos desígnios divinos.
A trama entra em seu desenvolvimento final, que implica no jorro do petróleo e na aparição dos gangsters americanos comandados por Frank Binaccio e seus homens, fugitivos do governo republicano de Calvin Coolidge por evasão fiscal. O governador decide matar Expedito e, pagando um bom preço, pede que os gangsters lhe tragam a cabeça do cangaceiro. Sentindo-se traído, Expedito culpa o holandês, que aparece e explica que o governador mandou matar todos do vilarejo, responsabilizando-os por acolher cangaceiros. A vila assim foi evacuada para a perfuração dos poços. Helfen assume sua parte de culpa e denuncia a negociação com Binaccio. É esta traição, que o holandês faz ao governador e ao seu país, que salva o cangaceiro. Helfen define aqui seus afetos e assume junto ao Redentor sua redenção. Esta união, movida por vingança, provoca a morte dos gangsters e do governador e o apaziguamento da região.
Encontro na duna, Expedito e seu bando, Vincenzo Helfen partindo de vez. Na despedida, Helfen confessa sua simpatia e cumplicidade com o cangaceiro, que ite não ser o enviado que imaginara. Mas o holandês o conforta, dizendo que ele tinha cumprido muito bem o seu papel. Happy-end. Expedito volta para a estrada, Helfen provavelmente para a Holanda.
O filme termina de modo convencional, centrado no selo da amizade entre os dois protagonistas. O grupo, finalmente conscientizado, continua a atuar e isso é uma possibilidade de novas aventuras, como num western tradicional. Vence o pressuposto violento e vingador, mas ético, do bandido, sob o arrependimento do adversário.
Giovanni Fago conta que o filme fez sucesso na Itália e no resto da Europa, mas só chegou à América Latina três ou quatro anos depois (por conta de sua perspectiva política, foi considerado perigoso). O cineasta renega a etiqueta de western, considerando-a inexata, preferindo defini-lo como um filme político de aventuras.
Jornal carioca de 1973 apresentando o filme italiano, que foi intitulado no Brasil “Rebelião de Brutos”
A apropriação do nome O cangaceiro e de seu universo mitológico estabelece uma conexão obrigatória com a obra original e este gesto não pode ser considerado, de nenhuma maneira, como ingênuo, desprovido de intencionalidade, inclusive comercial. Os direitos da canção original5 são o aval desta operação.
Somos levados a buscar na obra italiana elementos presentes no filme de Lima Barreto, mas nos deparamos com traços soltos, pertencentes ao gênero, e quase nenhuma marca do original. O impulso criador do western clássico, de sua apropriação pelo Cinema Novo e pelo spaghetti, perde-se num pastiche sem alma. É essa estética da diluição sucessiva que leva a um processo de abrandamento das especificidades de cada forma cinematográfica utilizada, solvendo num texto comum o que foi um dia ousadia ou expressão dinâmica.
Notas
1 Entrevista do diretor, bônus do DVD O Cangaceiro, coleção L´âge d´or du cinéma européen. Wild Side films
2 O Almanaque, boletim eletrônico da jornalista Maria do Rosário Caetano dá conta, em 15/06/2010, de várias produções sobre o cangaço em andamento. Homero Olivetto, Wolney Oliveira, Hermano Penna, Geraldo Sarno e Ícaro Martins preparam filmes sobre o cangaço ou sobre cangaceiros. A filiação prossegue.
3 Filme feito entre 1930 e 1932 por Eisenstein e que gerou algumas montagens executadas sem sua presença e renegadas pelo cineasta: Thunder Over Mexico, Eisenstein in Mexico, Death Day e Time in the Sun.
5 A canção, cuja autoria foi atribuída a Zé do Norte, teve grande repercussão internacional. Foi gravada por um naipe de músicos que vai dos Demônios da Garoa, em 1953, até Joan Baez, em 1964, ando por Astrud Gilberto e muitos outros.
Referências bibliográficas
BAZIN, André. O western ou o cinema americano por excelência. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. [ Links ]
GALVÃO, Walnice Nogueira. Metamorfose do sertão. In: CAETANO, Maria do Rosário (org). Cangaço: o nordestern no cinema brasileiro. Brasília: Avatar, 2005. [ Links ]
ROCHA, Glauber. O western: uma introdução ao estudo do gênero e do herói. Mapa, nº1, Salvador, ABES, 1957. [ Links ]
GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. [ Links ]
VEREVIS, Constantine. Film remakes. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd, 2006. [ Links ]
Referências filmográficas
A hora e a vez de Augusto Matraga (BRA, 1965, dir: Roberto Santos)
Casanova de Fellini (ITA, 1976, Federico Fellini)
Compañeros (ITA, 1970, dir: Sergio Corbucci)
Deus e o diabo na terra do sol (BRA, 1963 , dir: Glauber Rocha)
O cangaceiro (BRA, 1953, dir: Lima Barreto)
O cangaceiro (ITA, 1970, dir: Giovanni Fago)
O dragão da maldade contra o santo guerreiro (BRA, 1969, dir: Glauber Rocha)
O incrível exército de Brancaleone, (ITA, 1965, dir: Mário Monicelli)
O tesouro dos renegados (ALE/ITA/IUG, 1961, dir: Harald Reinl)
Os fuzis (BRA, 1964, dir: Ruy Guerrra)
Os palhaços (ITA, 1970, Federico Fellini)
Que viva México (MEX, 1932, dir: Grigori Aleksandrov, Sergei M. Eisenstein)
Roma de Fellini (ITA, 1972, Federico Fellini)
Satyricon (ITA, 1969, dir: Federico Fellini)
Thunder over Mexico (EUA, 1933, dir: Sol Lesser)
Time in the Sun (EUA, 1939/40, dir: Mary Seton)
Vidas secas (BRA, 1963, dir: Nelson Pereira dos Santos
Viva Zapata (EUA, 1952, dir: Elia Kazan)
Este artigo é dedicado a Mariarosaria Fabris.
*Antônio Carlos Amâncio é mestre e doutor em Cinema pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e professor associado III do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil ([email protected]).
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