1972 – O QUE FOI O PACTO DE HONRA NA GUERRA DAS FAMÍLIAS ALENCAR E SAMPAIO DE EXU, PERNAMBUCO, FIRMADO NO BATALHÃO DE INFANTARIA DE GARANHUNS?

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial e a deposição do ditador Getúlio Vargas, teve início o processo de redemocratização no Brasil, que, infelizmente levou a inúmeras disputas políticas e conflitos pelo país afora. Na região de Exu[1], sertão de Pernambuco, não foi diferente.

Em 24 de dezembro de 1946, na segunda página do jornal recifense Folha da Manhã surgiu a manchete abaixo, verdadeira profecia do que iria então ocorrer naquela cidade.

Nesse jornal existe a transcrição de um telegrama de Romão Filgueira Sampaio Filho (21/08/1887 – 10/04/1949)[2], conhecido como coronel Romão Filho, ou ainda Seu Romãozinho, sobre o clima político existente na cidade. O telegrama foi enviado ao então deputado federal Agamenon Magalhães, ex-governador de Pernambuco entre 1937 a 1945 e que seria novamente governador pernambucano entre os anos de 1951 e 1952.

Prossegue, sem interrupção, as violências e ameaças desencadeadas no interior do Estado contra os elementos do Partido Social Democrático[3]. Ontem outros telegramas foram enviados ao deputado Agamenon Magalhães, nos quais os signatários, pertencentes ao partido majoritário ou dele simples simpatizantes, denunciam novas ameaças e agressões cometidas pelas autoridades policiais e prefeitos udenistas[4]. Foram os seguintes os despachos dirigidos ao deputado Agamenon Magalhães:

EM EXU – José Aires de Alencar Sete, indicado cargo de comissário de polícia, manteve durante a feira local atitude hostil, intimando eleitores, tendo agredido João Pereira de Carvalho e Expedita Sampaio, funcionários demitidos em ato arbitrário do prefeito. Levei ao conhecimento do caso ao juiz, pontuando lamentáveis incidentes. Provável e iminente hecatombe. Saudações. Romão Sampaio Filho.”

Notícia original dos trágicos acontecimentos do Domingo de Ramos de 1949 em Exu.

Dois anos e quatro meses após a publicação dessa notícia, mais precisamente as oito da manhã do dia 10 de abril de 1949, em plena Semana Santa e no Domingo de Ramos, o badalar dos sinos da missa do Padre Mariano de Souza Neto foi diminuído pelos disparos de armas de fogo, em um tiroteio que deixou mortos Romão Sampaio e Cincinato de Alencar Sete (23/11/1889 – 10/04/1949), conhecido como Seu Sete[5].

Esses homens eram os chefes das famílias Alencar e Sampaio, as duas principais da cidade de Exu e eram compadres. O primeiro foi morto por José Aires de Alencar, conhecido como Zito Alencar, então com 23 anos e filho de Cincinato Alencar. Comentou-se que Romão Sampaio engraxava os sapatos quando foi morto e outros dizem que caminhava quando discutiu com Zito e este lhe deu dois ou três tiros na cabeça.

Padre Mariano de Souza Neto, pároco de Exu durante a maior parte do período que ocorreram os conflitos.

Após essa morte e ainda naquele mesmo dia, Cincinato tombou ao receber vários tiros de rifle e revólver. Este foram disparados respectivamente por Aristides Sampaio Filgueira Xavier, filho do coronel Romão e suplente de deputado estadual pelo PR – Partido Republicano, e o então prefeito da cidade Otacílio Pereira de Carvalho, genro do coronel Romão e cunhado de Aristides. Ficaram feridos no tiroteio o prefeito Otacílio, na perna e sem gravidade, e Franscisco Aires de Alencar, esse último filho de Cincinato, que ficou paralítico e preso a uma cama pelo resto de sua existência[6]. Consta que também foi atingido com gravidade o cidadão de nome José de Miranda Parente[7].

Otacílio foi acusado de ter disparado seis tiros a queima roupa em Cincinato Alencar[8]. Mas as fontes divergem quando o assunto é quantos disparos mataram esse homem, com algumas apontando 11 tiros e outras que pulam para 23. O enterro dos dois líderes foi no mesmo dia, mas em horas diferentes para evitar mais mortes[9].

Francisco Aires de Alencar e sua cama oltada para a rua em Exu.

Para muitos as querelas políticas locais foram as principais causas do início das questões de sangue entre os Alencar e Sampaio em Exu no ano de 1949, mas existem outras versões.

Uma delas dá conta que na época havia sido recentemente instalada uma difusora de notícias em Exu, o serviço de autofalantes espalhados na cidade, as populares “bocas de ferro”. Ocorre que começou uma troca de mensagens divulgadas por esse serviço, todas de cunho político, entre adversários das duas famílias e o clima foi esquentando. As mensagens foram ficando mais ácidas e pesadas, deixando a “a de pressão” no limite, até descambar na tragédia do Domingo de Ramos de 1949.

Existe também a versão de um caso que envolveu uma pretensa traição matrimonial, junto com o uso da violência. Consta que Antoliano Aires Alencar comentou que uma parente sua, mulher casada, estava traindo o seu marido com Aristides Sampaio, o filho vingador do coronel Romão. Então, o que aparentemente era só um boato, um fuxico besta, acabou por gerar uma tremenda surra em Antoliano Alencar nas proximidades de sua propriedade. E houve mais – além de surrado, Antoliano foi amarrado e obrigado a engolir pedaços de páginas de jornais misturados com urina. Uma versão afirma que então Zito Alencar teria ficado possesso com a situação e tomou as dores do parente. Foi pessoalmente reclamar do caso com o coronel Romão Filho, que nada fez. E aí veio os crimes do dia 10 de abril de 1949.

Cemitério de Exu.

Seja lá quais forem as reais e corretas versões, a tristemente lembrada “Guerra do Exu” teve início naquele Domingo de Ramos de 1949. Ao longo dos anos muitas covas seriam abertas no Cemitério São Raimundo e muito choro seria derramado.

O Cenário das Lutas

A cidade de Exu começou a sua história nos primeiros anos do século XVIII, com os contatos entre os vaqueiros de uma fazenda vinculada à Casa da Torre, de possíveis proprietários baianos, com o povo indígena Ançu ou Açu, identificado com a nação Cariri e que viviam nas vizinhanças[10].

Exu e ao fundo o Serrote do Alto Grande.

Consta que os índios levaram esses vaqueiros até às suas tabas e estes informaram aos seus patrões que nas terras onde moravam os indígenas existiam fontes de água e terrenos de boa qualidade para o cultivo e criação. Anos depois chegaram alguns freis jesuítas, que ali permaneceram por certo período. Em 1734 foi constituída a Freguesia do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, com um abrigo e uma capela, tendo com isso se desenvolvido o núcleo populacional local.

Em Exu circula a ideia que entre os primeiros colonos a penetrarem em terras que compõem atualmente esse município pernambucano estava o português Joaquim Pereira de Alencar, anteado do escritor e político cearense José de Alencar e avô do Barão do Exu[11]. Após o fim da Revolução Pernambucana, ou Revolução dos Padres (6 de março a 20 de maio de 1817), ocorreu em Recife a prisão da comerciante e revolucionária Bárbara de Alencar (1760 – 1832), exuense descendente dos primeiros colonos portugueses que se estabeleceram na região e considerada a primeira presa política do Brasil, marcou sua existência com muitas lutas. Em consequência sua Fazenda Caiçara foi confiscada e ela e outros membros da sua família só foram libertados da prisão em 1820[12].

Em março de 1846 o povoado de Exu era elevado à categoria de vila e em 7 de julho de 1885 a município.

Banho de Sangue

Mas voltando as questões ocorridas no século XX, com a morte dos antigos líderes políticos a família Alencar despontou nos pleitos municipais e seus membros assumiram o domínio político de Exu. A partir de 1950 elegeram todos os prefeitos e garantiram sempre a maioria dos nove vereadores da Câmara Municipal. Diziam que “não perdiam nem eleição de quermesse e pastoril”.

Em 1956 Juarez Aires de Alencar, filho de Cincinato e irmão de Zito Alencar, encontrou na cidade do Crato, Ceará, com o agora ex-prefeito Otacílio Pereira de Carvalho e aquilo lhe esquentou o sangue. Enfim, não era fácil encontrar com um dos assassinos do seu pai e tentou pegar sua arma. Mas naquele dia Otacílio não perdeu tempo com meditações e abriu fogo. Deu dois tiros secos e rápidos que mataram Juarez. Vale frisar que Otacílio aria por dois julgamentos e seria absolvido em ambos.

Notícia do resultado do julgamento de Otacílio Pereira de Carvalho.

Em 1957, em um final de tarde de um dia de feira, Francisco Vaqueiro, ajudante de Antoliano Alencar e tido pelas autoridades como pistoleiro, foi morto em Exu com quatro tiros e seus pretensos assassinos foram os irmãos Janilton e Javilmar Sampaio Peixoto e um primo de nome Delmar. Nessedia, como medida de precaução, ninguém saiu as ruas quando escureceu e o bilhar ficou vazio e sem conversas.

Então houve um momento de calmaria, de paz provisória, onde segundo escreveu o repórter Ricardo Noblat “Esse período de tranquilidade em Exu foi farto de casamentos entre os membros dos dois grupos e também de alianças políticas[13]. E quando veio a Revolução de março de 1964, o período da Ditadura Militar, em Exu só existia o partido do Governo Federal, a ARENA – Aliança Renovadora Nacional. E para acomodar os dois grupos foi criada por eles uma divisão local e surgiu a “ARENA 1” e a “ARENA 2”. Completamente desunidas na política local, mas unidas no plano federal.   

Em 1965, apenas pelo ódio latente existente, Antônio Jaílson Sampaio Peixoto foi morto em Exu com onze tiros pelas costas. Os autores foram os irmãos José Audísio Aires Alencar e Canuto Aires Alencar. Antônio Jaílson tinha 19 anos. Essa morte trouxe para luta outras duas famílias – os Aires se ombrearam com os Sampaio e os Alencar com os Peixoto.

Consta que a partir desse último caso, em meio a toda essa sangria, as autoridades pernambucanas despertaram mais seriamente para o problema. O destacamento policial do Exu foi reforçado e foram nomeados delegados com a missão de restaurar a paz na cidade. Mas logo as mortes se sucederam.

Blitz policial perto de Exu.

Em 1966, Getúlio Coutinho morreria em Exu com tiros disparados por Adauto Alencar Filho. No ano seguinte Raimundo Canuto de Alencar morreu no centro de Exu, diante de um clube local, com cinco tiros disparados pelos primos Jamilton Peixoto Sampaio e Carloto Peixoto. Esse crime ocorreu no dia 13 de agosto de 1967 e a viúva de Raimundo, Gilvandete Canuto de Alencar, ficou com a responsabilidade de cuidar de nove filhos. Ainda em 1967, Jeová Colombo Coutinho, muito ligado a família Sampaio, trocou tiros com Raimundo Aires Alencar Ulisses, tendo ambos saídos feridos. Colombo com dois balaços e Raimundo com um.

Alguns anos depois, no dia 20 de fevereiro de 1972, um domingo, João Wagner Canuto Alencar (um dos filhos de Raimundo Canuto), de 23 anos, foi morto a tiros por Romeu Soares de Oliveira Sampaio, o Romeuzinho, um menino de 16 ou 17 anos. Em depoimento ao Jornal do Commercio, de Recife (edição de 15 de setembro de 1972, pág. 8), sua mãe Gilvandete Canuto de Alencar afirmou que Romeu teria tido o apoio de outros membros da família Sampaio. Comentou ainda que seu filho foi morto com tiros pelas costas quando concertava um Jipe, em frente ao posto de gasolina de Exu.

Não demorou e o troco chegou. Na tarde de 30 de abril de 1972, José Sampaio de Oliveira, pai de Romão Sampaio e tabelião de Exu, foi atacado por dois pistoleiros e levou cinco ou seis tiros, mas incrivelmente sobreviveu. Contaram outros 16 buracos de balas na parede de sua casa e os autores foram dois jovens. Um deles fugiu sem deixar rastro e o outro foi até preso, mas fugiu da cadeia. José Sampaio ficou com uma das balas na barriga e se mudou para a cidade pernambucana de Serrita, reduto dos Sampaio.

Enquanto isso o povo do Exu vivia rezando todos os dias para ver se Deus acabava com aquelas lutas. Quase ninguém ia ver filmes nos cinemas São Paulo e Alvorada e na feira, ponto de concentração da economia do município, o movimento diminuiu cerca de 40% e a arrecadação da prefeitura caiu 1/3 naquele 1972 pavoroso. Consta, segundo informou o coletor público Wilson Saraiva aos jornalistas, que a arrecadação do ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) caiu 35% em meio aos tiroteios.[14] A luta dividiu a tudo e a todos. Os Sampaio só frequentavam o Clube Recreativo 8 de Setembro e os Alencar o CEE – Clube Estudantil do Exu. A Praça da Bomba era o ponto de encontro dos Sampaio e a Praça Aprígio Pereira era o reduto dos Alencar[15].  E tem um detalhe – A intensa Exu tinha apenas 5.000 habitantes em 1972.

Quatro meses depois do atentado a José Sampaio, no dia 19 (algumas fontes dizem 20) de junho, foi a vez de Adauto Alencar ser morto. Este era solteiro, com 30 anos de idade e filho adotivo de Antoliano Alencar. Foi atingido quando seu irmão, o engenheiro agrônomo João Oldan de Alencar, parou a sua camionete C-10 e Adauto desceu para abrir uma porteira da fazenda do seu pai, a Romana (ou “Rumânia”). Recebeu apenas um tiro nas costas, disparado de um rifle Winchester 44 e seu irmão testemunhou tudo. Segundo Oldan, que não foi ferido e nem viu o atirador, depois que seu irmão recebeu o disparo ele ainda sacou do seu revólver e deu três tiros a esmo, caiu gritando de dor e faleceu. No local onde ficou o atirador de tocaia foi encontrado um verdadeiro esconderijo camuflado por ramos de árvores, onde havia restos de comida, uma cama improvisada e outros objetos, mostrando que o assassino ou alguns dias na posição para executar seu plano malévolo. Nunca foi mencionado em documentação ou na imprensa quem disparou contra ele, mas lembremos que Adauto foi acusado da morte de Getúlio Coutinho em 1966[16].

Situação da Justiça em Exu na época dos conflitos.

Em 17 de agosto de 1972, uma quinta-feira, o fazendeiro Jeová Colombo Coutinho, ligado aos Sampaio, saiu de casa cedo com o propósito de seguir até o Crato, porém, na altura da Fazenda Cachoeira, ele foi obrigado a parar seu veículo para retirar algumas pedras e troncos de madeiras colocados na estrada. Logo uma saraivada de tiros se abateu contra ele. Mesmo ferido o fazendeiro ainda sacou seu revólver e revidou à agressão, não conseguindo, no entanto, ferir ou identificar os atacantes. Atraídos pelos disparos, os empregados da fazenda Cachoeira correram até o local e encontraram Jeová Colombo Peixoto todo ensanguentado e de revólver em punho. Ele foi conduzido até Exu, onde membros da família Sampaio o removeram para o hospital do Crato. No local da emboscada descobriram cabaças com água, uma sandália japonesa meio cortado e restos de comida. Ninguém foi preso[17]. Existe a informação que Jeová levou 20 tiros e ficou paralítico[18].

Praça no centro da cidade.

O ódio tinha criado raízes. Por Isso, Janilton Sampaio Peixoto, irmão de Jamilton e Antônio Jaílson, funcionário público residindo no Recife e istrando o Mercado de Santo Amaro, tombou crivado com nove tiros de calibre 38 no dia 11 de setembro de 1972, uma segunda-feira, quando jantava com a família no restaurante “Palhoça do Melo”. Luiz Alberto e Antônio Aires de Alencar foram acusados de matar Janilton. Existe a informação que eles viviam em Santa Catarina e vieram de lá só para praticar esse assassinato. Deuzimar Ulisses Peixoto, a esposa de Janilton, foi ferida no braço e os dois filhos do casal, crianças de sete e dez anos de idade, presenciaram tudo.

Cruzes nas estradas de Exu.

No dia seguinte, ainda em Recife, defronte ao Edifício Cristina, no bairro do Espinheiro, José Arez Aires de Alencar foi ferido com três tiros efetuados por Vital Sampaio Peixoto e outros homens. O ambulante José João da Silva, que ava pelo local, foi ferido na ação.

Segundo informava o Diário de Pernambuco (edição de 14 de setembro de 1972), que em meio as lutas e como “medida acauteladora”, vários integrantes das famílias Alencar e Sampaio mandaram suas mulheres e filhos menores para outras cidades. E em Exu ficaram “apenas os rapazes que sabem atirar”. E o jornal completava afirmando “As mulheres e filhos dos Sampaio foram para o Crato, no Ceará, e as dos Alencar estão no Araripe”, outra cidade cearense. Mas houve outros problemas. Desde dezembro de 1971 não havia mais festas na cidade e cinco professoras pediram desligamento do MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) de Exu, pois os alunos simplesmente sumiram das salas de aula.

Revista policiual em um veículo que entrava em Exu.

As Manobras em Exu e Bodocó

Foi quando alguém decidiu tomar uma iniciativa para acabar com aquela verdadeira “orgia de sangue”. O então coronel Ivo Barbosa, comandante do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada (71º BIMtz), sediado na cidade pernambucana de Garanhuns, foi quem tomou essa iniciativa.

Coronel Ivo Barbosa de Araujo – Fonte – https://71bimtz.eb.mil.br/

Nascido em 19 de maio de 1928, na cidade de Nazaré da Mata, na área da zona da mata norte de Pernambuco, Ivo Barbosa de Araujo foi declarado aspirante a oficial da Arma de Infantaria em 17 de dezembro de 1948, ao concluir o curso de oficial da Escola Militar de Resende, atual Academia Militar das Agulhas Negras, e a partir daí foi galgando os postos do oficialato no Exército Brasileiro.

Soube que a ideia desse encontro começou durante uma manobra militar realizada entre as cidades pernambucanas de Bodocó e Exu e contava com a participação dos membros do 71º BIMtz. Durante quase uma semana (de 18 ao dia 24 de setembro de 1972) circularam nessa área com seus jipes e caminhões REO 6×6, um total de 379 militares (19 oficiais e 360 praças). Houve na verdade a realização de uma “Operação Presença” do Exército Brasileiro nessa área, que desdobrou em uma ACISO (Ação Cívico Social do Exército) em Exu. O tenente-médico Cláudio Montenegro Gurgel do Amaral e o tenente-dentista Climério Leite fizeram mais de 200 atendimentos e foram realizadas mais de 300 visitas sanitárias nas residências. Até a banda de música do batalhão tocou frevos na praça principal da cidade. Quem também adorou a chegada dos militares foi o comércio exuense, pois eles adquiriram muita comida e outros produtos na cidade e em propriedades vizinhas. Os militares circularam pelas ruas em seus uniformes verde-oliva, capacetes M-1 na cabeça, portando reluzentes fuzis FAL, metralhadoras INA e as famosas pistolas Colt 45, o que deixou Exu na mais absoluta paz durante aqueles dias[19].

Soldado do exército em uma esquina de Exu em setembro de 1972.

O coronel Ivo Barbosa então procurou os líderes das duas famílias e propôs um encontro na sede do seu batalhão, com o objetivo de sentarem frente a frente, dialogarem juntos e encontrarem o caminho da paz. E as lideranças concordaram. Na verdade, aquela proposta acabou sendo praticamente uma ordem, pois os chefes dos Alencar e Sampaio não eram idiotas de se colocarem contra o pedido de um oficial do Exército Brasileiro. Algo que naquela época poderia, talvez, trazer consequências mais complicadas para eles e seus negócios[20].

Mas antes até de ocorrer o encontro nas dependências do 71º BIMtz, um outro ato de violência foi praticado. José Aires de Alencar, o Zito Alencar, que matou o coronel Romão Sampaio no Domingo de Ramos de 1949, sofreu um atentado no dia 2 de outubro de 1972.

Soldados do Exérrcito Brasileiro em Exu.

Depois que Zito Alencar matou o coronel Romão ele foi preso, mas fugiu pouco tempo depois (dizem que subornou a guarda). Foi então para São Paulo de avião, onde ali ou alguns anos e existe a informação que teria até se formado. Daí voltou para o Nordeste, onde decidiu viver no município paraibano de Sapé com o nome falso de Adail Pessoa e montou um negócio. Mas nesse dia, ao dirigir na estrada que dava o a essa cidade, cruzou com um veículo Opala vermelho quando, de maneira rápida e inesperada, vários tiros partiram desse carro em direção ao seu, sendo Zito Alencar atingido no pescoço e na mão esquerda. Logo ele pegou um revólver com a mão direita e mandou três balaços no veículo dos pistoleiros, que fugiram. Como estava a apenas a cinco quilômetros de Sapé ele chegou rápido, recebeu apoio e sobreviveu[21].

O Acordo do Quartel de Garanhuns

O coronel Ivo Barbosa, apesar de preocupado, não esmoreceu e preparou seu 71º Batalhão de Infantaria Motorizado para o evento. Mas antes disso enviou para as autoridades em Brasília um relatório sobre o caso e sugeriu que, independentemente da do tal acordo, que em pouco tempo fosse decretada a intervenção federal no município, de forma a torná-lo área de segurança, com um policiamento ostensivo e permanente, onde seria realizado frequentes operações de desarmamento na cidade, nos sítios e nas fazendas. Evidenciando que apenas com à adoção de medidas preventivas e permanentes aquela luta fraticida e sangrenta teria um fim. Mas em Brasília ninguém deu atenção ao seu relatório!

Naqueles tempos complicados não era difícil ver em Exu.

Então, no domingo, 15 de outubro de 1972, ocorreu o encontro dos líderes e integrantes das famílias Alencar e Sampaio. Vejo que só o fato do coronel Ivo Barbosa colocar em uma mesma sala os integrantes daquelas duas famílias desarmados e uns diante dos outros, já poderia ser considerado um enorme êxito.

O maior resultado do comandante do Batalhão da Infantaria de Garanhuns foi ter sido redigido um “PROTOCOLO DE PAZ” constante de dez cláusulas, a ser assinado pelos membros de ambas as famílias. Lendo o documento eu percebo que ele atinge as raias do incrível, que mostra de alguma forma como se desenrolou essa reunião. Olhem abaixo:

Termos do acordo fimado na sede do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada de Garanhuns.

Anos depois ao conceder uma entrevista, o coronel comentou que viu o clima em Exu muito tenso, fruto das mortes de muitos pais de famílias e outras pessoas que ali foram executadas. Afirmou que naquela luta jovens perderam a vida estupidamente e que em sua opinião a briga alcançou proporções incontroláveis de violência e barbarismo. Ele afirmou também que conheceu, provavelmente na época das manobras militares, muitos integrantes das duas famílias, que para ele eram homens trabalhadores e sérios, a elite da cidade, mas que estavam envolvidos emocionalmente no conflito e com o coração cheio de ódio. Afirmou que se mostrou chocado com os acontecimentos e apelou aos chefes dos clãs Sampaio e Alencar no sentido que fizessem uma pausa, meditassem e pensassem no futuro dos seus filhos e abandonassem a luta.

Para o coronel as manobras políticas e as intrigas se encarregavam de desencadear o ódio, de dar corpo a violência, de transformar rapazes imberbes em matadores frios e calculistas, justificando seus atos em nome da vingança, sentimento responsável pelo ciclo interminável da luta fratricida — “Matei para vingar, para lavar meu sangue com sangue – Essa era sempre a desculpa e a justificativa para a sucessão de mortes. Em um ambiente onde não há possibilidade de um equilíbrio emocional, os atentados, os homicídios e emboscadas são cometidos como um ato de heroísmo, de bravura, estimulando o derramamento de sangue. Então, a fúria incontrolável e inconsciente dos mais jovens havia se tornado o elemento de continuidade da luta entre os Sampaio e os Alencar.

Muitos fatores contribuíram para esse conflito continuar. As duas famílias lutavam pelo domínio da política partidária em Exu, recorrendo a todos os expedientes para alcançarem seus objetivos. Não esqueçamos as intrigas, a presença dos pistoleiros, os boatos alarmantes e a ausência da Justiça contribuíram muito para o caos. Some também a ideia do “Machismo do sertanejo” e a crença na letalidade fatalista de que “o homem só morre no dia certo”[22].

Segundo foi publicado no jornal carioca O Globo, após o encerramento do encontro, vários membros das duas famílias seguiram para as cidades cearenses de Barbalho, Crato, Missão Velha e Milagres e as localidades pernambucanas de Salgueiro, Araripina, Serrita, Bodocó e, evidentemente, Exu. Eles tinham a missão de conseguir as s dos membros das duas famílias que viviam nesses locais. Até Zito Alencar, que se recuperava do recente atentado em uma cama de hospital na Paraíba, assinou[23].

Policiais em Exu.

Acho que o maior problema desse momento foi que, por conveniência ou medo de estragar o encontro e uma possível paz, não se deliberou em nenhum momento punições para os envolvidos nos muitos crimes praticados. Se o Exército, que era politicamente muito forte nesse tempo, não apontou nenhum aspecto de punibilidade nesse encontro para os mais celerados, acho que só serviu para ampliar a já elevada sensação de impunidade e a certeza que tudo era possível!

Os jornais da época mostram uma certa euforia, torcida mesmo, para que aquele conflito se findasse. Mas…

O Começo do Fim

Mas o compromisso foi quebrado exatamente as uma e meia da tarde de 17 de janeiro de 1973, apenas três meses após o encontro em Garanhuns, quando Raimundo Aires de Alencar Ulisses, então prefeito de Exu, foi assassinado com tiros de revólver na praça principal da cidade, próximo a prefeitura e da Igreja Matriz de Bom Jesus dos Aflitos. Nesse crime ficou ferido com um tiro no pé Antônio Lourenço de Oliveira e foram acusadas seis pessoas. Raimundo Alencar não completou o seu mandato, sendo assassinado quando faltava 30 dias para terminar seu mandato. Deixou quatro filhos e sua esposa Riseuda Parente Aires estava gravida de seis meses[24].

Ao longo dos anos seguintes mais e mais mortes aconteceram, algumas sendo realizadas no Maranhão e até no Rio de Janeiro. Houve novas tentativas de acordos patrocinados pela Igreja Católica, que foram quebrados. Até Luiz Gonzaga, o mais ilustre filho de Exu, tentou com o seu prestígio acabar com aquela sangria. Mas, apesar do respeito que as famílias tinham pelo seu sucesso, não houve maiores resultados.

Luiz Gonzaga tocando para seu pai Januário em Exu. Foto realizada meses antes do falecimento de Seu Januário.

A imprensa pernambucana e nacional divulgava com destaque, muitas vezes mórbido e até mesmo doentio, cada acontecimento sangrento ocorrido em Exu, ou envolvendo os membros das famílias em litígio, o que só gerou problemas para os moradores do lugar. Várias vezes os jornais apontaram Exu como “A Cidade Maldita”. No final da década de 1970, o município foi até cenário das gravações de um documentário chamado “Exu, Uma Tragédia Sertaneja”, dirigido pelo competente documentarista Eduardo Coutinho, que buscou retratar os conflitos locais entre as famílias Alencar e Sampaio, tendo sido exibido no programa “Globo Repórter” e causado muita repercussão. Em meio a tudo isso, várias famílias de Exu se dispersaram pelo Brasil, em uma verdadeira diáspora para terem apenas o direito de viver!

Marco Maciel decreta a intervenção em Exu em 1981.

O fim, ou o começo do fim, só começou de verdade em 9 de novembro de 1981, quando Marco Antônio de Oliveira Maciel, então governador de Pernambuco, assinou a ordem de intervenção estadual no município de Exu e contando com o apoio do Governo Federal. Junto com o então Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, decidiram exonerar José Peixoto de Alencar, o prefeito eleito de Exu, e todos os vereadores.

A esquerda o Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, junto do major Jorge Luís de Moura, interventor do município de Exu.

Designaram como interventor na cidade o major Jorge Luís de Moura, da Polícia Militar do Estado de Pernambuco. Ficou famosa a foto do major Moura andando pela cidade fardado, com uma valise em uma mão e na outra uma escopeta calibre 12.

O coronel Ivo Barbosa, que esperou nove anos para ver a intervenção do governo chegar ao Exu, o que talvez pudesse ter evitado muitas mortes, alcançou o posto de general de brigada e faleceu, salvo engano, em 2005.

Material do extinto Servição Nacional de Informações (SNI) sobre a intervenção em Exu.

Quem hoje visita Exu encontra um município com mais de 30.000 habitantes, com crescimento estável, uma cidade agradável do sertão nordestino, com um povo muito receptivo, que se orgulha de ser a terra do “Rei do Baião”. Eles gostam de mostrar aos visitantes o Parque Aza Branca, um museu dedicado à vida e à carreira de Luiz Gonzaga, além do Museu Bárbara de Alencar, na casa-grande da Fazenda Caiçara, e os interessantes locais na zona rural para a prática do ecoturismo. Em nenhum momento para um visitante que ali vai se sente o mínimo aspecto de tensão e medo. Mas, definitivamente, os moradores de Exu detestam relembrar esse período complicado da história do seu lugar. E eu não lhes tiro a razão.

Exu atualmente – Fonte – G1-PE.

Por isso, buscando compreender mais do que ali aconteceu em relação aos fatos históricos, foi que pesquisei e escrevi esse texto.

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NOTAS


[1] A denominação Exu, conforme os habitantes da terra, teria duas versões, uma decorrente de uma corrutela do nome da tribo que ali habitava e a outra é a denominação popular de um tipo de vespa que produz mel, cujo nome científico é Nectarina lecheguana, e chamada de “Inxu”, que ao ferroar causa muita dor.

[2] Importante comentar que o coronel Romão Filgueira Sampaio Filho era irmão do coronel Francisco Romão Sampaio, o famoso Chico Romão, o chefe da cidade pernambucana de Serrita e que morreu baleado em 1964. Ambos eram filhos do coronel Romão Pereira Filgueira Sampaio, importante figura política do final do século XIX no extremo oeste pernambucano e sul do Ceará, com o seu poder alcançando desde a cidade cearense de Jardim, até Salgueiro e Serrita, em Pernambuco.

[3] Partido Social Democrático (PSD) foi um partido político brasileiro identificado como de centro e fundado em 17 de julho de 1945 por antigos interventores do Estado Novo nas unidades federadas. Elegeu dois presidentes (Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek) e dois primeiros-ministros (Tancredo Neves e Brochado da Rocha). Também foi o partido de três presidentes da república que ascenderam ao cargo em função da linha sucessória (Carlos Luz, Nereu Ramos e Ranieri Mazzilli). Foi extinto na ditadura militar, pelo Ato Institucional Número Dois (AI-2), em 27 de outubro de 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Social_Democr%C3%A1tico_(1945) .

[4] Udenista é referente a UDN, ou União Democrática Nacional, um partido político fundado em 1945, de orientação conservadora e frontalmente opositor às políticas e à figura de Getúlio Vargas. Existiu de 1945 a 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Democr%C3%A1tica_Nacional

[5] Cincinato de Alencar Sete (ou algumas vezes Sette) é como o nome desse Senhor aparece nos registros oficias de bastimos dos seus filhos e até no atestado de óbito de Zito Alencar. Entretanto, em documentos da polícia pernambucana e na imprensa em geral, o nome que surge é Cincinato Sete de Alencar. Preferi seguir os documentos existentes em cartórios. Alguns desses registros apontam que Cincinato tinha a patente de capitão da Guarda Nacional.

[6] A imprensa informou na época que seu nome era Francisco Sete de Alencar. Novamente sigo os documentos em cartório que afirmam seu nome era Franscisco Aires de Alencar. Não consegui descobrir qual foi a real participação de Francisco nesse tiroteio, mas descobri que ele depois de ferido foi se tratar no Crato, Ceará, e de lá veio de avião para o Recife. Consta que faleceu em 1979.

[7] Ver Diário de Pernambuco, edição de 12 de abril de 1949, terça-feira, pág. 3.

[8] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 4 de fevereiro de 1953, quinta-feira, pág. 3.

[9] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.

[10] A Casa da Torre foi o embrião de um grande morgado que se iniciou na capitania da Bahia ainda no século XVI e que, por quase 300 anos, expandiu-se ao longo das gerações dos seus senhores por mais de 400 léguas na Região Nordeste do Brasil — um território que correspondia ao dobro da capitania do Piauí — à custa de guerras de extermínio contra os índios, com escravização destes para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar, nos engenhos e nas criações de animais. A expansão também foi motivada pela busca de metais preciosos, mas sem maiores sucessos. Constitui-se no centro de um expressivo poder militar no período colonial. De 1798 em diante, esteve envolvido nas lutas pela Independência do Brasil. Muitos dos seus membros foram agraciados com títulos de nobreza pelos monarcas Pedro I e seu filho Pedro II – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_da_Torre .

[11] Guálter Martiniano de Alencar Araripe, primeiro e único barão de Exu (Exu, 18 de junho de 1822 — Exu, 22 de julho de 1889), foi um político brasileiro, coronel da Guarda Nacional e eleito por diversas vezes deputado provincial por Pernambuco – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Gu%C3%A1lter_Martiniano_de_Alencar_Araripe

[12] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/B%C3%A1rbara_de_Alencar .

[13] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 22 de julho de 1972, págs. 126 a 128.

[14] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 5 de julho de 1972, 1º Caderno, pág. 3.

[15] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.

[16] Ver Diário de Pernambuco, edições de quarta e quinta-feira, 21 e 22 de junho de 1972, sempre nas primeiras páginas.

[17] Ver Diário de Pernambuco, edição de sexta-feira, 18 de agosto de 1972, pág. 12.

[18] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.

[19] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 14 de setembro de 1972, pág. 27.

[20] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.

[21] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de outubro de 1972, pág. 1.

[22] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de setembro de 1978, pág. 15.

[23] Ver O Globo, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta-feira, 20 de outubro de 1972, pág. Anos depois, quando o encontro no quartel de Garanhuns era somente uma lembrança quase irônica, foi a vez de Zito Alencar ser eliminado. Após se recuperar do atentado em Sapé em 1972, Zito decidiu voltar ao Exu e se candidatou a prefeito em 1977, sendo eleito em 1º de fevereiro. Governou Exu por apenas 15 meses, quando em 12 de maio de 1978 foi assassinado com dois tiros na cabeça, sentado na cabine de uma camionete D-10, estacionada defronte a Farmácia São José. O acusado de matar Zito foi o pistoleiro Gérson Lins, o “Joínha”, que na época estava preso na cadeia pública de Juazeiro do Norte, Ceará, mas saiu sem problemas para executar o crime. Na época Gerson confessou à polícia e a imprensa que o mandante da morte de Zito foi Raimundo Peixoto e a “encomenda do serviço” foi de CR$ 30.000,00 (Trinta mil cruzeiros). Depois de suas declarações à imprensa, Gérson Lins afirmou que confessou mediante tortura realizada por policiais, mas essas acusações foram refutadas.   

[24] Ver Diário de Pernambuco, edição de quinta-feira, 18 de janeiro de 1973, pág. 1.

MOEDAS BRASIL

O estalão monetário vigorante no Brasil dos tempos da descoberta não foi a moeda metálica, nem a moeda de papel, ou muito menos a moeda escritural, integrantes do sistema monetário. Através de frei Vicente do Salvador tomamos conhecimento que a moeda vigente naqueles primeiros tempos eram conchas univalves denominadas zimbo, ou “buziozinhos mui miúdos”..

Conjunto de Cypraea moneta, um gastropode marinho utilizado como moeda – Fonte – https://www.schnecken-und-muscheln.de/Gastropod-shells/Cypraeidae/Cypraea-moneta-2-5-cm::5571.html?language=en

Disse o frei Vicente – “Porém sem isto tem outras coisas, pelas quais essa terra merecia ser bem povoada; porque no rio Grande, onde parte com a capitania dos Ilhéus, tem muito pau-brasil, e no rio das Caravelas muito zimbo, dinheiro de Angola, que são uns buziozinhos mui miúdos de que levam pipas cheias, e trazem por elas navios de negros”.

Juntamente com os tais buziozinhos, outro bem de troca que constituiu o estalão monetário dessa fase inicial de nossa História foi o pau-brasil, a árvore vermelha dos nossos índios, a ibirapitanga, sustentáculo estrutural do nosso primeiro ciclo econômico.

Somente com o início da colonização, mais precisamente após 1532, quando o território português da América do Sul foi redistribuído geograficamente em capitanias, é que o estalão monetário deixou de ser constituído de produtos nativos para ser substituído definitivamente pelas moedas metálicas então em circulação em Portugal, Espanha e em menor escala na Holanda e França.

Moeda de Teston s, de 1555, onde mostra o rei Henri II Poitiers. Talvez moedas como essa circularam na França Antartica – Fonte – https://www.ma-shops.fr/lecoincollection/item.php?id=1507

O Rio de Janeiro, pelo asamento a que foi submetido muito antes de se incorporar totalmente a Coroa Portuguesa – o Rio da França Antártica – privou mais intimamente com a moeda sa, que aqui circulou livremente “aceita no seio de uma comunidade de pagamento”, sendo mais popular na época do que as moedas que circulavam em Portugal. Com Estácio de Sá e a fundação da Cidade, ocorreu um paradeiro a esse asamento: as primeiras moedas portuguesas aqui chegadas escassamente, começariam a correr mais francamente no Rio de Janeiro.

O meio circulante era tímido e bastante complicado, refletindo a confusão reinante no Reino: moedas de vários tipos e nacionalidades, com predominância das de prata e mandadas cunhar por Felipe II.

E em meio a invasão dos holandeses ao nordeste do Brasil, que se iniciou em 1624 e durou 20 anos, esses invasores cunharam moedas de ouro obsidionais, as primeiras moedas a conter o nome Brasil. Foram confeccionadas em Recife, com a finalidade de aumentar o meio circulante entre as tropas e cidadãos holandeses e os favoráveis a ocupação, tendo ficado conhecidas como Ducado Brasileiro ou Florim do Brasil.

SÉCULO XVII E AS “COLONIAIS”

Com a nova situação política de Portugal, a ascensão de Dom João IV e a normalização da vida econômica daquele país, tratou a Coroa de uniformizar o meio circulante, mandando cunhar novas moedas e estabelecendo o seu trânsito nas terras do além-mar, com o que seria saneado o comércio das capitanias do Brasil.

A recomendação régia de 6 de junho de 1655 mandou retirar de circulação as moedas de prata cunhadas por Felipe II, “por se achar falida na quantidade dos pesos e até falsificada”. Mas isso trouxe sérias complicações para o Rio de Janeiro e o resto da colônia, que lutava com absoluta falta de moedas de baixo valor e teria de enfrentar ainda mais o problema da falsificação, que aqui se praticava livremente.

Reales Espanhois de 1680 – Fonte – https://en.numista.com/catalogue/pieces61937.html

Com a quebra do padrão monetário, estabelecida pela provisão de 6 de julho de 1663, o Brasil viu-se às voltas com uma nova crise, pois teriam de ser recunhadas várias moedas de vários valores. Essas novas moedas foram mais tarde acrescidas de moedas espanholas, provenientes do comércio com o Rio da Prata, os chamados “Reales”, reconhecidos por Carta Régia em 2 de dezembro de 1684, que aprovou o seu valor em quarenta réis.

Em 1688, a lei de 4 de agosto veio subverter o sistema monetário até então existente e utilizado no Brasil. As moedas recém-cunhadas, desconhecidas das capitanias do Brasil, tinham um ágio de 20%, enquanto as antigas eram desse modo desvalorizadas. Lá no Reino o dinheiro tinha um valor, mas na colônia a mesma moeda, por ser antiga, sofria um deságio…

Moeda portuguesa de prata de 1680 – Fonte – https://www.mnmnumis.com.br/peca.asp?ID=16098332

O comércio do Rio de Janeiro não se cansou de protestar contra o estabelecimento dessas duas moedas e energicamente a Câmara representou junto às autoridades da Metrópole. Era uma injustiça contra a colônia abandonada… Somente três anos mais tarde, pela Carta Régia de 22 de novembro de 1691, a situação de equidade seria restabelecida: lá e cá a moeda aria a ter o mesmo valor.

Em 8 de março de 1694 foi mandada abrir na Bahia a Casa da Moeda. Era uma ação em caráter provisório, para atualizar em dinheiro provincial que até então circulava na colônia. O primeiro cunhador foi José Berlinque, nomeado em 6 de maio do mesmo ano e logo substituído por Domingos Ferreira Zambuja, ourives natural da Bahia. As moedas ali cunhadas ariam a ser conhecidas pelo nome de coloniais e a casa também fabricou moedas de ouro proveniente das minerações.

Moedas de 320 réis, cunhada na Bahia em 1695 – Fonte – https://bahiacolecoes.wordpress.com/2009/07/26/casa-da-moeda-da-bahia/

Em 1699 a Casa da Moeda foi transferida para o Rio de Janeiro, ano em que foram cunhadas as primeiras moedas naquela cidade. Em 1700, houve nova transferência da Casa da Moeda, desta vez para o Recife, que voltaria a fabricar moedas metálicas 55 anos após a confecção das primeiras moedas brasileiras no período do Brasil Holandês. No ano de 1702 a Casa da Moeda foi transferida novamente (e em definitivo) para o Rio de Janeiro. Até os primeiros anos do século XVIII, as Casas da Moeda da Bahia e do Rio fabricaram as coloniais, as moedinhas locais de 1, 2 e 4 mil réis de ouro, as de prata de 20, 40, 80, 160, 320 e 640 réis, enquanto a de Pernambuco se absteve do fabrico das moedas de 1 e 2 mil réis de ouro.

DA IMPORTÂNCIA DOS DOBRÕES

A Casa da Moeda no Rio de Janeiro produzia os mais variados tipos de moedas, de ouro, prata e as de cobre de 10 e 20 réis, lavradas em Portugal. Eram peças bem primitivas, trazendo algumas delas no anverso até legendas em latim, abreviadas, indicando o nome do governante e no reverso as divisas que se perpetuaram por muito tempo na moeda metálica do sistema monetário brasileiro: “In hoc signo vinces, Subquo signo nata stabit, Moderato Splendeat Usu, Aes usibus aptius auro e Pecunia totum cicumit orbem” (Neste signo você vencerá, Sob qual signo os nascidos ficarão, O uso moderado brilhará, O cobre mais adequado para uso do que o ouro, Do dinheiro cobrirá o mundo inteiro).

Moeda de dobrão de ouro de 20.000 réis, de 1725 – Fonte –https://collectprime.com/blog/20000-reis-o-dobrao-brasileiro/

Coincidindo com o ciclo do ouro — primeira metade do século XVIII — aparecem e circulam abundantemente no Rio de Janeiro os dobrões, vistosas e importantes moedas, cujo valor maior era de 20 mil réis, sendo a peça de maior peso que até hoje apareceu no Brasil e uma das mais pesadas feitas no mundo.

Juntamente com a série dos dobrões, Portugal cunhava e mandava para o Brasil grande quantidade de moedas de cobre, dos mais variados valores. Eram os dobrões reluzentes de 20 mil réis e as moedas de 6.400, 3.200, 1.600 e 800 réis de ouro, que traziam no anverso as efígies de Dona Maria I e Pedro III, e tantas outras de cobre, que faziam a felicidade do carioca do Rio colonial do tempo dos vice-reis.

O primeiro crime de moeda falsa praticado no Rio de Janeiro data de 1787, no tempo do vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza. Um presidiário inglês, em trânsito para a Austrália, de nome Tomás Barret, encontrou nova utilidade para as colheres de estanho pertencentes à copa do navio onde estava embarcado. Com muita habilidade as transformou em moedas portuguesas. Sua ‘Casa da Moeda” era ali mesmo, a bordo e sem maiores dificuldades pagou as primeiras compras — frutas, pão e algumas lembrancinhas da terra que lhe foram vendidas por um barqueiro, vítima do conto da moeda falsa. Foram cúmplices do falsário Barret alguns marujos ingleses e tripulantes dos navios que integravam uma esquadra britânica ancorada no Rio, sob as ordens de um certo Comandante Philipps.

DOM JOÃO VI E AS TRÊS PATACAS

O carioca, que já conhecia o dobrão, a dobra, a moeda, o escudo e o cruzado, cada qual valendo maior quantidade de réis, com o Príncipe Regente Dom Pedro de Alcântara aria a lidar com uma nova moeda, a partir da circulação das três patacas, depois da nacionalização do meio circulante, pois até então os “Reales” ainda tinham o seu valor.

Luís Gonçalves dos Santos, o padre Perereca, uma espécie de chefe de propaganda do Príncipe Regente, assim informa em relação ao ano de 1809: “Havendo o Príncipe Regente Nosso Senhor observado que neste Estado do Brasil circulavam moedas de diferente valor, tanto de prata como de cobre, ao mesmo tempo que o pelo intrínseco era igual, mandou pelo alvará de 18 de abril, que as moedas de prata, e cobre tivessem o mesmo valor, sendo igual ao peso e tamanho, com outra do mesmo metal, que tivesse valor diferente: assim as de seiscentos réis ficassem valendo seiscentos e quarenta réis, as de trezentos réis, trezentos e vinte, e do mesmo modo as demais, pondo-se lhes na Casa da Moeda uma marca determinada para esse efeito“.

Moeda de 960 réis de 1809, o Patacão, do acervo do Museu de Valores do Banco Central do Brasil – Fonte -https://collectprime.com/blog/moedas-raras-de-960-reis-do-museu-de-valores-do-banco-central-do-brasil/

E ainda por alvará de 20 de novembro daquele mesmo ano, o Príncipe Regente ordenaria que se “cunhasse uma nova moeda de prata no valor de novecentos e sessenta réis, ou de três patacas, que é o mesmo peso espanhol, cunhado de novo com o cunho português”.

NO IMPÉRIO

As moedas em circulação no Rio imperial eram quase as mesmas de antigamente, pois somente no segundo reinado é que algumas modificações foram introduzidas no moedário nacional. As peças de ouro continuavam sendo de 4.000, 2.000 e 1.000. As de prata eram as conhecidas 3 patacas, além das de 2, 1 e 1/2 pataca. Já as de cobre formavam a série dos vinténs, de 4, 2, 1, 1/2 e 1/4 de vintém, equivalente a 50 réis.

Moeda 5.000 Réis, Brasil Império, 1859 – Fonte – https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-2094868660-moeda-5000-reis-1859-3-tipo-imperio-copia-_JM#position%3D1%26search_layout%3Dgrid%26type%3Ditem%26tracking_id%3D3c62f189-54e1-4782-a7a1-ef06e3a47d14

Referindo-se às moedas escreveria Debret, “Num salão, em meio às confidências da boa sociedade, o dobrão multiplicado por 24 ou 30 revela a aquisição de algumas fantasias, como um cavalo, um belo negro, uma peça de musselina das índias bordada ou lamé, jóias etc. Quanto ao mil-réis, só ele é itido e multiplicado por cem na conversação dos ricos. Finalmente, a pataca que, multiplicada por doze, perde o seu nome e é substituída pela moeda de 4.000 e o modesto vintém que multiplicado por 16 se confunde com a pataca e são relegados para a linguagem universal dos negociantes de varejo e dos consumidores de todas as classes’’.

Era o saudoso tempo dos vinténs, onde se alugava por 19.600 réis um importante sobrado na Rua Direita (atual rua Primeiro de Março, Centro do Rio) e um outro na Rua do Ouvidor (Centro do Rio) por 33.800 réis. Mas logo tudo mudou e começou a circular uma nova série de moedas.

O Governo da República dos Estados Unidos do Brasil mandou cunhar na Casa da Moeda as primeiras moedas de ouro com as características republicanas. Eram de 20.000 e 10.000 réis, ostentando o busto da liberdade, constelação do Cruzeiro do Sul, o dístico “Ordem e Progresso” e a data 15 de Novembro de 1889. Foram cunhadas também as moedas de prata de 2.000, 1.000 e 500, e as de níquel de 200 réis, série que por muito tempo circulou, tornando-se tradicional nos primeiros anos da década de 1900. As moedas de cobre de 40 réis, que no anverso traziam escrito “A Economia Faz a Prosperidade”, e as de 20 réis, chegaram a ser cunhadas até 1912. Esta última, por trazer o dístico “Vintém Poupado, Vintém Ganho”, ou a ser apelidada “Vintém poupado”.

Até então só a figura da Liberdade, como seu barrete frígio, enfeitava as nossas moedas, mas em 1900, com as comemorações do IV Centenário do Descobrimento do Brasil, Pedro Alvares Cabral ou a ocupar o lugar daquela ilustre dama… E um homem barbado, em pose de declamador, iniciou a mais longa das séries com efígie de varões ilustres. Sendo uns fotogênicos, outros monstruosos, uns valorizando e outros desvalorizando esteticamente a nossa moeda.

Moeda de 4.000 réis de prata de 1900 – Fonte – https://www.moedasdobrasil.com.br/moedas/descobrimento.asp

Essa moeda de 4.000 réis foi apelidada de Cabral, logo os brasileiros ariam a trazer nos bolsos as moedas com um verdadeiro álbum de varões ilustres.

Em 1922 são cunhadas para comemorar o Centenário da Independência do Brasil séries de moedas de com os bustos conjugados de Dom Pedro I e Epitácio Pessoa, moedas conhecidas como “Xifópagos” ou “Duas Caras”. Depois vieram peças como busto de Dom João III, Martim Afonso de Sousa e João Ramalho. Até o índio Tibiriçá teve a sua moedinha de 100 réis. Caxias abre uma coleção com uma moedinha de 2.000 réis. O Padre Anchieta timidamente aparece nas de 1.000 e o Regente Feijó se contenta com as pratinhas de 500 réis. Já Santos Dumont obteve cotação mais alta, com uma moeda de 5.000 réis em prata e Osvaldo Cruz se contentou com uma moedinha de níquel de 400 réis. Carlos Gomes, com toda a sua lira, não ou dos 300 réis, enquanto Mauá, que foi banqueiro, ficou com 200 réis. Já o Almirante Tamandaré imprensou-se no desvalorizadíssimo 100 réis, que na época nem mais pagava uma agem de bonde.

Moeda de 5.000 réis de 1936, lembrando Santos Dumont – Fonte – https://www.diniznumismatica.com/2016/08/5000-reis-santos-dumont-e-suas.html#google_vignette

O ditador Getúlio Vargas inicia uma nova fase, ocupando dos 400 aos 100 réis, moedas a que daria uma série de apelidos, com prevalência, todavia, do apelido carinhoso de “Getulinho”. E falando em presidentes, por ocasião do centenário de Floriano Peixoto foi criada uma moeda de 2.000 réis. Já o filósofo, poeta, crítico e jurista Tobias Barreto foi para a de 1.000 réis – metade de Floriano – e Machado de Assis, depois de tanta glória, ficou só nos 500 réis.

Texto adaptado a partir do escrito originalmente por Odorico Pires Pinto e publicado no Caderno JB do IV Centenário, quarta feira, 20 de janeiro de 1965, páginas 142 e 143.

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A FAZENDA RIBEIRO DE SÃO JOSÉ DE MIPIBU E SUAS HISTÓRIAS

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Muitas das antigas e tradicionais fazendas do interior do Nordeste vem sofrendo de intenso abandono e destruição, fazendo com que suas histórias caiam no puro e simples esquecimento.

Alguns acham que isso é até uma coisa boa, pois muitos desses locais foram antros de intensas opressões, iniquidades, perseguições, mortes e outras mazelas. O problema dessa ideia é que várias dessas antigas estruturas possuem enorme importância histórica, com informações que ampliam o conhecimento sobre o ado da nossa região e a perda destes locais é algo bastante complicado e irreversível. 

Casa Grande da Fazeneda Ribeiro, em São José de Mipibu – Foto – Rostand Medeiros

Por isso é sempre positivo encontrar uma antiga propriedade rural bem preservada e com muitas histórias. Esse é o caso da Fazenda Ribeiro, a cerca de seis quilômetros da cidade potiguar de São José de Mipibu.

A casa sede está, pelo menos para que a vê de fora, muito bem conservada, pintada de branco e detalhes azuis.

Foto – Rostand Medeiros

Segundo o pesquisador e blogueiro Daltro Emerenciano, em um artigo sobre a história da Fazenda Ribeiro (https://www.blogdedaltroemerenciano.com.br/2012/10/pedacos-do-nosso-rio-grande-do-norte/), informou que o agricultor Francisco Sales e Silva foi o patriarca da família Ribeiro Dantas e Duarte e teria construído uma primeira casa grande na área da propriedade Ribeiro entre o final do século XVIII e o início do seguinte. Nesse mesmo período foi “erguida uma capela em estilo colonial barroco, em homenagem a São João e também montada em separado uma primitiva engenhoca movida à tração animal e destinada a fabricação de açúcar bruto e seus derivados e, por conseguinte, aquele local ou a ser a primeira sede da Fazenda Ribeiro”.

Foto – Rostand Medeiros

Emerenciano comentou que essa propriedade esteve envolvida nos acontecimentos ligados a chamada Revolução Pernambucana de 1817. Ele publicou que “Pelo relato que se tem daqueles que pesquisaram sobre o movimento em prol da independência do Brasil e que culminou com a eclosão da revolução de 1817, as reuniões para a divulgação das ideias liberais e adesão do maior número de simpatizantes, eram realizadas em pontos afastados da capital, inclusive na cômoda e espaçosa Casa Grande do SÍTIO RIBEIRO. Ali o Coronel de Milícias, André de Albuquerque, mentor do movimento em nossa província, conferenciava com os homens de influência de Natal e vilas do interior, ocasião em que era oferecido aos convivas um farto banquete servido em baixelas de prata”.

Necrológico de Horácio Cândido Sales e Silva, publicado em 28 de setembro de 1903.

Foi um neto de Francisco Sales e Silva, chamado Horácio Cândido Sales e Silva (26/09/1838 – 27/09/1903), bacharel em direito, que transferiu a sede da propriedade para um local mais apropriado, onde construiu a nova sede, a casa destinada ao engenho e uma capela, cujos padroeiros são Santa Ana e São Joaquim. Infelizmente não conseguimos apurar as datas dessas construções, mas soubemos que Horácio Sales importou da Europa o maquinário e órios necessários a montagem da moenda do engenho movida a vapor, em substituição a antiga engenhoca movida à tração animal.

Capela da Fazenda Ribeiro – Foto – Rostand Medeiros.

Sobre a capela existente ela tem uma característica muito interessante que é o seu alpendre, algo que não vejo com frequência nas antigas capelas do Rio Grande do Norte.

Horácio casou duas vezes. A sua primeira esposa, Anna Vivina de Sales e Silva, nasceu em 17 de dezembro de 1845, teve oito filhos e faleceu em 6 de junho de 1877. Já a segunda, Joaquina Marcolina Ribeiro Dantas (27/01/1854 – 27/02/1941), teve cinco filhos, sendo o terceiro um menino que se chamou Celso Dantas Sales e nasceu na Fazenda Ribeiro em 4 de julho de 1884.

Lápides de Horácio Sales e suas esposas – Foto – https://www.familysearch.org/

Esse jovem ingressou na Faculdade de Direito do Recife, bacharelando-se em 10 de dezembro de 1904. Um ano depois foi nomeado promotor público de Acari, onde conheceu Josefa Leonila de Araújo (16/04/1903 – 22/11/1959), conhecida como Teca, com quem casaria no ano de 1918. Essa jovem era filha dos acarienses Manoel Ubaldo da Silva Neto e Leonila Sérvulo de Araújo.

Celso Dantas Sales, pai de Dom Eugênio, em 1904 – Foto – Fundação Joaqiuim Nabuco.

Depois o Doutor Celso foi transferido para o estado Amazonas, onde exerceu o cargo de juiz de direito nas cidades de Lábrea, Benjamin Constant e outros municípios. Voltando ao Rio Grande do Norte em 1914, atuou como juiz em Acari. Em 8 de novembro de 1920, ainda em Acari, nasceu o segundo filho do juiz Celso e Dona Teca, que foi batizado como Eugênio de Araújo Sales.

No mesmo ano do nascimento do segundo filho, o juiz Celso foi designado para a cidade potiguar de Nova Cruz, sendo depois transferido, a pedido, para a Comarca de São José do Mipibu. Nessa cidade nasceram outros filhos do casal, inclusive Dom Heitor de Araújo Sales.

O pequeno Eugênio, ao centro, com os pais e o irmão Sílvio – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%AAnio_Sales

Na sequência veio trabalhar em Natal, onde foi membro das Juntas de Sanções, depois foi nomeado desembargador por decreto em 30 de novembro de 1926 e atuou como Procurador Geral do Estado, conforme está descrito em seu necrológico no jornal natalense “A República”, publicado em 16 de outubro de 1934, quatro dias após o seu falecimento em Fortaleza, Ceará, devido a tuberculose.

Infelizmente sobre a vivência e convivência da família do Doutor Celso, Dona Teca e seus filhos na Fazenda Ribeiro eu não consegui maiores informações, mas seguramente o jovem Eugênio se tornou o potiguar com a mais expressiva história de atuação na Igreja Católica.

Depois de fazer estudos humanísticos no Colégio Santo Antônio em Natal, ingressou no seminário em 1937. Foi ordenado por Dom Marcolino Dantas sacerdote em 21 de novembro de 1943. Em seguida ou a exercer o ministério pastoral em Nova Cruz e na sequência foi chamado ao Seminário de Natal, onde atuou como encarregado de suprimentos, professor e diretor espiritual. Entre muitas outras atividades, o Padre Eugênio foi capelão da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte, no posto de Capitão.

Sino da capela da Fazenda Ribeiro – Foto – Rostand Medeiros.

Em 1 de junho de 1954, aos 33 anos, foi nomeado bispo auxiliar de Natal pelo Papa Pio XII e ordenado bispo no dia 15 de agosto de 1954, pelas mãos de Dom José de Medeiros Delgado, Dom Eliseu Simões Mendes e de Dom José Adelino Dantas. Posteriormente, em outubro de 1962, foi designado apostólico da Arquidiocese de Natal. Aqui promoveu uma série de iniciativas que rapidamente se espalharam por todo o Nordeste do Brasil: fundou o serviço de assistência social aos trabalhadores rurais, centros educacionais e transmissões de rádio para ensino fundamental e médio.

Região rural da Fazenda Ribeiro – Foto – Rostand Medeiros.

Em 6 de julho de 1964 foi nomeado Apostólico em Salvador, Bahia, e em 29 de outubro de 1968 tornou-se Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, pelo Papa Paulo VI. Nesta Arquidiocese iniciou novas iniciativas pastorais e promoções sociais para os menos favorecidos. Também dirigiu o departamento de ação social do Conselho Episcopal Latino-Americano e participou do Concílio Vaticano II.

Foi proclamado Cardeal pelo Papa Paulo VI no consistório de 28 de abril de 1969. Em 29 de outubro de 1971, Paulo VI nomeou-o Arcebispo do Rio de Janeiro. Dom Eugênio de Araújo Sales faleceu em 9 de julho de 2012.

BATUQUES EM LISBOA

Earle retrata uma dança popular no Rio de Janeiro no século XIX. Rítmos africanos fizeram parte da cultura musical de Barbosa desde a sua juventude.
Earle retrata uma dança popular no Rio de Janeiro no século XIX. Ritmos africanos fizeram parte da cultura musical de Barbosa desde a sua juventude.

Levando as batidas do lundu para a Europa, Domingos Caldas Barbosa fez sucesso entre a elite portuguesa

Adriana de Campos Rennó – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/batuques-em-lisboa

Quando a primeira música foi gravada no Brasil, em 1902, havia ali a influência de um poeta e compositor que fez sucesso muito antes, ainda no século XVIII. A canção “Isto é bom”, de Xisto Bahia (1841-1894), era um lundu, gênero musical do qual foi precursor um brasileiro que viveu muitos anos em Portugal. Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) misturou aos seus versos ritmos melódicos tipicamente africanos, dos batuques dos escravos. E deu um tom de novidade à poesia feita na sua época.
A importância do lundu, e, consequentemente, de Barbosa, está na maneira como esse gênero inspirou a criação de outros – o maxixe, inventado no século XIX, é um exemplo – e a carreira de artistas considerados pioneiros da música popular brasileira, como Chiquinha Gonzaga (1847-1935).

Barbosa deixou uma obra que contribuiu para a formação da identidade brasileira. O poeta viveu numa época em que a sociedade ainda procurava imitar em tudo a portuguesa, vista como o modelo a ser seguido. O mesmo acontecia na literatura, em que os autores lusos eram a grande referência. Mas os novos ritmos e letras com influência africana sugeriam que a Colônia era diferente da metrópole: maliciosa, malemolente, sensual, irreverente e encantadora – características que hoje são associadas ao modo de ser do brasileiro.

Com suas composições, Barbosa introduziu uma poesia menos rígida do que a neoclássica, que era a corrente em Portugal e se baseava numa linguagem nobre, elevada, capaz de manter os sentimentos sob o controle da razão. Ao “violar” as regras da época, o poeta abriu caminho para o que outras gerações consagrariam no futuro: uma expressão romântica, mais livre e subjetiva, repleta de versos com jogos de palavras que tinham uma forte musicalidade. 

“Nhanhá faz um pé de banco/ Com seus quindins, seus popôs/ Tinha lançado seus laços/ Aperta assim mais os nós (…) Logo que nhanhá saiu/ Logo que nhanhá dançou/ O cravo que tinha ao peito/ Envergonhado murchou”, dizia a letra de um de seus lundus. Barbosa já escrevia com a intenção de ter seus poemas cantados, e não lidos individualmente. Eles deviam servir de fundo para as danças de salão nas festas, fossem populares ou nobres, exaltando a graça do remelexo das mulheres de forma sensual e atrevida.

Já as modinhas – outro gênero musical do qual Barbosa também foi precursor – tentavam expressar os sofrimentos de amores não correspondidos ou nunca concretizados, mas de forma menos erótica do que os lundus: “Eu sei, cruel, que tu gostas,/ Sim gostas de me matar;/ Morro, e por dar-te mais gosto/ Vou morrendo devagar/ […] O veneno do ciúme/ Já principia a lavrar/ Entre pungentes suspeitas/ Vou morrendo devagar”. A musa desses poemas é inalcançável. O ritmo é mais arrastado, bem diferente das marcações aceleradas e pulsantes do lundu. A melancolia é um traço forte das modinhas, mais lentas e contidas, e ainda assim populares.

Como sua poesia, o próprio Domingos era resultado de uma mistura que marcou presença na formação do Brasil. Mulato, ele era filho de um funcionário público português, Antônio de Caldas Barbosa, e de uma escrava angolana de nome desconhecido. Nasceu assim que o navio que trazia seus pais da África aportou no Rio de Janeiro – ou mesmo dentro do navio, como sugerem alguns biógrafos – e estudou no Colégio dos Jesuítas, como a maioria dos filhos de portugueses abastados. Nessa escola escreveu suas primeiras poesias, com tendência satírica e repentista. Após servir como soldado na Colônia do Sacramento – região disputada por Portugal e Espanha, hoje parte do Uruguai –, foi enviado a Coimbra, Portugal, para estudar na universidade de 1770 a 1772.

Os planos de Barbosa mudaram assim que ele se instalou em Portugal e recebeu a notícia da morte de seu pai. Sozinho numa terra estrangeira onde não tinha parentes, abandonou a ideia de estudar porque precisava tratar do sustento. ou a escrever versos encomendados pelos estudantes e a cantar em festas universitárias. Ele compunha, na maioria das vezes, na forma de improviso, para musicar e acompanhar os versos ao som de sua viola de arame. O apelo ao exotismo da mestiçagem cultural brasileira servia como uma espécie de “tempero” para a sua poesia, que fazia sucesso entre os jovens. Mas era durante as férias da universidade que Barbosa tinha mais dificuldades. A cidade ficava vazia, e o poeta, sem trabalho, chegou a ar fome.   

Sua vida mudou ao ser apadrinhado por dois nobres portugueses que conhecera em uma festa: José Luís de Vasconcelos e Sousa (1740-1812), genro do conde de Pombeiro, e seu irmão Luís de Vasconcelos e Sousa (1742-1809). De tão encantados com o talento de Barbosa, os dois o trataram como se fosse da família. Logo o ajudaram a se instalar definitivamente na corte em Lisboa, conseguindo para ele o cargo de capelão da Casa da Suplicação (o supremo tribunal de justiça do Reino de Portugal), o que o faria ser conhecido também como “Padre Caldas”.

Na capital do Reino, Barbosa participou das atividades artísticas patrocinadas pelo marquês de Pombal (1699-1782). Mesmo após a ascensão ao trono de D. Maria I (reinado, 1777-1816), o poeta continuou frequentando o Palácio Real. Seu prestígio no meio intelectual cresceu a tal ponto que em 1790 ele ou a presidir a Nova Arcádia, agremiação literária que se reunia no Palácio dos Condes de Pombeiro e pretendia reavivar a Arcádia Lusitana, associação semelhante extinta em 1774.

Alguns escritores consagrados da época, como Bocage (1765-1805), Filinto Elísio (1734-1819) e Agostinho de Macedo (1761-1831), participavam da Nova Arcádia, que deixou de existir em 1794, após desentendimentos entre seus membros. Barbosa às vezes assinava como Lereno Selinuntino, um pseudônimo bem ao gosto da moda pastoral do Arcadismo, o movimento literário do século XVIII que, retomando modelos clássicos, se opunha aos exageros do barroco, privilegiando temas ligados ao mundo natural. 

No entanto, nem tudo era luxo e festa na vida do poeta brasileiro. Alguns de seus colegas de literatura criticavam duramente sua obra e o viam como um simples “modinheiro”, um mero compositor de letras de músicas a serviço da diversão, de um sentimentalismo derramado, sem qualquer riqueza estética que o pudesse qualificar como um verdadeiro homem das letras.

Domingos Caldas Barbosa foi um sacerdote, poeta e músico brasileiro, autor de lundus e criador da Modinha. Foi membro da Nova Arcádia de Lisboa.
Domingos Caldas Barbosa foi um sacerdote, poeta e músico brasileiro, autor de lundus e criador da Modinha. Foi membro da Nova Arcádia de Lisboa.

Essa desconfiança persistiu ao longo dos anos, mesmo após sua morte, em 9 de novembro de 1800, em Lisboa. E é um dos fatores responsáveis por ele não ser tão conhecido quanto outros artistas da sua época, como Bocage e Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ainda que a nascente geração romântica do século XIX tivesse promovido um resgate da sua memória com a publicação no Brasil, em 1826, do segundo volume de Viola de Lereno, coletânea com as composições de Barbosa. O primeiro volume havia sido lançado pelo próprio poeta em 1798, em Portugal.

Valorizando Barbosa, os românticos buscavam uma literatura nacional para sustentar a pátria que havia acabado de conquistar a independência política em 1822. E conseguiram: mesmo sem ser muito conhecida, a obra do poeta permanece, mais de 200 anos depois, nas raízes da cultura brasileira.

Adriana de Campos Rennó é professora da Universidade Paulista e autora de Caldas Barbosa e o pecado das orelhas: a poesia árcade, a modinha e o lundu (textos recolhidos e antologia poética) (Arte & Ciência, 2005).

Saiba Mais – Bibliografia

BARBOSA, Domingos Caldas. Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,     1944. v.1 e v.2.
TINHORÃO, José Ramos. Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola, da modinha e     do lundu (1740-1800). São Paulo: Ed.34, 2004.

Saiba Mais – Discografia

História da música brasileira II (vários, s/d)
Marília de Dirceu (vários, s/d)
Modinhas fora de moda (vários, s/d)
Modinhas e lunduns dos séculos XVIII e XIX (vários, 1997)
Música de salão do tempo de D. Maria I (vários, 1994)
1900: a virada do século (vários, s/d)
Ninguém morra de ciúme (vários, s/d)
Viagem pelo Brasil (vários, s/d)

A SAÚDE NOS TEMPOS DO IMPERADOR

Ossada no Cemitério dos Pretos Novos: parte dos escravos já chegava ao Brasil com a bactéria da tuberculose - Foto - Léo Ramos
Ossada no Cemitério dos Pretos Novos: parte dos escravos já chegava ao Brasil com a bactéria da tuberculose – Foto – Léo Ramos

Análise de ossadas revela o perfil de doenças que atingiram diferentes populações do Rio de Janeiro entre os séculos XVII e XIX

SALVADOR NOGUEIRA e RICARDO ZORZETTO | Edição 211 – Setembro de 2013 – FONTE – http://revistapesquisa.fapesp.br/2013/09/12/a-saude-nos-tempos-do-imperador/

Uma equipe de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está decifrando as condições de saúde da população do Rio de Janeiro nos períodos colonial e imperial. E dois resultados obtidos recentemente chamam a atenção. O primeiro é que as doenças causadas por vermes eram bastante disseminadas: afetavam os pobres, que sabidamente viviam em ambientes insalubres, e também os ricos, que em princípio estariam mais protegidos por disporem de melhores condições sanitárias. Já o segundo resultado atribui uma possível nova origem para a tuberculose dos escravos africanos. Apresentado em maio deste ano na revista Emerging Infectious Diseases, ele indica que ao menos parte dos negros já teria chegado ao Brasil com a infecção, e não se contaminado depois de aportar no Rio, a então capital do país.

O grupo coordenado pela bióloga Alena Mayo Iñiguez na Fiocruz chegou a essas conclusões depois de realizar análises genéticas e parasitológicas em esqueletos humanos encontrados nos últimos anos em três sítios arqueológicos do Rio: o cemitério dos Pretos Novos, o da Praça XV e o da Igreja Nossa Senhora do Carmo. Hoje confinados em uma área relativamente pequena no centro da capital fluminense – o da Praça XV e o do Carmo ficam a poucas quadras de distância um do outro, na área mais central da cidade, enquanto o dos Pretos Novos está a cerca de 2 quilômetros a noroeste dali, na zona portuária –, esses antigos cemitérios receberam no ado os restos mortais de pessoas de origens sociais bem distintas. Por essa razão, as informações extraídas dessas ossadas permitem agora entender melhor como viviam e morriam os moradores do que foi o maior e mais importante centro comercial do país nos períodos colonial e imperial.

Nos séculos XVIII e XIX o cemitério da Praça XV de Novembro recebeu corpos de pessoas de todas as classes sociais, sobretudo das que morriam durante as epidemias, motivo pelo qual ele dá uma ideia geral do estado de saúde da população carioca na época. “Nessas ossadas identificamos marcadores genéticos de ameríndios, europeus e africanos”, conta Alena, pesquisadora do Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos do Instituto Oswaldo Cruz, da Fiocruz, e coordenadora dos estudos.

Cemitério nobre: sítio arqueológico na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde eram enterrados os abastados - Foto - Léo Ramos
Cemitério nobre: sítio arqueológico na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde eram enterrados os abastados – Foto – Léo Ramos

A análise do material coletado de 10 pessoas mostrou que 80% delas apresentavam infecção por parasitas intestinais – em especial, vermes e protozoários. Os parasitas mais comuns eram os vermes do gênero Trichuris. De corpo alongado e com até 4 centímetros de comprimento, esses vermes vivem nos intestinos e, em grande número, podem causar sangramentos e anemia – além deTrichuris, também foram achados ovos de tênia e de lombriga. O grupo de Alena encontrou ovos de Trichuris em 70% das amostras estudadas. De acordo com os pesquisadores, essa taxa de infecção é até conservadora, uma vez que o material havia sido lavado antes de ser analisado. No caso dos cemitérios da Praça XV e dos Pretos Novos, o grupo da Fiocruz teve de trabalhar com o material coletado em operações de salvamento arqueológico, parte encontrada durante as obras de revitalização da zona portuária da cidade, enquanto na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, a antiga Sé do Rio, as amostras foram analisadas no próprio local em que foram encontradas durante a restauração do prédio em 2007. “Fizemos a coleta com foco na pesquisa genética”, conta Alena. Depois de estudados, os ossos foram reenterrados.

Na Igreja Nossa Senhora do Carmo, onde entre os séculos XVII e XIX eram sepultados os mortos das famílias abastadas, em geral de origem europeia, a taxa de infecção foi de apenas 12%. Apesar de mais baixo, o número surpreendeu os pesquisadores. “A variedade de parasitas encontrada ali é igual à observada na Praça XV”, diz Alena. “Isso mostra que todos, ricos e pobres, estavam expostos ao mesmo ambiente e aos mesmos riscos.”

Doença de europeu

No caso da tuberculose, porém, os pesquisadores encontraram um padrão oposto ao das verminoses. A doença pulmonar causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis era bem mais comum entre as pessoas mais ricas do que entre as pobres. A farmacêutica Lauren Jaeger, aluna de doutorado de Alena, e o restante da equipe identificaram material genético da bactéria da tuberculose nos restos humanos de 17 dos 32 indivíduos (quase todos descendentes de europeus) encontrados na Igreja Nossa Senhora do Carmo e identificados pela equipe do arqueólogo Ondemar Dias, do Instituto de Arqueologia Brasileira. Já entre os negros enterrados no Cemitério dos Pretos Novos a taxa de infecção por tuberculose foi de 25%, segundo estudo feito em parceria com a paleopatologista Sheila de Souza, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz.

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Na opinião dos pesquisadores, a frequência maior de tuberculose entre os descendentes de europeus condiz com a situação histórica, já que naquele período a prevalência da enfermidade era alta na Europa. “Os europeus exerceram um papel importante na disseminação dessa doença no Novo Mundo”, conta Alena.

Embora não se possa negar a influência europeia no espalhamento da tuberculose, a análise dos restos mortais dos escravos enterrados no Cemitério dos Pretos Novos está levando os pesquisadores a repensar uma crença antiga: a de que a África era um continente livre da enfermidade e que os escravos trazidos para o Brasil só se infectaram aqui.

Morte ao chegar

Redescoberto em 1996 durante a reforma de uma casa no bairro da Gamboa, quando operários abriram sondagens para fazer o alicerce e encontraram milhares de dentes e fragmentos de ossos humanos, o Cemitério dos Pretos Novos recebeu de 1769 a 1830 os negros que morriam durante a longa travessia do Atlântico ou logo depois de aportar no país. Nesse cemitério, os corpos eram atirados em valas comuns, pouco profundas. Muitas vezes eram macerados com tocos de madeira, o que torna a identificação dos esqueletos difícil – uma análise do material realizada pela equipe do bioantropólogo Ricardo Ventura Santos sugere que a maioria dos ossos encontrados ali era de homens que morreram quando tinham entre 18 e 25 anos de idade (ver Pesquisa FAPESP nº 190).

Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Rio de Janeiro - Foto - Léo Ramos
Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Rio de Janeiro – Foto – Léo Ramos

“Como esses escravos nem saíam do porto, só podem ter vindo infectados”, diz Sheila, coautora do estudo publicado na Emerging Infectious Diseases. “Essa condição de portadores da bactéria certamente aumentava o risco de essas pessoas adoecerem mais tarde, sob as duras condições de vida que levavam em regime de escravidão.” Até o momento, porém, não é possível saber se o contágio ocorreu no contato com os europeus na África ou mesmo antes, com cepas mais antigas da bactéria que já poderiam circular por lá.

Alena e seu grupo esperam encontrar a resposta para essa dúvida nos próximos anos. Para isso precisam aplicar testes moleculares que permitam comparar o DNA das bactérias encontradas nos restos mortais do Cemitério dos Pretos Novos com as de cepas modernas da doença. “Estamos adaptando algumas técnicas de biologia molecular para trabalhar com o material antigo”, diz Alena. “Além de permitir identificar os parasitas que afetavam aquelas populações, o estudo das sequências de DNA permite fazer uma análise da evolução [desses patógenos] e comparar com bactérias que circulam hoje.”

Artigos científicos
JAEGER, L.H. et alMycobacterium tuberculosis complex in remains of 18th–19th century slaves, BrazilEmerging Infectious Diseases. v. 19, n.5. 5 mai. 2013.
JAEGER, L.H. 
et alPaleoparasitological analysis of human remains from a European cemetery of the 17th–19th century in Rio de Janeiro, BrazilInternational Journal of Paleopathology. 20 mai. 2013.
JAEGER, L.H. et alPaleoparasitological results from XVIII century human remains from Rio de Janeiro, BrazilActa Tropica. v. 125, n.3, p. 282-286. mar. 2013.
JAEGER, L.H. et alMycobacterium tuberculosis complex detection in human remains: tuberculosis spread since the 17th century in Rio de Janeiro, Brazil.Infection, Genetics and Evolution. v. 12, n.4, p. 642-648. jun. 2012.

SÚPLICA CEARENSE

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Decifre se for capaz! Requerimento assinado em 1744 por padre de vila no Ceará pede ao rei de Portugal, D. João V, para comprar ornamentos e paramentos para a igreja da vila, em situação de miséria devido à seca 

Autor – Expedito Eloísio Ximenes

O original deste documento, datado de 20 de agosto de 1744, encontra-se no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Mas não é difícil ar sua versão fac-similada nos arquivos públicos dos estados brasileiros.

O texto se inicia pelo vocativo Senhor abreviado, e as 22 linhas do documento são preenchidas até o fim da margem direita, com espaços regulares entre as linhas, ao fim das quais aparece a do reverendo padre João Saraiva de Araújo. Na margem esquerda inferior, há uma informação que parece escrita por outra mão. Na margem superior, dois despachos do Conselho Ultramarino – com seis rubricas dos conselheiros no primeiro, e quatro no segundo. À esquerda, mais duas informações escritas por outras pessoas.

A escrita é a humanista, em vigor desde o século XVI, de fácil leitura por sua simplicidade, apesar das variações conforme o grau de conhecimento e o estilo de quem escreve. O traçado é regular e inclinado para a direita, mas as hastes de algumas letras são caídas para a esquerda – caso da letrad. Em finais de palavras, a letra sapresenta uma cauda longa para a esquerda, semelhante ao formato doj interno, como nas palavras paramentos e hajão. No início e no meio de palavras, porém, o s tem formato diferente. O f tem formato semelhante ao L maiúsculo, como na palavra Leal, masé escrito da linha para cima, enquanto o L é da linha para baixo; da parte inferior do traçado vertical puxa-se outro para a esquerda formando um ângulo reto, como em falta e fallencia. A letra h tem forma de E maiúsculo, o grafemar no início de palavra tem formato grande e muitas vezes se confunde com maiúsculo.

Os escribas costumavam juntar as palavras clíticas – pronomes oblíquos, preposições e conjunções – com as palavras que seguem. A conjunção aditivae se emenda à palavra seguinte em casos como eoutros, e a preposição de, em degadosedoque.

O requerimento é bem escrito, com linguagem culta e um discurso convincente. A grafia não apresenta muitas variações, pois o autor tem bom domínio da língua por tratar-se de um padre com boa formação. Há falta de acentuação em algumas palavras e uso de letras maiúsculas desnecessárias, ocorrências típicas do período em que não havia normas ortográficas.

Expedito Eloísio Ximenes – é professor da Universidade Estadual do Ceará e autor de Fraseologias Jurídicas: estudo filológico e linguístico do período colonial (Appris, 2013).

Igreja de Nossa Senhora da Expectação (Matriz de Icó) na década de 1920. Construção que remonta ao século XVIII
Igreja de Nossa Senhora da Expectação (Matriz de Icó) na década de 1920. Provavelmente foi neste local que este documento histórico pode ter sido produzido. A construção deste templo remonta ao século XVIII

Quando a seca é real

O requerimento assinado pelo padre João Saraiva de Araújo, da vila do Icó, no centro-sul do Ceará, é um pedido ao rei de Portugal, D. João V, para comprar ornamentos e paramentos para a igreja da vila, em situação de miséria devido à seca. Ele pede melhores condições de trabalho para istrar a vida espiritual dos vassalos de Sua Majestade, para que não lhes falte o “pasto espiritual”. O Ceará era uma das capitanias mais pobres do Brasil Colônia.

Além da situação caótica da vila do Icó, o documento é um testemunho da relação entre Igreja e Estado, quando os religiosos eram funcionários da Coroa e dela dependiam para tudo. O monarca era quase onipresente em qualquer rincão de seus domínios.

Primeira construção edificada na cidade de Icó, por volta de 1709. Época de grandes agitações e bravas lutas, entre as famílias, Montes e Feitosas, que com prestígios e bravura defendiam suas terras. Por ocasião de uma destas lutas, a filha do coronel Francisco Monte e Silva, foi assassinada. A esposa deste bravo pioneiro, sensibilizada por sepultar sua filha em pleno campo doou 1 légua de terra e mandou erigir uma capelinha para servir de túmulo a sua filha, sob invocação de Nossa Senhora do Ó. Também por essa época, o lugar antes chamado Icó dos Montes ou a ser conhecido como Arraial, depois Sítio Nossa Senhora do Ó. Hoje a capelinha que serviu de túmulo para os dominantes daquela época, é a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Expectação. Duas grandes reformas sofreu a capela para se tornar a então matriz de hoje, uma em 1785 e outra em 1911. No ano de 2000 a Igreja Matriz foi restaurada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, e devolvida à comunidade local em 15 de abril e 2000. A sua padroeira é Nossa Senhora da Expectação. Faz parte do Patrimônio Histórico Nacional.  Fonte:http://cdlico.com - Fonte da foto - aldecyalves.blogspot.com.br/2012/01/igrejas-do-ceara-vii-patrimonio.html
Primeira construção edificada na cidade de Icó, por volta de 1709. Época de grandes agitações e bravas lutas, entre as famílias, Montes e Feitosas, que com prestígios e bravura defendiam suas terras. Por ocasião de uma destas lutas, a filha do coronel Francisco Monte e Silva, foi assassinada. A esposa deste bravo pioneiro, sensibilizada por sepultar sua filha em pleno campo doou 1 légua de terra e mandou erigir uma capelinha para servir de túmulo a sua filha, sob invocação de Nossa Senhora do Ó. Também por essa época, o lugar antes chamado Icó dos Montes ou a ser conhecido como Arraial, depois Sítio Nossa Senhora do Ó. Hoje a capelinha que serviu de túmulo para os dominantes daquela época, é a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Expectação. Duas grandes reformas sofreu a capela para se tornar a então matriz de hoje, uma em 1785 e outra em 1911. No ano de 2000 a Igreja Matriz foi restaurada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, e devolvida à comunidade local em 15 de abril e 2000. A sua padroeira é Nossa Senhora da Expectação. Faz parte do Patrimônio Histórico Nacional.
Fonte:http://cdlico.com – Fonte da foto – aldecyalves.blogspot.com.br/2012/01/igrejas-do-ceara-vii-patrimonio.html

Solução do “Decifre”

Haja vista o procurador da fazenda. Lisboa, 23 de janeiro de 1745.

[Rubricas dos conselheiros do Conselho Ultramarino]

Informe o provedor da fazenda real de Pernambuco

com seu parecer. Lisboa, 10 de fevereiro de 1745.

[Rubricas dos conselheiros do Conselho Ultramarino]

Este requerimento é de

graça a que Sua Majestade

deferirá como for servido.

[Rubrica – não é possível identificar]

Senhor

Provido no benefício de cura desta freguesia de Nossa Senhora da

Expectação do Icó, capitania do Ceará Grande, por provimento

de meu Prelado e Excelentíssimo Bispo de Pernambuco, entrei a exercer

o ofício pastoral, e tomando posse do curato no ano de mil sete-

centos e quarenta e dois achei a Igreja Matriz tão falta de

ornamentos, e paramentos necessários para cinco altares com o maior

e outras tantas portas com a principal, e um púlpito, que já

os não tem capazes com que se celebrem os sacrifícios nas festas

solenes, e ofícios funerais, sendo motivo e causa a grande pobre-

za desta terra, na qual suposto hajam alguns efeitos de gados

vacum e cavalar, estes há bastante anos não rendem dinheiro pela

falência do negócio, além de estar muito destruída, e vexada com secas

e esterilidades que tem experimentado, à vista do que brevemente ficará

o povo sem o pasto espiritual, se Vossa Majestade como monarca tão

zeloso do culto divino não posar os olhos de sua benigna piedade

e clemência em tanta necessidade, provendo a dita matriz com os ditos

ornamentos, e paramentos por esmola, para maior honra de Deus,

e salvação de seus católicos vassalos. Vila do Icó, 20 de agosto

de 1744.

Os pés de Vossa Real Majestade

os beija o mais  reverente  e leal vassalo

João Saraiva de Araújo

Do cura do Icó

Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/decifre/suplica-cearense

Sobre a Igreja Matriz de Icó – CE – http://iconacional.blogspot.com.br/2008/10/ic-cear-brasil-igreja-de-nossa-senhora.html