Para quem não conhece, o Pé Grande, Bigfoot em inglês, também comumente referido como Sasquatch, é uma pretensa criatura mítica grande e peluda, musculosa, bípede, semelhante a um macaco, coberta por pelos negros, castanhos escuros ou avermelhados, que alguns alegam habitar florestas na América do Norte, particularmente no noroeste dos Estados Unidos.
Essa criatura é frequentemente descrita como uma altura de aproximadamente 1,8 a 2,7 metros, com algumas descrições mostrando-os com altura de 3,0 a até 4,6 metros. O Pé Grande é destaque no folclore americano e canadense e tornou-se um ícone cultural, permeando a cultura popular e tornando-se objeto de sua própria subcultura distinta.
O interessante e curioso dessa história é que muitas das culturas indígenas em todo o continente norte-americano possuem contos envolvendo misteriosas criaturas cobertas de pelos que viviam nas florestas, e de acordo com o antropólogo David Daegling, essas lendas existiam muito antes dos relatos contemporâneos da criatura descrita como Pé Grande. Essas histórias diferiam em detalhes regionalmente, mas eram particularmente prevalentes no noroeste do Pacífico.
Na Reserva Indígena do rio Tule, no Condado de Talure, Califórnia, existe uma área com pinturas rupestres criadas por uma tribo chamada Yokuts, em um local conhecido como Painted Rock, que para muitos representa um grupo de Pés Grandes. A pintura é denominada “A Família”.
Acredita-se que essa pintura tenha mais de 1.000 anos e na cultura Yokut a maior figura da pintura representava o “Homem Peludo”, uma criatura que parecia um grande gigante com cabelos longos e desgrenhados, que o fazia parecer um grande animal. Para essa tribo eles eram considerados bons, pois comiam animais que poderiam prejudicar as pessoas. No ado os pais Yokut alertavam seus filhos para não se aventurarem perto do rio Tule à noite, ou eles poderiam encontrar a criatura.
Registro rupestre denominado “A Família”.
Exploradores espanhóis do século XVI e colonos mexicanos contaram histórias sobre os “Los Vigilantes Oscuros”, ou “Vigilantes das Trevas”, grandes criaturas que supostamente atacavam seus acampamentos à noite.
Em 1721, na região que hoje é o estado do Mississipi, um padre jesuíta morava com os índios Natchez e relatou histórias de criaturas peludas na floresta, conhecidas por gritarem alto e roubarem animais da tribo.
Em 1847, Paul Kane, um pintor de origem irlandesa e famoso por seus quadros que retrataram os nativos americanos, relatou histórias sobre os “Skoocooms”, uma raça de homens selvagens e canibais, que viviam no norte da Califórnia.
Theodore Roosevelt, presidente dos Estados Unidos entre 1901 e 1909, relatou em seu livro The Wilderness Hunter, de 1893, que conheceu um idoso montanhês chamado Bauman, que lhe contou uma história sobre uma criatura bípede e fedorenta, que saqueou seu local de captura de castores e que em uma ocasião quebrou fatalmente o pescoço de um companheiro de caçadas. Roosevelt observou que Bauman parecia temeroso ao lhe contar essa história.
Na década de 1920, o agente indígena e professor J.W. Burns, que viveu e trabalhou com a nação Sts’ailes, foi quem primeiro divulgou o termo “Sasquatch”, que se acredita ser a versão anglicizada de sasq’ets, ou sas-kets, tradução aproximada para “homem peludo” na língua Halq’emeylem. Burns publicou em uma revista uma coleção de histórias narradas pelos nativos que afirmaram haver tido contatos com os Pés Grandes. Uma delas comentava sobre o encontro de um membro da tribo teve com uma mulher selvagem e peluda. Os relatos que Burns coletou informavam que esses animais sempre viviam nas montanhas, habitando predominantemente em túneis e cavernas. Burns descreveu os Sasquatchs como “uma tribo de pessoas peludas”.
Ninguém sabe ao certo quando a lenda do Pé Grande do Noroeste realmente começou entre os indígenas, mas a plataforma de lançamento de maior sucesso para a obsessão do público é conhecida: uma batalha que supostamente ocorreu em 1924, na área de um desfiladeiro estreito chamado de Ape Canyon (Cânion do Macaco), que supostamente recebeu essa denominação depois do incidente que vamos descrever.
O Encontro com os “Homens-Macacos”
O Ape Canyon fica a cerca de três quilômetros a leste do majestoso Monte Santa Helena, um vulcão ativo localizado a leste do estado de Washington, e a cerca de doze quilômetros a oeste de um lago chamado “Espiritual” (Spiritual Lake), considerado assombrado pelos nativos americanos. Consta que supostamente eles não andavam muito nesse setor.
Quatro dos mineiros envolvidos no caso de 1924.
Foi nessa região que em julho de 1924 vamos encontrar um grupo de cinco mineiros trabalhando. Eles eram Fred Beck, o seu sogro Marion Smith, seu cunhado Roy (ou Leroy) Smith, além de Gilbert (ou Gabe) Lafever e John Peterson. Eles vinham da cidade de Kelso, no estado de Washington e localizada a cerca de 39 quilômetros de distância da região do Monte Santa Helena.
Já havia alguns anos que esses mineiros estabeleceram, inclusive registrando oficialmente, uma mina de ouro que eles chamaram de Vander White, onde só trabalhavam no local nos períodos em que a temperatura era ável. Ali, eles tinham basicamente explodido a rocha com dinamite e criado um túnel. Procuravam prioritariamente ouro, mas até então não tinham encontrado nada do metal precioso. Entretanto conseguiram manter o negócio funcionando com a retirada de minério de ferro e outros minerais.
Segundo eles, a primeira coisa realmente estranha ocorreu no verão de 1922, quando encontraram algumas pegadas gigantescas na lama, perto de um riacho, afluente do Rio Lewis. As pegadas pareciam grandes impressões semelhantes às humanas e marcavam muito profundamente a lama. Os mineiros afirmaram que talvez aquilo fosse de algum nativo americano de grande estatura e que estava caçando ou pescando na área.
Tempos depois eles começaram a ouvir barulhos estranhos em torno da cabana. Eram sons altos e penetrantes de assobios, que emanavam dos topos das grandes elevações. Às vezes haviam vários assobios que pareciam responder um ao outro, depois começaram a ouvir durante o dia barulhos de batidas bem altos e eles não conseguiam descobrir o que eram essas coisas.
Foto de satélite da área hoje conhecida como Ape Canyon.
Para os pesquisadores que estudaram o caso esses sons poderiam ter se originado do interior do Monte Santa Helena, fruto de sua atividade vulcânica. Mas o Santa Helena estava inativo desde 1857 e só voltou a rugir, então de maneira espetacular e catastrófica, no dia 18 de maio de 1980, quando ali aconteceu aquela que é considerada a maior erupção vulcânica em tempos históricos nos Estados Unidos e resultou na morte de 57 pessoas.
De qualquer maneira os barulhos estranhos e as enormes pegadas chamaram a atenção daqueles rudes e esforçados mineradores. Logo eles souberam no comércio de Kelso e na vizinha comunidade de Longview, que estava acontecendo situações estranhas, ligadas a criaturas esquisitas na área do Monte Santa Helena. E não eram histórias muito antigas dos nativos americanos, mas vinda de mineiros e madeireiros que trabalhavam naquele setor. Falavam do avistamento de certos “Demônios da montanha”, ou coisas que pareciam com “Gorilas”, ou “Grandes macacos peludos”. Mas a verdade é que os cinco trabalhadores da mina de Vander White não deram muita importância a essas histórias. Talvez porque entre eles o que não faltavam eram rifles, espingardas, revólveres e muita munição.
Consta que em 1º de julho de 1924, quando Fred Beck estava junto com seu sogro Marion Smith em um local nas proximidades da mina para obter água, eles viram uma criatura espiando por trás de uma árvore. Fred a descreveu tendo cerca de dois metros de altura e estimou seu peso em torno de uns 350 quilos. Era coberta de pelos castanho escuro e com um tom acinzentado, além de um rosto parecido com um macaco. Foi quando Marion disparou três tiros na cabeça da coisa. Mas, para surpresa dos mineiros, o bicho começou a fugir e desapareceu na mata.
Rifle Winchester calibre 30-30.
O Ataque e a Investigação
Na sequência eles alegaram que estavam a 13 quilômetros de Spirit Lake, quando encontraram quatro daqueles estranhos e gigantes animais se movendo pela floresta com os eretos, semelhantes aos humanos. “Eles são cobertos por longos cabelos pretos”, relatara ao jornal The Oregonian, informando as descrições oferecidas pelos homens. “Suas orelhas têm cerca de dez centímetros de comprimento e ficam retas. Eles têm quatro dedos, curtos e atarracados.”
Surpreso ao ver as enormes feras, Fred Beck disparou seu rifle Winchester calibre 30-30 contra uma das criaturas que foi atingido três vezes. O animal ferido caiu então em um penhasco (Beck teria afirmado anos depois que outro membro do grupo também abriu fogo).
Representação dos disparos contra o Pé Grande e sua queda.
O certo é que toda aquela violência provou ser um erro!
Naquela noite, disseram os homens, eles foram acordados quando pedras enormes começaram a bater na parte externa de sua cabana. Então ouviram — e sentiram — corpos gigantes batendo contra as paredes e a porta. Parecia que aqueles “homens-macacos” estavam em busca de vingança.
As feras eventualmente abriram um buraco no telhado, permitindo-lhes atingir Beck. “Muitas das pedras caíram por um buraco no telhado, e duas delas atingiram Beck, uma delas deixando-o inconsciente por quase duas horas”, relatou um dos mineiros ao The Oregonian.
Finalmente, disseram os garimpeiros, o sol começou a nascer, o que fez com que os animais interrompessem o ataque e fugissem. Os homens enfiaram a cabeça para fora da porta e, quando decidiram que o caminho estava livre, saíram correndo da floresta.
Representação do suposto ataque das feras.
Como comentamos anteriormente, lendas e histórias sobre “homens-macacos” gigantes não eram exatamente novos naquela região. Mas poucas pessoas se preocupavam seriamente com a possibilidade de criaturas enormes e desconhecidas estarem na floresta. Isso mudou quando os mineradores da mina Vander White regressaram à civilização naquele verão de 1924.
A dramática história da sua batalha contra grandes feras semelhantes a humanos era irresistível e, portanto, difícil de ser ignorada pelas pessoas. Disseram que aqueles garimpeiros saíram verdadeiramente cambaleando da floresta, tremendo e com os olhos vidrados, para contar sobre animais parecidos com macacos com mais de dois metros de altura que os atacavam com pedras.
Com as notícias causando sensação local, o Serviço Florestal dos Estados Unidos decidiu entrar no circuito. Os investigadores J.H. Huffman e William Welch voltaram ao local e caminharam pela floresta com Beck, que os levou até o penhasco onde, segundo ele, o “homem-macaco” caiu ferido. Um dos guardas florestais desceu o desfiladeiro, supostamente inível, e “não encontrou absolutamente nada”, escreveu o The Oregonian.
Beck e os guardas continuaram até a cabana dos garimpeiros e este Beck mostrou aos investigadores as grandes pedras que haviam sido usadas no ataque. Huffman e Welch não ficaram nem um pouco impressionados com o que viram e concluíram que os próprios garimpeiros colocaram as grandes pedras no telhado e criaram todo o cenário. Só que os dois investigadores não explicaram para que eles fizeram tudo isso!
Roy Smith e Fred Beck em foto de jornal com seus rifles.
Um repórter perguntou aos guardas-florestais quando eles retornaram a Kelso “– E as pegadas de 14 polegadas encontradas perto da cabana?”. Huffman então criou uma marca no chão usando os nós dos dedos e a palma da mão direita. “Eles foram feitos dessa maneira”, disse ele.
Apesar do desmascaramento da história pelos guardas, as pessoas ainda queriam acreditar naquele estranho episódio – e a história continuou a se espalhar. Mais tarde o The Oregonian publicou – “Amigos e conhecidos dos cinco homens que relataram suas experiências acreditam que eles realmente viram algo que não pôde ser explicado”.
O membro da tribo Cowlitz, Frank Wannassay, contou a um repórter sobre “criaturas peculiares” das quais os mais velhos da tribo sempre falavam. “O Senhor Wannassay os descreveu como tendo entre dois e três metros de altura, corpos cobertos por cabelos longos”, escreveu o The Oregonian. A reportagem continuou: “Eles nunca foram vistos durante o dia”. Wannassay insistiu que esses animais eram “inofensivos”.
Crescimento do Mito
Nos anos que se seguiram a história dos garimpeiros seria repetida inúmeras vezes, inspirando vários avistamentos, teorias sobre as feras e muitos relatos que só fizeram o mito crescer.
Um dos aspectos desse crescimento tem relação com o fato das mortes prematuras dos mineiros que sobreviveram ao incidente. Elas aconteceram poucos anos após o incidente e são tidas como misteriosas. Mas até onde eu pesquisei dois deles se afogaram em um eio de barco e os outros aparentemente pereceram de mortes naturais. Nada de incrível quando sabemos a época e o local agreste onde eles viviam!
Um idoso Fred Beck segura o mesmo rifle Winchester 30-30 utilizado no caso de 1924 durante uma entrevista.
Ao longo dos anos, o único sobrevivente do caso, o mineiro Fred Beck, se tornou ministro evangélico e até escreveu um livro sobre o episódio ocorrido nas proximidades do Monte Santa Helena. Nesse livro ele realmente retrata os incidentes de forma bem diferente, afirmando que os tais “homens-macacos” não eram criaturas reais, de carne e osso, mas “espíritos ou demônios ou algum outro tipo de entidades sobrenaturais e é por isso que eles não poderiam ser baleados corretamente e mortos”. Beck também afirmou que “mantinha comunicações telepáticas com as criaturas e havia outros espíritos que apareciam para ele”.
Capa do livro de Fred Beck.
Houve até outro caso estranho na região. Em 1950, um esquiador chamado Jim Carter fazia parte de um grupo com cerca de 20 pessoas que subiram nas encostas do Monte Santa Helena para esquiar. Só que Carter decidiu que não iria seguir o resto do grupo e foi por outra parte das encostas para que ele pudesse realizar uma boa esquiada e bater algumas fotos. Essa foi a última vez que seus amigos viram Carter.
Considerada a melhor evidência dos Pés Grandes, a filmagem Patterson-Gimlinchama atenção a mais de meio século. A questão que perdura é se é um grande símio desconhecido da ciência, ou um homem fantasiado?
Conforme ele demorava a chegar em uma área anteriormente combinada o grupo foi em sua busca. Chegaram a encontrar suas marcas de esqui morro abaixo e parecia para eles que a trajetória de sua corrida fosse um tanto frenética, como se algo estivesse lhe perseguindo. Encontraram também um recipiente de filme fotográfico vazio e suas marcas de derrapagem desapareceram de repente na borda de um penhasco íngreme. Houve uma enorme operação de buscas por Jim Carter, mas ele desapareceu completamente e nada mais foi encontrado. Esse provável acidente só ajudou no crescimento da casuística do que aconteceu com os mineradores em 1924.
Outro aspecto ligado à história do Ape Canyon foi que em 2013 um investigador empreendedor chamado Mark Marcel, pretensamente encontrou o local onde a cabana estava localizada. Mark descobriu a localização através de uma pesquisa em diferentes artigos de jornais e outras pistas em documentos antigos. O local estava localizado ao lado de um desfiladeiro de parede muito íngreme, acima do desfiladeiro dos macacos. Quando ele desceu ao local encontrou restos da construção, velhas ferramentas, pregos enferrujados e outras pistas que corroboravam o fato da localização da cabana. Ao longo dos anos outros investigadores estiveram no local.
Fred Beck e seu rifle.
Atrações Turísticas
Entusiastas do Pé Grande, como aqueles da pseudociência da criptozoologia, ofereceram várias formas de evidências duvidosas para provar a existência desses animais, incluindo alegações de avistamentos, bem como supostas fotografias, gravações de vídeo e áudio, amostras de cabelo e moldes de grandes pegadas.
No entanto, o consenso científico é que o Pé Grande, e as supostas evidências, são, em vez de um animal vivo e desconhecido, uma combinação de folclore, erro de identificação e pura e simples farsa.
O ecologista Robert Pyle argumenta que a maioria das culturas tradicionais tem relatos de gigantes semelhantes aos humanos em sua história popular, expressando a necessidade de “alguma criatura maior que a vida”. Cada idioma tinha o nome da criatura apresentada na versão local de tais lendas. Muitos nomes significam algo como “homem selvagem” ou “homem peludo”, embora outros nomes descrevessem ações comuns que ele realizava, como comer mariscos ou sacudir árvores.
Representação do interior da casa dos mineiros, referente ao caso de 1924, existente em um museu.
O folclore europeu tradicionalmente tinha muitos exemplos do “homem selvagem da floresta”, ou “gente selvagem”, muitas vezes descrito como “uma criatura nua, coberta de pelos “. Esses povos selvagens europeus variavam de eremitas humanos a monstros semelhantes a humanos. Após a migração para a América do Norte, os mitos das “pessoas selvagens” persistiram.
Não podemos esquecer que os estadunidenses são especialistas em “turistificar” basicamente tudo envolve sua História e os aspectos de sua grande nação e, com isso, gerar bastante renda com a criação de atrações. Sendo assim, não é de estranhar que as áreas onde supostamente esses Pés Grandes deixaram suas marcas, sejam repletas de museus, lojas de suvenires e locais de visitação para levar os turistas aonde eles pretensamente apareceram.
Em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial e a deposição do ditador Getúlio Vargas, teve início o processo de redemocratização no Brasil, que, infelizmente levou a inúmeras disputas políticas e conflitos pelo país afora. Na região de Exu[1], sertão de Pernambuco, não foi diferente.
Em 24 de dezembro de 1946, na segunda página do jornal recifense Folha da Manhã surgiu a manchete abaixo, verdadeira profecia do que iria então ocorrer naquela cidade.
Nesse jornal existe a transcrição de um telegrama de Romão Filgueira Sampaio Filho (21/08/1887 – 10/04/1949)[2], conhecido como coronel Romão Filho, ou ainda Seu Romãozinho, sobre o clima político existente na cidade. O telegrama foi enviado ao então deputado federal Agamenon Magalhães, ex-governador de Pernambuco entre 1937 a 1945 e que seria novamente governador pernambucano entre os anos de 1951 e 1952.
“Prossegue, sem interrupção, as violências e ameaças desencadeadas no interior do Estado contra os elementos do Partido Social Democrático[3]. Ontem outros telegramas foram enviados ao deputado Agamenon Magalhães, nos quais os signatários, pertencentes ao partido majoritário ou dele simples simpatizantes, denunciam novas ameaças e agressões cometidas pelas autoridades policiais e prefeitos udenistas[4]. Foram os seguintes os despachos dirigidos ao deputado Agamenon Magalhães:
EM EXU – José Aires de Alencar Sete, indicado cargo de comissário de polícia, manteve durante a feira local atitude hostil, intimando eleitores, tendo agredido João Pereira de Carvalho e Expedita Sampaio, funcionários demitidos em ato arbitrário do prefeito. Levei ao conhecimento do caso ao juiz, pontuando lamentáveis incidentes. Provável e iminente hecatombe. Saudações. Romão Sampaio Filho.”
Notícia original dos trágicos acontecimentos do Domingo de Ramos de 1949 em Exu.
Dois anos e quatro meses após a publicação dessa notícia, mais precisamente as oito da manhã do dia 10 de abril de 1949, em plena Semana Santa e no Domingo de Ramos, o badalar dos sinos da missa do Padre Mariano de Souza Neto foi diminuído pelos disparos de armas de fogo, em um tiroteio que deixou mortos Romão Sampaio e Cincinato de Alencar Sete (23/11/1889 – 10/04/1949), conhecido como Seu Sete[5].
Esses homens eram os chefes das famílias Alencar e Sampaio, as duas principais da cidade de Exu e eram compadres. O primeiro foi morto por José Aires de Alencar, conhecido como Zito Alencar, então com 23 anos e filho de Cincinato Alencar. Comentou-se que Romão Sampaio engraxava os sapatos quando foi morto e outros dizem que caminhava quando discutiu com Zito e este lhe deu dois ou três tiros na cabeça.
Padre Mariano de Souza Neto, pároco de Exu durante a maior parte do período que ocorreram os conflitos.
Após essa morte e ainda naquele mesmo dia, Cincinato tombou ao receber vários tiros de rifle e revólver. Este foram disparados respectivamente por Aristides Sampaio Filgueira Xavier, filho do coronel Romão e suplente de deputado estadual pelo PR – Partido Republicano, e o então prefeito da cidade Otacílio Pereira de Carvalho, genro do coronel Romão e cunhado de Aristides. Ficaram feridos no tiroteio o prefeito Otacílio, na perna e sem gravidade, e Franscisco Aires de Alencar, esse último filho de Cincinato, que ficou paralítico e preso a uma cama pelo resto de sua existência[6]. Consta que também foi atingido com gravidade o cidadão de nome José de Miranda Parente[7].
Otacílio foi acusado de ter disparado seis tiros a queima roupa em Cincinato Alencar[8]. Mas as fontes divergem quando o assunto é quantos disparos mataram esse homem, com algumas apontando 11 tiros e outras que pulam para 23. O enterro dos dois líderes foi no mesmo dia, mas em horas diferentes para evitar mais mortes[9].
Francisco Aires de Alencar e sua cama oltada para a rua em Exu.
Para muitos as querelas políticas locais foram as principais causas do início das questões de sangue entre os Alencar e Sampaio em Exu no ano de 1949, mas existem outras versões.
Uma delas dá conta que na época havia sido recentemente instalada uma difusora de notícias em Exu, o serviço de autofalantes espalhados na cidade, as populares “bocas de ferro”. Ocorre que começou uma troca de mensagens divulgadas por esse serviço, todas de cunho político, entre adversários das duas famílias e o clima foi esquentando. As mensagens foram ficando mais ácidas e pesadas, deixando a “a de pressão” no limite, até descambar na tragédia do Domingo de Ramos de 1949.
Existe também a versão de um caso que envolveu uma pretensa traição matrimonial, junto com o uso da violência. Consta que Antoliano Aires Alencar comentou que uma parente sua, mulher casada, estava traindo o seu marido com Aristides Sampaio, o filho vingador do coronel Romão. Então, o que aparentemente era só um boato, um fuxico besta, acabou por gerar uma tremenda surra em Antoliano Alencar nas proximidades de sua propriedade. E houve mais – além de surrado, Antoliano foi amarrado e obrigado a engolir pedaços de páginas de jornais misturados com urina. Uma versão afirma que então Zito Alencar teria ficado possesso com a situação e tomou as dores do parente. Foi pessoalmente reclamar do caso com o coronel Romão Filho, que nada fez. E aí veio os crimes do dia 10 de abril de 1949.
Cemitério de Exu.
Seja lá quais forem as reais e corretas versões, a tristemente lembrada “Guerra do Exu” teve início naquele Domingo de Ramos de 1949. Ao longo dos anos muitas covas seriam abertas no Cemitério São Raimundo e muito choro seria derramado.
O Cenário das Lutas
A cidade de Exu começou a sua história nos primeiros anos do século XVIII, com os contatos entre os vaqueiros de uma fazenda vinculada à Casa da Torre, de possíveis proprietários baianos, com o povo indígena Ançu ou Açu, identificado com a nação Cariri e que viviam nas vizinhanças[10].
Exu e ao fundo o Serrote do Alto Grande.
Consta que os índios levaram esses vaqueiros até às suas tabas e estes informaram aos seus patrões que nas terras onde moravam os indígenas existiam fontes de água e terrenos de boa qualidade para o cultivo e criação. Anos depois chegaram alguns freis jesuítas, que ali permaneceram por certo período. Em 1734 foi constituída a Freguesia do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, com um abrigo e uma capela, tendo com isso se desenvolvido o núcleo populacional local.
Em Exu circula a ideia que entre os primeiros colonos a penetrarem em terras que compõem atualmente esse município pernambucano estava o português Joaquim Pereira de Alencar, anteado do escritor e político cearense José de Alencar e avô do Barão do Exu[11]. Após o fim da Revolução Pernambucana, ou Revolução dos Padres (6 de março a 20 de maio de 1817), ocorreu em Recife a prisão da comerciante e revolucionária Bárbara de Alencar (1760 – 1832), exuense descendente dos primeiros colonos portugueses que se estabeleceram na região e considerada a primeira presa política do Brasil, marcou sua existência com muitas lutas. Em consequência sua Fazenda Caiçara foi confiscada e ela e outros membros da sua família só foram libertados da prisão em 1820[12].
Em março de 1846 o povoado de Exu era elevado à categoria de vila e em 7 de julho de 1885 a município.
Banho de Sangue
Mas voltando as questões ocorridas no século XX, com a morte dos antigos líderes políticos a família Alencar despontou nos pleitos municipais e seus membros assumiram o domínio político de Exu. A partir de 1950 elegeram todos os prefeitos e garantiram sempre a maioria dos nove vereadores da Câmara Municipal. Diziam que “não perdiam nem eleição de quermesse e pastoril”.
Em 1956 Juarez Aires de Alencar, filho de Cincinato e irmão de Zito Alencar, encontrou na cidade do Crato, Ceará, com o agora ex-prefeito Otacílio Pereira de Carvalho e aquilo lhe esquentou o sangue. Enfim, não era fácil encontrar com um dos assassinos do seu pai e tentou pegar sua arma. Mas naquele dia Otacílio não perdeu tempo com meditações e abriu fogo. Deu dois tiros secos e rápidos que mataram Juarez. Vale frisar que Otacílio aria por dois julgamentos e seria absolvido em ambos.
Notícia do resultado do julgamento de Otacílio Pereira de Carvalho.
Em 1957, em um final de tarde de um dia de feira, Francisco Vaqueiro, ajudante de Antoliano Alencar e tido pelas autoridades como pistoleiro, foi morto em Exu com quatro tiros e seus pretensos assassinos foram os irmãos Janilton e Javilmar Sampaio Peixoto e um primo de nome Delmar. Nessedia, como medida de precaução, ninguém saiu as ruas quando escureceu e o bilhar ficou vazio e sem conversas.
Então houve um momento de calmaria, de paz provisória, onde segundo escreveu o repórter Ricardo Noblat “Esse período de tranquilidade em Exu foi farto de casamentos entre os membros dos dois grupos e também de alianças políticas”[13]. E quando veio a Revolução de março de 1964, o período da Ditadura Militar, em Exu só existia o partido do Governo Federal, a ARENA – Aliança Renovadora Nacional. E para acomodar os dois grupos foi criada por eles uma divisão local e surgiu a “ARENA 1” e a “ARENA 2”. Completamente desunidas na política local, mas unidas no plano federal.
Em 1965, apenas pelo ódio latente existente, Antônio Jaílson Sampaio Peixoto foi morto em Exu com onze tiros pelas costas. Os autores foram os irmãos José Audísio Aires Alencar e Canuto Aires Alencar. Antônio Jaílson tinha 19 anos. Essa morte trouxe para luta outras duas famílias – os Aires se ombrearam com os Sampaio e os Alencar com os Peixoto.
Consta que a partir desse último caso, em meio a toda essa sangria, as autoridades pernambucanas despertaram mais seriamente para o problema. O destacamento policial do Exu foi reforçado e foram nomeados delegados com a missão de restaurar a paz na cidade. Mas logo as mortes se sucederam.
Blitz policial perto de Exu.
Em 1966, Getúlio Coutinho morreria em Exu com tiros disparados por Adauto Alencar Filho. No ano seguinte Raimundo Canuto de Alencar morreu no centro de Exu, diante de um clube local, com cinco tiros disparados pelos primos Jamilton Peixoto Sampaio e Carloto Peixoto. Esse crime ocorreu no dia 13 de agosto de 1967 e a viúva de Raimundo, Gilvandete Canuto de Alencar, ficou com a responsabilidade de cuidar de nove filhos. Ainda em 1967, Jeová Colombo Coutinho, muito ligado a família Sampaio, trocou tiros com Raimundo Aires Alencar Ulisses, tendo ambos saídos feridos. Colombo com dois balaços e Raimundo com um.
Alguns anos depois, no dia 20 de fevereiro de 1972, um domingo, João Wagner Canuto Alencar (um dos filhos de Raimundo Canuto), de 23 anos, foi morto a tiros por Romeu Soares de Oliveira Sampaio, o Romeuzinho, um menino de 16 ou 17 anos. Em depoimento ao Jornal do Commercio, de Recife (edição de 15 de setembro de 1972, pág. 8), sua mãe Gilvandete Canuto de Alencar afirmou que Romeu teria tido o apoio de outros membros da família Sampaio. Comentou ainda que seu filho foi morto com tiros pelas costas quando concertava um Jipe, em frente ao posto de gasolina de Exu.
Não demorou e o troco chegou. Na tarde de 30 de abril de 1972, José Sampaio de Oliveira, pai de Romão Sampaio e tabelião de Exu, foi atacado por dois pistoleiros e levou cinco ou seis tiros, mas incrivelmente sobreviveu. Contaram outros 16 buracos de balas na parede de sua casa e os autores foram dois jovens. Um deles fugiu sem deixar rastro e o outro foi até preso, mas fugiu da cadeia. José Sampaio ficou com uma das balas na barriga e se mudou para a cidade pernambucana de Serrita, reduto dos Sampaio.
Enquanto isso o povo do Exu vivia rezando todos os dias para ver se Deus acabava com aquelas lutas. Quase ninguém ia ver filmes nos cinemas São Paulo e Alvorada e na feira, ponto de concentração da economia do município, o movimento diminuiu cerca de 40% e a arrecadação da prefeitura caiu 1/3 naquele 1972 pavoroso. Consta, segundo informou o coletor público Wilson Saraiva aos jornalistas, que a arrecadação do ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) caiu 35% em meio aos tiroteios.[14] A luta dividiu a tudo e a todos. Os Sampaio só frequentavam o Clube Recreativo 8 de Setembro e os Alencar o CEE – Clube Estudantil do Exu. A Praça da Bomba era o ponto de encontro dos Sampaio e a Praça Aprígio Pereira era o reduto dos Alencar[15]. E tem um detalhe – A intensa Exu tinha apenas 5.000 habitantes em 1972.
Quatro meses depois do atentado a José Sampaio, no dia 19 (algumas fontes dizem 20) de junho, foi a vez de Adauto Alencar ser morto. Este era solteiro, com 30 anos de idade e filho adotivo de Antoliano Alencar. Foi atingido quando seu irmão, o engenheiro agrônomo João Oldan de Alencar, parou a sua camionete C-10 e Adauto desceu para abrir uma porteira da fazenda do seu pai, a Romana (ou “Rumânia”). Recebeu apenas um tiro nas costas, disparado de um rifle Winchester 44 e seu irmão testemunhou tudo. Segundo Oldan, que não foi ferido e nem viu o atirador, depois que seu irmão recebeu o disparo ele ainda sacou do seu revólver e deu três tiros a esmo, caiu gritando de dor e faleceu. No local onde ficou o atirador de tocaia foi encontrado um verdadeiro esconderijo camuflado por ramos de árvores, onde havia restos de comida, uma cama improvisada e outros objetos, mostrando que o assassino ou alguns dias na posição para executar seu plano malévolo. Nunca foi mencionado em documentação ou na imprensa quem disparou contra ele, mas lembremos que Adauto foi acusado da morte de Getúlio Coutinho em 1966[16].
Situação da Justiça em Exu na época dos conflitos.
Em 17 de agosto de 1972, uma quinta-feira, o fazendeiro Jeová Colombo Coutinho, ligado aos Sampaio, saiu de casa cedo com o propósito de seguir até o Crato, porém, na altura da Fazenda Cachoeira, ele foi obrigado a parar seu veículo para retirar algumas pedras e troncos de madeiras colocados na estrada. Logo uma saraivada de tiros se abateu contra ele. Mesmo ferido o fazendeiro ainda sacou seu revólver e revidou à agressão, não conseguindo, no entanto, ferir ou identificar os atacantes. Atraídos pelos disparos, os empregados da fazenda Cachoeira correram até o local e encontraram Jeová Colombo Peixoto todo ensanguentado e de revólver em punho. Ele foi conduzido até Exu, onde membros da família Sampaio o removeram para o hospital do Crato. No local da emboscada descobriram cabaças com água, uma sandália japonesa meio cortado e restos de comida. Ninguém foi preso[17]. Existe a informação que Jeová levou 20 tiros e ficou paralítico[18].
Praça no centro da cidade.
O ódio tinha criado raízes. Por Isso, Janilton Sampaio Peixoto, irmão de Jamilton e Antônio Jaílson, funcionário público residindo no Recife e istrando o Mercado de Santo Amaro, tombou crivado com nove tiros de calibre 38 no dia 11 de setembro de 1972, uma segunda-feira, quando jantava com a família no restaurante “Palhoça do Melo”. Luiz Alberto e Antônio Aires de Alencar foram acusados de matar Janilton. Existe a informação que eles viviam em Santa Catarina e vieram de lá só para praticar esse assassinato. Deuzimar Ulisses Peixoto, a esposa de Janilton, foi ferida no braço e os dois filhos do casal, crianças de sete e dez anos de idade, presenciaram tudo.
Cruzes nas estradas de Exu.
No dia seguinte, ainda em Recife, defronte ao Edifício Cristina, no bairro do Espinheiro, José Arez Aires de Alencar foi ferido com três tiros efetuados por Vital Sampaio Peixoto e outros homens. O ambulante José João da Silva, que ava pelo local, foi ferido na ação.
Segundo informava o Diário de Pernambuco (edição de 14 de setembro de 1972), que em meio as lutas e como “medida acauteladora”, vários integrantes das famílias Alencar e Sampaio mandaram suas mulheres e filhos menores para outras cidades. E em Exu ficaram “apenas os rapazes que sabem atirar”. E o jornal completava afirmando “As mulheres e filhos dos Sampaio foram para o Crato, no Ceará, e as dos Alencar estão no Araripe”, outra cidade cearense. Mas houve outros problemas. Desde dezembro de 1971 não havia mais festas na cidade e cinco professoras pediram desligamento do MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) de Exu, pois os alunos simplesmente sumiram das salas de aula.
Revista policiual em um veículo que entrava em Exu.
As Manobras em Exu e Bodocó
Foi quando alguém decidiu tomar uma iniciativa para acabar com aquela verdadeira “orgia de sangue”. O então coronel Ivo Barbosa, comandante do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada (71º BIMtz), sediado na cidade pernambucana de Garanhuns, foi quem tomou essa iniciativa.
Nascido em 19 de maio de 1928, na cidade de Nazaré da Mata, na área da zona da mata norte de Pernambuco, Ivo Barbosa de Araujo foi declarado aspirante a oficial da Arma de Infantaria em 17 de dezembro de 1948, ao concluir o curso de oficial da Escola Militar de Resende, atual Academia Militar das Agulhas Negras, e a partir daí foi galgando os postos do oficialato no Exército Brasileiro.
Soube que a ideia desse encontro começou durante uma manobra militar realizada entre as cidades pernambucanas de Bodocó e Exu e contava com a participação dos membros do 71º BIMtz. Durante quase uma semana (de 18 ao dia 24 de setembro de 1972) circularam nessa área com seus jipes e caminhões REO 6×6, um total de 379 militares (19 oficiais e 360 praças). Houve na verdade a realização de uma “Operação Presença” do Exército Brasileiro nessa área, que desdobrou em uma ACISO (Ação Cívico Social do Exército) em Exu. O tenente-médico Cláudio Montenegro Gurgel do Amaral e o tenente-dentista Climério Leite fizeram mais de 200 atendimentos e foram realizadas mais de 300 visitas sanitárias nas residências. Até a banda de música do batalhão tocou frevos na praça principal da cidade. Quem também adorou a chegada dos militares foi o comércio exuense, pois eles adquiriram muita comida e outros produtos na cidade e em propriedades vizinhas. Os militares circularam pelas ruas em seus uniformes verde-oliva, capacetes M-1 na cabeça, portando reluzentes fuzis FAL, metralhadoras INA e as famosas pistolas Colt 45, o que deixou Exu na mais absoluta paz durante aqueles dias[19].
Soldado do exército em uma esquina de Exu em setembro de 1972.
O coronel Ivo Barbosa então procurou os líderes das duas famílias e propôs um encontro na sede do seu batalhão, com o objetivo de sentarem frente a frente, dialogarem juntos e encontrarem o caminho da paz. E as lideranças concordaram. Na verdade, aquela proposta acabou sendo praticamente uma ordem, pois os chefes dos Alencar e Sampaio não eram idiotas de se colocarem contra o pedido de um oficial do Exército Brasileiro. Algo que naquela época poderia, talvez, trazer consequências mais complicadas para eles e seus negócios[20].
Mas antes até de ocorrer o encontro nas dependências do 71º BIMtz, um outro ato de violência foi praticado. José Aires de Alencar, o Zito Alencar, que matou o coronel Romão Sampaio no Domingo de Ramos de 1949, sofreu um atentado no dia 2 de outubro de 1972.
Soldados do Exérrcito Brasileiro em Exu.
Depois que Zito Alencar matou o coronel Romão ele foi preso, mas fugiu pouco tempo depois (dizem que subornou a guarda). Foi então para São Paulo de avião, onde ali ou alguns anos e existe a informação que teria até se formado. Daí voltou para o Nordeste, onde decidiu viver no município paraibano de Sapé com o nome falso de Adail Pessoa e montou um negócio. Mas nesse dia, ao dirigir na estrada que dava o a essa cidade, cruzou com um veículo Opala vermelho quando, de maneira rápida e inesperada, vários tiros partiram desse carro em direção ao seu, sendo Zito Alencar atingido no pescoço e na mão esquerda. Logo ele pegou um revólver com a mão direita e mandou três balaços no veículo dos pistoleiros, que fugiram. Como estava a apenas a cinco quilômetros de Sapé ele chegou rápido, recebeu apoio e sobreviveu[21].
O Acordo do Quartel de Garanhuns
O coronel Ivo Barbosa, apesar de preocupado, não esmoreceu e preparou seu 71º Batalhão de Infantaria Motorizado para o evento. Mas antes disso enviou para as autoridades em Brasília um relatório sobre o caso e sugeriu que, independentemente da do tal acordo, que em pouco tempo fosse decretada a intervenção federal no município, de forma a torná-lo área de segurança, com um policiamento ostensivo e permanente, onde seria realizado frequentes operações de desarmamento na cidade, nos sítios e nas fazendas. Evidenciando que apenas com à adoção de medidas preventivas e permanentes aquela luta fraticida e sangrenta teria um fim. Mas em Brasília ninguém deu atenção ao seu relatório!
Naqueles tempos complicados não era difícil ver em Exu.
Então, no domingo, 15 de outubro de 1972, ocorreu o encontro dos líderes e integrantes das famílias Alencar e Sampaio. Vejo que só o fato do coronel Ivo Barbosa colocar em uma mesma sala os integrantes daquelas duas famílias desarmados e uns diante dos outros, já poderia ser considerado um enorme êxito.
O maior resultado do comandante do Batalhão da Infantaria de Garanhuns foi ter sido redigido um “PROTOCOLO DE PAZ” constante de dez cláusulas, a ser assinado pelos membros de ambas as famílias. Lendo o documento eu percebo que ele atinge as raias do incrível, que mostra de alguma forma como se desenrolou essa reunião. Olhem abaixo:
Termos do acordo fimado na sede do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada de Garanhuns.
Anos depois ao conceder uma entrevista, o coronel comentou que viu o clima em Exu muito tenso, fruto das mortes de muitos pais de famílias e outras pessoas que ali foram executadas. Afirmou que naquela luta jovens perderam a vida estupidamente e que em sua opinião a briga alcançou proporções incontroláveis de violência e barbarismo. Ele afirmou também que conheceu, provavelmente na época das manobras militares, muitos integrantes das duas famílias, que para ele eram homens trabalhadores e sérios, a elite da cidade, mas que estavam envolvidos emocionalmente no conflito e com o coração cheio de ódio. Afirmou que se mostrou chocado com os acontecimentos e apelou aos chefes dos clãs Sampaio e Alencar no sentido que fizessem uma pausa, meditassem e pensassem no futuro dos seus filhos e abandonassem a luta.
Para o coronel as manobras políticas e as intrigas se encarregavam de desencadear o ódio, de dar corpo a violência, de transformar rapazes imberbes em matadores frios e calculistas, justificando seus atos em nome da vingança, sentimento responsável pelo ciclo interminável da luta fratricida — “Matei para vingar, para lavar meu sangue com sangue – Essa era sempre a desculpa e a justificativa para a sucessão de mortes. Em um ambiente onde não há possibilidade de um equilíbrio emocional, os atentados, os homicídios e emboscadas são cometidos como um ato de heroísmo, de bravura, estimulando o derramamento de sangue. Então, a fúria incontrolável e inconsciente dos mais jovens havia se tornado o elemento de continuidade da luta entre os Sampaio e os Alencar.
Muitos fatores contribuíram para esse conflito continuar. As duas famílias lutavam pelo domínio da política partidária em Exu, recorrendo a todos os expedientes para alcançarem seus objetivos. Não esqueçamos as intrigas, a presença dos pistoleiros, os boatos alarmantes e a ausência da Justiça contribuíram muito para o caos. Some também a ideia do “Machismo do sertanejo” e a crença na letalidade fatalista de que “o homem só morre no dia certo”[22].
Segundo foi publicado no jornal carioca O Globo, após o encerramento do encontro, vários membros das duas famílias seguiram para as cidades cearenses de Barbalho, Crato, Missão Velha e Milagres e as localidades pernambucanas de Salgueiro, Araripina, Serrita, Bodocó e, evidentemente, Exu. Eles tinham a missão de conseguir as s dos membros das duas famílias que viviam nesses locais. Até Zito Alencar, que se recuperava do recente atentado em uma cama de hospital na Paraíba, assinou[23].
Policiais em Exu.
Acho que o maior problema desse momento foi que, por conveniência ou medo de estragar o encontro e uma possível paz, não se deliberou em nenhum momento punições para os envolvidos nos muitos crimes praticados. Se o Exército, que era politicamente muito forte nesse tempo, não apontou nenhum aspecto de punibilidade nesse encontro para os mais celerados, acho que só serviu para ampliar a já elevada sensação de impunidade e a certeza que tudo era possível!
Os jornais da época mostram uma certa euforia, torcida mesmo, para que aquele conflito se findasse. Mas…
O Começo do Fim
Mas o compromisso foi quebrado exatamente as uma e meia da tarde de 17 de janeiro de 1973, apenas três meses após o encontro em Garanhuns, quando Raimundo Aires de Alencar Ulisses, então prefeito de Exu, foi assassinado com tiros de revólver na praça principal da cidade, próximo a prefeitura e da Igreja Matriz de Bom Jesus dos Aflitos. Nesse crime ficou ferido com um tiro no pé Antônio Lourenço de Oliveira e foram acusadas seis pessoas. Raimundo Alencar não completou o seu mandato, sendo assassinado quando faltava 30 dias para terminar seu mandato. Deixou quatro filhos e sua esposa Riseuda Parente Aires estava gravida de seis meses[24].
Ao longo dos anos seguintes mais e mais mortes aconteceram, algumas sendo realizadas no Maranhão e até no Rio de Janeiro. Houve novas tentativas de acordos patrocinados pela Igreja Católica, que foram quebrados. Até Luiz Gonzaga, o mais ilustre filho de Exu, tentou com o seu prestígio acabar com aquela sangria. Mas, apesar do respeito que as famílias tinham pelo seu sucesso, não houve maiores resultados.
Luiz Gonzaga tocando para seu pai Januário em Exu. Foto realizada meses antes do falecimento de Seu Januário.
A imprensa pernambucana e nacional divulgava com destaque, muitas vezes mórbido e até mesmo doentio, cada acontecimento sangrento ocorrido em Exu, ou envolvendo os membros das famílias em litígio, o que só gerou problemas para os moradores do lugar. Várias vezes os jornais apontaram Exu como “A Cidade Maldita”. No final da década de 1970, o município foi até cenário das gravações de um documentário chamado “Exu, Uma Tragédia Sertaneja”, dirigido pelo competente documentarista Eduardo Coutinho, que buscou retratar os conflitos locais entre as famílias Alencar e Sampaio, tendo sido exibido no programa “Globo Repórter” e causado muita repercussão. Em meio a tudo isso, várias famílias de Exu se dispersaram pelo Brasil, em uma verdadeira diáspora para terem apenas o direito de viver!
Marco Maciel decreta a intervenção em Exu em 1981.
O fim, ou o começo do fim, só começou de verdade em 9 de novembro de 1981, quando Marco Antônio de Oliveira Maciel, então governador de Pernambuco, assinou a ordem de intervenção estadual no município de Exu e contando com o apoio do Governo Federal. Junto com o então Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, decidiram exonerar José Peixoto de Alencar, o prefeito eleito de Exu, e todos os vereadores.
A esquerda o Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, junto do major Jorge Luís de Moura, interventor do município de Exu.
Designaram como interventor na cidade o major Jorge Luís de Moura, da Polícia Militar do Estado de Pernambuco. Ficou famosa a foto do major Moura andando pela cidade fardado, com uma valise em uma mão e na outra uma escopeta calibre 12.
O coronel Ivo Barbosa, que esperou nove anos para ver a intervenção do governo chegar ao Exu, o que talvez pudesse ter evitado muitas mortes, alcançou o posto de general de brigada e faleceu, salvo engano, em 2005.
Material do extinto Servição Nacional de Informações (SNI) sobre a intervenção em Exu.
Quem hoje visita Exu encontra um município com mais de 30.000 habitantes, com crescimento estável, uma cidade agradável do sertão nordestino, com um povo muito receptivo, que se orgulha de ser a terra do “Rei do Baião”. Eles gostam de mostrar aos visitantes o Parque Aza Branca, um museu dedicado à vida e à carreira de Luiz Gonzaga, além do Museu Bárbara de Alencar, na casa-grande da Fazenda Caiçara, e os interessantes locais na zona rural para a prática do ecoturismo. Em nenhum momento para um visitante que ali vai se sente o mínimo aspecto de tensão e medo. Mas, definitivamente, os moradores de Exu detestam relembrar esse período complicado da história do seu lugar. E eu não lhes tiro a razão.
Exu atualmente – Fonte – G1-PE.
Por isso, buscando compreender mais do que ali aconteceu em relação aos fatos históricos, foi que pesquisei e escrevi esse texto.
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NOTAS
[1] A denominação Exu, conforme os habitantes da terra, teria duas versões, uma decorrente de uma corrutela do nome da tribo que ali habitava e a outra é a denominação popular de um tipo de vespa que produz mel, cujo nome científico é Nectarina lecheguana, e chamada de “Inxu”, que ao ferroar causa muita dor.
[2] Importante comentar que o coronel Romão Filgueira Sampaio Filho era irmão do coronel Francisco Romão Sampaio, o famoso Chico Romão, o chefe da cidade pernambucana de Serrita e que morreu baleado em 1964. Ambos eram filhos do coronel Romão Pereira Filgueira Sampaio, importante figura política do final do século XIX no extremo oeste pernambucano e sul do Ceará, com o seu poder alcançando desde a cidade cearense de Jardim, até Salgueiro e Serrita, em Pernambuco.
[3] Partido Social Democrático (PSD) foi um partido político brasileiro identificado como de centro e fundado em 17 de julho de 1945 por antigos interventores do Estado Novo nas unidades federadas. Elegeu dois presidentes (Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek) e dois primeiros-ministros (Tancredo Neves e Brochado da Rocha). Também foi o partido de três presidentes da república que ascenderam ao cargo em função da linha sucessória (Carlos Luz, Nereu Ramos e Ranieri Mazzilli). Foi extinto na ditadura militar, pelo Ato Institucional Número Dois (AI-2), em 27 de outubro de 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Social_Democr%C3%A1tico_(1945) .
[4] Udenista é referente a UDN, ou União Democrática Nacional, um partido político fundado em 1945, de orientação conservadora e frontalmente opositor às políticas e à figura de Getúlio Vargas. Existiu de 1945 a 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Democr%C3%A1tica_Nacional
[5] Cincinato de Alencar Sete (ou algumas vezes Sette) é como o nome desse Senhor aparece nos registros oficias de bastimos dos seus filhos e até no atestado de óbito de Zito Alencar. Entretanto, em documentos da polícia pernambucana e na imprensa em geral, o nome que surge é Cincinato Sete de Alencar. Preferi seguir os documentos existentes em cartórios. Alguns desses registros apontam que Cincinato tinha a patente de capitão da Guarda Nacional.
[6] A imprensa informou na época que seu nome era Francisco Sete de Alencar. Novamente sigo os documentos em cartório que afirmam seu nome era Franscisco Aires de Alencar. Não consegui descobrir qual foi a real participação de Francisco nesse tiroteio, mas descobri que ele depois de ferido foi se tratar no Crato, Ceará, e de lá veio de avião para o Recife. Consta que faleceu em 1979.
[7] Ver Diário de Pernambuco, edição de 12 de abril de 1949, terça-feira, pág. 3.
[8] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 4 de fevereiro de 1953, quinta-feira, pág. 3.
[9] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.
[10] A Casa da Torre foi o embrião de um grande morgado que se iniciou na capitania da Bahia ainda no século XVI e que, por quase 300 anos, expandiu-se ao longo das gerações dos seus senhores por mais de 400 léguas na Região Nordeste do Brasil — um território que correspondia ao dobro da capitania do Piauí — à custa de guerras de extermínio contra os índios, com escravização destes para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar, nos engenhos e nas criações de animais. A expansão também foi motivada pela busca de metais preciosos, mas sem maiores sucessos. Constitui-se no centro de um expressivo poder militar no período colonial. De 1798 em diante, esteve envolvido nas lutas pela Independência do Brasil. Muitos dos seus membros foram agraciados com títulos de nobreza pelos monarcas Pedro I e seu filho Pedro II – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_da_Torre .
[11] Guálter Martiniano de Alencar Araripe, primeiro e único barão de Exu (Exu, 18 de junho de 1822 — Exu, 22 de julho de 1889), foi um político brasileiro, coronel da Guarda Nacional e eleito por diversas vezes deputado provincial por Pernambuco – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Gu%C3%A1lter_Martiniano_de_Alencar_Araripe .
[13] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 22 de julho de 1972, págs. 126 a 128.
[14] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 5 de julho de 1972, 1º Caderno, pág. 3.
[15] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.
[16] Ver Diário de Pernambuco, edições de quarta e quinta-feira, 21 e 22 de junho de 1972, sempre nas primeiras páginas.
[17] Ver Diário de Pernambuco, edição de sexta-feira, 18 de agosto de 1972, pág. 12.
[18] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.
[19] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 14 de setembro de 1972, pág. 27.
[20] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.
[21] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de outubro de 1972, pág. 1.
[22] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de setembro de 1978, pág. 15.
[23] Ver O Globo, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta-feira, 20 de outubro de 1972, pág. Anos depois, quando o encontro no quartel de Garanhuns era somente uma lembrança quase irônica, foi a vez de Zito Alencar ser eliminado. Após se recuperar do atentado em Sapé em 1972, Zito decidiu voltar ao Exu e se candidatou a prefeito em 1977, sendo eleito em 1º de fevereiro. Governou Exu por apenas 15 meses, quando em 12 de maio de 1978 foi assassinado com dois tiros na cabeça, sentado na cabine de uma camionete D-10, estacionada defronte a Farmácia São José. O acusado de matar Zito foi o pistoleiro Gérson Lins, o “Joínha”, que na época estava preso na cadeia pública de Juazeiro do Norte, Ceará, mas saiu sem problemas para executar o crime. Na época Gerson confessou à polícia e a imprensa que o mandante da morte de Zito foi Raimundo Peixoto e a “encomenda do serviço” foi de CR$ 30.000,00 (Trinta mil cruzeiros). Depois de suas declarações à imprensa, Gérson Lins afirmou que confessou mediante tortura realizada por policiais, mas essas acusações foram refutadas.
[24] Ver Diário de Pernambuco, edição de quinta-feira, 18 de janeiro de 1973, pág. 1.
Como um mercenário alemão da região de Hesse, prisioneiro entre índios canibais brasileirosconseguiu sobreviver para trazer ao público a sua grande aventura, que se tornou um best-seller na Europa
Após Cristóvão Colombo atravessar o Oceano Atlântico em 1492 algumas informações desta viagem começaram a circular na Europa, atiçando o imaginário dos habitantes do Velho Continente sobre o que havia nestes exóticos locais.
Logo, em 1502 e 1504, foram publicadas cartas do explorador e cartógrafo florentino Américo Vespúcio, onde ele apresentou curiosos e fantásticos relatos do “Mundus Novus”. Vespúcio descreveu tempestades, animais estranhos, mulheres sensuais, sexo indiscriminado e canibalismo. Este último fato presenciado pelo famoso navegador na costa potiguar, em 1501, na atual Praia do Marco.
Um tatu (ou um quati), visto e descrito por Staden quando esteve no Brasil
“Mundus Novus” foi um dos maiores best-sellers em seu tempo. Em apenas três anos, 19 edições das cartas de Vespúcio foram publicadas somente em alemão, ajudando a denominar de Novo Mundo, tudo que estivesse do outro lado do Atlântico.
Certamente que os homens que faziam livros naquela época perceberam que ganhariam muito dinheiro com outras obras que trouxesse nas suas páginas os relatos dos navegantes e suas aventuras.
Mas quem poderia escrever algo assim?
Um Mercenário no Novo Mundo
Muito provavelmente o alemão Hans Staden, natural da cidade de Homberg, lutou como um mercenário na Guerra de Schmalkaldischen, uma das primeiras guerras religiosas entre protestantes e católicos. O nosso herói era um “Büchsenschütze”, um atirador de arma de fogo longa, um artilheiro, e, portanto, um especialista muito requisitado naquela época em que as armas de fogo ainda eram uma novidade. Consta que mercenários com esta função faziam um bom dinheiro, quase o dobro dos soldados comuns de infantaria.
Hans Staden
Staden combateu por seus senhores protestantes, que derrotaram o imperador católico, mas não tinham dinheiro para pagar suas tropas. Além disso, na sequência destes acontecimentos, a região de Hesse foi ocupada pelos católicos, com tropas onde havia mercenários portugueses. Talvez nesta hora Staden tenha escutado pela primeira vez algo sobre o Brasil.
Provavelmente animado por relatos dos lusos, Staden deixou sua região e foi até a cidade de Bremen, de lá seguiu para o porto holandês de Kampen e ali subiu a bordo de um cargueiro que seguia para Península Ibérica em busca de sal. Em 29 de abril de 1547 chegou a Setúbal e depois foi para Lisboa.
Na capital de Portugal existia uma colônia alemã de tamanho considerável. Staden encontrou hospedagem junto a um anfitrião chamado Leuhr, que mediou sua entrada para uma expedição que seguia para as “Índias”. Embarcou em uma nau lusa para Pernambuco no dia 28 de janeiro de 1548, cujo capitão chamava-se Penteado. Colocaram Staden como artilheiro do navio e ele não era o único alemão a bordo, havia ainda Hans Hausen, de Westerwald, e Heinrich Prant, de Bremen. O futuro escritor e seus companheiros foram envolvidos no sequestro de navios mouros, viu peixes voando para dentro do convés próximo a costa marroquina. Chegou ao Brasil com a missão de transportar degredados portugueses remetidos para povoar a colônia, recolher pau-brasil e atacar corsários ses que exploravam as nossas costas.
Aparentemente Staden lutou contra corsários ses na Paraíba e não esteve onde hoje é o Rio Grande do Norte. Mas se houvesse ocorrido este confronte certamente não seria uma tarefa fácil para os mercenários alemães, pois os gauleses conheciam profundamente a costa nordestina e potiguar. Constam que estes estiveram na enseada de Itapitanga (atual Praia de Pititinga), também no Rio Pequeno, ou Baquipé (depois denominado Ceará-Mirim, onde penetravam os barcos sas, que ali iam resgatar o pau-brasil aos indígenas), no Rio Grande, ou Potengi (aonde os ses iam muitas vezes as suas margens carregar madeiras nobres e nesta área, em 1599, os portugueses fundariam uma comunidade que ficou conhecida como Natal), no porto dos Búzios (na foz do Rio Pirangi), na enseada de Tabatinga (entre o porto dos Búzios e Itacoatiara, ou Ponta da Pipa) e na enseada de Aratipicaba (atual Baía Formosa).
Pouco depois o grupo mercenário de Staden foi requisitado pelo Governador Geral Dom Duarte da Costa para defender uma fortaleza na região de Igaraçu, Pernambuco. O local era constantemente atacado por grupos que totalizavam cerca de 8.000 indígenas, sendo defendido por aproximadamente 120 pessoas, às quais se uniram os cerca de 40 recém-chegados, incluindo Hans Staden. Depois de uma renhida luta e de um cerco prolongado no qual vieram a faltar provisões, os defensores conseguiram, afinal, vencer os indígenas. Neste embate tão desigual, foi a tecnologia das armas de fogo que fez a diferença.
Após um ano e meio ele retornou para Lisboa, aonde chegou em 8 de outubro de 1548.
O que ele viu no Brasil já seria suficiente para um livro, entretanto estes primeiros momentos em terras tropicais ocuparam apenas cinco capítulos, de 53, do seu futuro trabalho literário.
Entre Canibais
Talvez decepcionado com a falta de perspectivas de um Brasil que só tinha os produtos das suas florestas a oferecer aos aventureiros europeus, Staden foi para a Espanha para depois seguir em busca de ouro na América Espanhola.
Em abril 1549 partiu em uma nave da armada de Diogo de Sanábria, que pretendia fundar um povoado na costa da Ilha de Santa Catarina e outro na embocadura do Rio de la Plata. Mas nesta segunda ocasião em terras tropicais ele não teve sorte, pois seu navio naufragou na costa catarinense. Os integrantes da expedição, depois de arem dois anos na região, decidiram rumar para a cidade de Assunção, atual capital do Paraguai. Staden se juntou a um grupo que rumou para a cidade de São Vicente, no litoral paulista, onde tentaria fretar um navio capaz de chegar a Assunção. Existem informações que deste último ponto os europeus pretendiam alcançar a Bolívia e o Peru em busca de ouro.
Antes de chegar a São Vicente o navio de Staden naufragou nas imediações de Itanhaém, no litoral paulista, mas seus ocupantes conseguiram nadar até a praia. De lá, foram a pé até São Vicente, onde Staden foi contratado, inicialmente por quatro meses, como artilheiro (outras fontes apontam como comandante) do Forte de São Felipe da Bertioga.
Em 1553, ao realizar uma caçada sozinho, foi capturado por indígenas. Ele contou depois que os índios usavam pequenos gravetos no lábio inferior e nas bochechas, discos de conchas brancas no pescoço e estavam cobertos com penas. Tinham seus corpos nus e estavam com os braços pintados em vermelho e preto. Os seus captores lhe jogaram violentamente no chão, rasgaram suas roupas, lhe espancaram e o esfaquearam. Nu e sangrando, Staden foi levado para a aldeia de Ubatuba (Uwattibi, no texto original do relato de Staden), dos índios tupinambás, do chefe Cunhambebe. Segundo o historiador Capistrano de Abreu, este chefe guerreiro se encontrou com Staden na Serra de Ocaraçu, atual conjunto de morros do Cairuçu, ao Sul de Paraty, na região de Trindade, Rio de Janeiro. Ele seria pai de outro chefe chamado Cunhambebe, líder de maior autoridade dentro da coalizão indígena conhecida como Confederação dos Tamoios, que lutou bravamente contra os portugueses.
Após a captura, Staden percebeu que a intenção dos indígenas era devorá-lo. Certas fontes apontam que, ado algum tempo, índios tupiniquins atacaram a aldeia onde ele era mantido prisioneiro. Obrigado pelos tupinambás, Staden lutou ao lado destes. Seu desejo era tentar fugir para unir-se aos atacantes. Mas, estes, vendo que a resistência dos defensores era muito forte, desistiram da luta e se retiraram.
O alemão testemunhou o ritual do canibalismo praticado contra indígenas capturados e o descreveu com riqueza de detalhes no seu relato. Outras fontes apontam que o alemão não foi vítima de canibalismo dos tupinambás pelo fato dele não ser português, já que seus captores haviam se aliado aos ses.
Ritual de canibalismo. Staden, o barbudo nu a direita, se coloca horrorizado diante da cena.
Independente desta questão o certo é que o alemão ou nove meses junto aos seus captores. Chegou a aprender a língua deles e seu livro contém 150 de suas expressões. Staden acompanhou os indígenas em suas campanhas guerreiras e chegou até mesmo a ter esposas, como era comum entre os brancos que tinha amizades com os índios. Mas Staden silenciou sobre isso mais tarde, provavelmente para não manchar a sua reputação como um cristão. Um dos costumes que o alemão vivenciou foi a participação nas festas em que bebera o cauim, uma bebida alucinógena produzida pelas mulheres da tribo para grandes rituais.
Preparo do caulim
Durante seu cativeiro o alemão chegou pedir ajuda a um navio português e a outro francês. Ambos recusaram-se a ajudá-lo por não desejarem entrar em conflito com os índios. Um dia, em 1554, chegou à aldeia de Cunhambebe a tripulação do barco francês Catherine de Vatteville, comandado por Guillaume Moner, que manteve contato com o alemão. Consta que para libertar Staden o francês enganou os tupinambás, afirmando que “seus irmãos tinham vindo busca-lo” e ele foi trocado por facas, machados, espelhos e pentes de pouco valor. Essa troca talvez tenha sido apenas um ato de pura piedade e fé cristã, pois o tempo em que Staden ou ao lado dos tupinambás parece que pouco interessou aos marinheiros gauleses.
De Volta ao Velho Mundo
Staden viajou para Europa via o porto francês de Le Havre, depois esteve em Londres, logo após desembarcou na Antuérpia e finalmente chegou à região de Hesse. Ele estabeleceu-se na cidade de Wolfhagen e começou a trabalhar numa fábrica de pólvora.
Dois anos depois o alemão Hans Staden estava financeiramente quebrado, mas ele tinha visto coisas verdadeiramente inusitadas. Mais do que qualquer outra pessoa de sua região e tinha algo para vender; uma história para um livro.
Combate entre índios
Para sua época o que ele tinha para contar era algo tão inacreditável que poderia ser um problema para fazer os seus leitores acreditarem no que estava escrito. Mas era tudo verdade e ele tinha experimentado tudo sozinho. Já em 1556 ele teria terminado o manuscrito de seu livro.
O homem que aceitou produzir a sua obra foi Andreas Kolbe (ou Andres Colben), um respeitado gráfico que preparava principalmente folhetos religiosos. Kolbe trabalhava no ramo desde 1546, na cidade de Marburg, mas seu negócio não era particularmente lucrativo e ele precisava de um sucesso em seu programa. Como corresponsável pelo livro de Staden, Kolbe chamou Johann Eichmann, conhecido como Dr. Dryander, professor de matemática e anatomia da universidade de Marburg, considerado um dos principais médicos de seu tempo. O Dr. Dryander representava a reputação acadêmica, escreveu o prefácio, e explicou ao público alemão por que a história de Staden era “verdade”. O Dr. Dryander também afirmou que conhecia o pai de Hans Staden e atestou a reputação do escritor e aventureiro.
E assim foi publicado em março 1557, em Marburg, um livro sobre o Brasil. Um lugar cuja existência tinha apenas 50 anos entre os Europeus ditos civilizados e da qual se tinha uma vaga ideia do que ali existia.
Dúvidas e Sucesso
Desde então tem sido muito discutido sobre qual a parte que Staden realmente escreveu? Pois ele era um soldado, com presumivelmente pouca educação para escrever um texto com 53 capítulos. Para muitos quem escreveu o livro foi o Dr. Dryander. Outros chegaram até mesmo a questionar se Staden foi realmente uma testemunha ocular e se esteve entre canibais brasileiros?
Mas Staden foi muito detalhista no seu relato e consta que o Dr. Dryander nunca deixou a Alemanha em direção ao Novo Mundo. E os fatos verificáveis - na época havia muito mais, porque Staden apontou datas, nomes e eventos – levam os seus inúmeros defensores a mostrarem isso como prova da autenticidade de suas experiências.
Críticos apontam que no texto, pelo menos ocasionalmente, Staden deve ter exagerado em seus relatos para abrir ao seu livro melhores oportunidades de mercado.
É claro que na publicação desta obra Staden, Kolbe e o Dr. Dryander tiveram o público em mente. Pois dinheiro foi gasto na feitura de 50 xilogravuras que compõem a obra, produzidas conforme as descrições do autor. Isso certamente fez com que o livro ficasse mais atraente para leitores inseguros com a incrível história.
Independente destas questões, o sucesso da publicação dos relatos de Staden foi imediato. Tanto que ainda em 1557, Kolbe colocou a venda uma segunda edição, que segundo o historiador berlinense Wolfgang Neuber é estimado em 3.000 exemplares. Um número considerável para a época.
Sim, e vejam como era o título original – Wahrhaftige Historia und Beschreibung einer Landschaft der wilden, nackten, grimmigen Menschfresser Leuthen in der Newenwelt America gelegen (História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América). Na atualidade o título desta obra parece um tanto grandioso, mas na verdade era relativamente curto para os padrões da época. Nas edições posteriores as xilogravuras de Staden seriam reproduzidas pelo belga Theodore de Bry a partir de uma técnica mais sofisticada e dispendiosa que a anterior.
Legado de Quase 460 Anos
Embora no século XVI a impressão de um livro pudesse gerar uma renda decente, aparentemente para Hans Staden o que ele não viu foi o dinheiro dos direitos autorais. E para piorar a situação, no mesmo ano do lançamento oficial foram publicadas em Frankfurt duas cópias não autorizadas da sua obra. Ou seja, piratearam descaradamente o livro do mercenário alemão!
Entretanto historiadores germânicos apontam que o sucesso do livro ajudou a melhorar a situação do antigo prisioneiro dos tupinambás, pois o prestígio conseguido abriu as portas para um emprego na corte de um conde local. Estudos a partir de notas da época sugerem que ele se casou em Wolfhagen e desta união veio duas filhas e um filho, que morreu em decorrência de uma praga no ano de 1576.
Ao longo dos séculos a obra de Hans Staden se firmou como um importante relato da realidade dos primeiros anos de ocupação europeia do território brasileiro. A partir de sua leitura é possível ter uma ideia, mais ou menos bem acabada dos personagens importantes do período: corsários ses, colonos portugueses, indígenas, aliados e inimigos dos colonos estabelecidos no litoral. Os costumes dos tupinambás estão ricamente descritos no livro.
Hans Staden nunca mais escreveu nenhum livro. Mas sua única experiência literária é comentada há quase 460 anos, onde foram publicadas mais de 80 edições, em oito idiomas diferentes.
Nada mal para um simples artilheiro da província de Hesse.