1972 – O QUE FOI O PACTO DE HONRA NA GUERRA DAS FAMÍLIAS ALENCAR E SAMPAIO DE EXU, PERNAMBUCO, FIRMADO NO BATALHÃO DE INFANTARIA DE GARANHUNS?

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Em 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial e a deposição do ditador Getúlio Vargas, teve início o processo de redemocratização no Brasil, que, infelizmente levou a inúmeras disputas políticas e conflitos pelo país afora. Na região de Exu[1], sertão de Pernambuco, não foi diferente.

Em 24 de dezembro de 1946, na segunda página do jornal recifense Folha da Manhã surgiu a manchete abaixo, verdadeira profecia do que iria então ocorrer naquela cidade.

Nesse jornal existe a transcrição de um telegrama de Romão Filgueira Sampaio Filho (21/08/1887 – 10/04/1949)[2], conhecido como coronel Romão Filho, ou ainda Seu Romãozinho, sobre o clima político existente na cidade. O telegrama foi enviado ao então deputado federal Agamenon Magalhães, ex-governador de Pernambuco entre 1937 a 1945 e que seria novamente governador pernambucano entre os anos de 1951 e 1952.

Prossegue, sem interrupção, as violências e ameaças desencadeadas no interior do Estado contra os elementos do Partido Social Democrático[3]. Ontem outros telegramas foram enviados ao deputado Agamenon Magalhães, nos quais os signatários, pertencentes ao partido majoritário ou dele simples simpatizantes, denunciam novas ameaças e agressões cometidas pelas autoridades policiais e prefeitos udenistas[4]. Foram os seguintes os despachos dirigidos ao deputado Agamenon Magalhães:

EM EXU – José Aires de Alencar Sete, indicado cargo de comissário de polícia, manteve durante a feira local atitude hostil, intimando eleitores, tendo agredido João Pereira de Carvalho e Expedita Sampaio, funcionários demitidos em ato arbitrário do prefeito. Levei ao conhecimento do caso ao juiz, pontuando lamentáveis incidentes. Provável e iminente hecatombe. Saudações. Romão Sampaio Filho.”

Notícia original dos trágicos acontecimentos do Domingo de Ramos de 1949 em Exu.

Dois anos e quatro meses após a publicação dessa notícia, mais precisamente as oito da manhã do dia 10 de abril de 1949, em plena Semana Santa e no Domingo de Ramos, o badalar dos sinos da missa do Padre Mariano de Souza Neto foi diminuído pelos disparos de armas de fogo, em um tiroteio que deixou mortos Romão Sampaio e Cincinato de Alencar Sete (23/11/1889 – 10/04/1949), conhecido como Seu Sete[5].

Esses homens eram os chefes das famílias Alencar e Sampaio, as duas principais da cidade de Exu e eram compadres. O primeiro foi morto por José Aires de Alencar, conhecido como Zito Alencar, então com 23 anos e filho de Cincinato Alencar. Comentou-se que Romão Sampaio engraxava os sapatos quando foi morto e outros dizem que caminhava quando discutiu com Zito e este lhe deu dois ou três tiros na cabeça.

Padre Mariano de Souza Neto, pároco de Exu durante a maior parte do período que ocorreram os conflitos.

Após essa morte e ainda naquele mesmo dia, Cincinato tombou ao receber vários tiros de rifle e revólver. Este foram disparados respectivamente por Aristides Sampaio Filgueira Xavier, filho do coronel Romão e suplente de deputado estadual pelo PR – Partido Republicano, e o então prefeito da cidade Otacílio Pereira de Carvalho, genro do coronel Romão e cunhado de Aristides. Ficaram feridos no tiroteio o prefeito Otacílio, na perna e sem gravidade, e Franscisco Aires de Alencar, esse último filho de Cincinato, que ficou paralítico e preso a uma cama pelo resto de sua existência[6]. Consta que também foi atingido com gravidade o cidadão de nome José de Miranda Parente[7].

Otacílio foi acusado de ter disparado seis tiros a queima roupa em Cincinato Alencar[8]. Mas as fontes divergem quando o assunto é quantos disparos mataram esse homem, com algumas apontando 11 tiros e outras que pulam para 23. O enterro dos dois líderes foi no mesmo dia, mas em horas diferentes para evitar mais mortes[9].

Francisco Aires de Alencar e sua cama oltada para a rua em Exu.

Para muitos as querelas políticas locais foram as principais causas do início das questões de sangue entre os Alencar e Sampaio em Exu no ano de 1949, mas existem outras versões.

Uma delas dá conta que na época havia sido recentemente instalada uma difusora de notícias em Exu, o serviço de autofalantes espalhados na cidade, as populares “bocas de ferro”. Ocorre que começou uma troca de mensagens divulgadas por esse serviço, todas de cunho político, entre adversários das duas famílias e o clima foi esquentando. As mensagens foram ficando mais ácidas e pesadas, deixando a “a de pressão” no limite, até descambar na tragédia do Domingo de Ramos de 1949.

Existe também a versão de um caso que envolveu uma pretensa traição matrimonial, junto com o uso da violência. Consta que Antoliano Aires Alencar comentou que uma parente sua, mulher casada, estava traindo o seu marido com Aristides Sampaio, o filho vingador do coronel Romão. Então, o que aparentemente era só um boato, um fuxico besta, acabou por gerar uma tremenda surra em Antoliano Alencar nas proximidades de sua propriedade. E houve mais – além de surrado, Antoliano foi amarrado e obrigado a engolir pedaços de páginas de jornais misturados com urina. Uma versão afirma que então Zito Alencar teria ficado possesso com a situação e tomou as dores do parente. Foi pessoalmente reclamar do caso com o coronel Romão Filho, que nada fez. E aí veio os crimes do dia 10 de abril de 1949.

Cemitério de Exu.

Seja lá quais forem as reais e corretas versões, a tristemente lembrada “Guerra do Exu” teve início naquele Domingo de Ramos de 1949. Ao longo dos anos muitas covas seriam abertas no Cemitério São Raimundo e muito choro seria derramado.

O Cenário das Lutas

A cidade de Exu começou a sua história nos primeiros anos do século XVIII, com os contatos entre os vaqueiros de uma fazenda vinculada à Casa da Torre, de possíveis proprietários baianos, com o povo indígena Ançu ou Açu, identificado com a nação Cariri e que viviam nas vizinhanças[10].

Exu e ao fundo o Serrote do Alto Grande.

Consta que os índios levaram esses vaqueiros até às suas tabas e estes informaram aos seus patrões que nas terras onde moravam os indígenas existiam fontes de água e terrenos de boa qualidade para o cultivo e criação. Anos depois chegaram alguns freis jesuítas, que ali permaneceram por certo período. Em 1734 foi constituída a Freguesia do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, com um abrigo e uma capela, tendo com isso se desenvolvido o núcleo populacional local.

Em Exu circula a ideia que entre os primeiros colonos a penetrarem em terras que compõem atualmente esse município pernambucano estava o português Joaquim Pereira de Alencar, anteado do escritor e político cearense José de Alencar e avô do Barão do Exu[11]. Após o fim da Revolução Pernambucana, ou Revolução dos Padres (6 de março a 20 de maio de 1817), ocorreu em Recife a prisão da comerciante e revolucionária Bárbara de Alencar (1760 – 1832), exuense descendente dos primeiros colonos portugueses que se estabeleceram na região e considerada a primeira presa política do Brasil, marcou sua existência com muitas lutas. Em consequência sua Fazenda Caiçara foi confiscada e ela e outros membros da sua família só foram libertados da prisão em 1820[12].

Em março de 1846 o povoado de Exu era elevado à categoria de vila e em 7 de julho de 1885 a município.

Banho de Sangue

Mas voltando as questões ocorridas no século XX, com a morte dos antigos líderes políticos a família Alencar despontou nos pleitos municipais e seus membros assumiram o domínio político de Exu. A partir de 1950 elegeram todos os prefeitos e garantiram sempre a maioria dos nove vereadores da Câmara Municipal. Diziam que “não perdiam nem eleição de quermesse e pastoril”.

Em 1956 Juarez Aires de Alencar, filho de Cincinato e irmão de Zito Alencar, encontrou na cidade do Crato, Ceará, com o agora ex-prefeito Otacílio Pereira de Carvalho e aquilo lhe esquentou o sangue. Enfim, não era fácil encontrar com um dos assassinos do seu pai e tentou pegar sua arma. Mas naquele dia Otacílio não perdeu tempo com meditações e abriu fogo. Deu dois tiros secos e rápidos que mataram Juarez. Vale frisar que Otacílio aria por dois julgamentos e seria absolvido em ambos.

Notícia do resultado do julgamento de Otacílio Pereira de Carvalho.

Em 1957, em um final de tarde de um dia de feira, Francisco Vaqueiro, ajudante de Antoliano Alencar e tido pelas autoridades como pistoleiro, foi morto em Exu com quatro tiros e seus pretensos assassinos foram os irmãos Janilton e Javilmar Sampaio Peixoto e um primo de nome Delmar. Nessedia, como medida de precaução, ninguém saiu as ruas quando escureceu e o bilhar ficou vazio e sem conversas.

Então houve um momento de calmaria, de paz provisória, onde segundo escreveu o repórter Ricardo Noblat “Esse período de tranquilidade em Exu foi farto de casamentos entre os membros dos dois grupos e também de alianças políticas[13]. E quando veio a Revolução de março de 1964, o período da Ditadura Militar, em Exu só existia o partido do Governo Federal, a ARENA – Aliança Renovadora Nacional. E para acomodar os dois grupos foi criada por eles uma divisão local e surgiu a “ARENA 1” e a “ARENA 2”. Completamente desunidas na política local, mas unidas no plano federal.   

Em 1965, apenas pelo ódio latente existente, Antônio Jaílson Sampaio Peixoto foi morto em Exu com onze tiros pelas costas. Os autores foram os irmãos José Audísio Aires Alencar e Canuto Aires Alencar. Antônio Jaílson tinha 19 anos. Essa morte trouxe para luta outras duas famílias – os Aires se ombrearam com os Sampaio e os Alencar com os Peixoto.

Consta que a partir desse último caso, em meio a toda essa sangria, as autoridades pernambucanas despertaram mais seriamente para o problema. O destacamento policial do Exu foi reforçado e foram nomeados delegados com a missão de restaurar a paz na cidade. Mas logo as mortes se sucederam.

Blitz policial perto de Exu.

Em 1966, Getúlio Coutinho morreria em Exu com tiros disparados por Adauto Alencar Filho. No ano seguinte Raimundo Canuto de Alencar morreu no centro de Exu, diante de um clube local, com cinco tiros disparados pelos primos Jamilton Peixoto Sampaio e Carloto Peixoto. Esse crime ocorreu no dia 13 de agosto de 1967 e a viúva de Raimundo, Gilvandete Canuto de Alencar, ficou com a responsabilidade de cuidar de nove filhos. Ainda em 1967, Jeová Colombo Coutinho, muito ligado a família Sampaio, trocou tiros com Raimundo Aires Alencar Ulisses, tendo ambos saídos feridos. Colombo com dois balaços e Raimundo com um.

Alguns anos depois, no dia 20 de fevereiro de 1972, um domingo, João Wagner Canuto Alencar (um dos filhos de Raimundo Canuto), de 23 anos, foi morto a tiros por Romeu Soares de Oliveira Sampaio, o Romeuzinho, um menino de 16 ou 17 anos. Em depoimento ao Jornal do Commercio, de Recife (edição de 15 de setembro de 1972, pág. 8), sua mãe Gilvandete Canuto de Alencar afirmou que Romeu teria tido o apoio de outros membros da família Sampaio. Comentou ainda que seu filho foi morto com tiros pelas costas quando concertava um Jipe, em frente ao posto de gasolina de Exu.

Não demorou e o troco chegou. Na tarde de 30 de abril de 1972, José Sampaio de Oliveira, pai de Romão Sampaio e tabelião de Exu, foi atacado por dois pistoleiros e levou cinco ou seis tiros, mas incrivelmente sobreviveu. Contaram outros 16 buracos de balas na parede de sua casa e os autores foram dois jovens. Um deles fugiu sem deixar rastro e o outro foi até preso, mas fugiu da cadeia. José Sampaio ficou com uma das balas na barriga e se mudou para a cidade pernambucana de Serrita, reduto dos Sampaio.

Enquanto isso o povo do Exu vivia rezando todos os dias para ver se Deus acabava com aquelas lutas. Quase ninguém ia ver filmes nos cinemas São Paulo e Alvorada e na feira, ponto de concentração da economia do município, o movimento diminuiu cerca de 40% e a arrecadação da prefeitura caiu 1/3 naquele 1972 pavoroso. Consta, segundo informou o coletor público Wilson Saraiva aos jornalistas, que a arrecadação do ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) caiu 35% em meio aos tiroteios.[14] A luta dividiu a tudo e a todos. Os Sampaio só frequentavam o Clube Recreativo 8 de Setembro e os Alencar o CEE – Clube Estudantil do Exu. A Praça da Bomba era o ponto de encontro dos Sampaio e a Praça Aprígio Pereira era o reduto dos Alencar[15].  E tem um detalhe – A intensa Exu tinha apenas 5.000 habitantes em 1972.

Quatro meses depois do atentado a José Sampaio, no dia 19 (algumas fontes dizem 20) de junho, foi a vez de Adauto Alencar ser morto. Este era solteiro, com 30 anos de idade e filho adotivo de Antoliano Alencar. Foi atingido quando seu irmão, o engenheiro agrônomo João Oldan de Alencar, parou a sua camionete C-10 e Adauto desceu para abrir uma porteira da fazenda do seu pai, a Romana (ou “Rumânia”). Recebeu apenas um tiro nas costas, disparado de um rifle Winchester 44 e seu irmão testemunhou tudo. Segundo Oldan, que não foi ferido e nem viu o atirador, depois que seu irmão recebeu o disparo ele ainda sacou do seu revólver e deu três tiros a esmo, caiu gritando de dor e faleceu. No local onde ficou o atirador de tocaia foi encontrado um verdadeiro esconderijo camuflado por ramos de árvores, onde havia restos de comida, uma cama improvisada e outros objetos, mostrando que o assassino ou alguns dias na posição para executar seu plano malévolo. Nunca foi mencionado em documentação ou na imprensa quem disparou contra ele, mas lembremos que Adauto foi acusado da morte de Getúlio Coutinho em 1966[16].

Situação da Justiça em Exu na época dos conflitos.

Em 17 de agosto de 1972, uma quinta-feira, o fazendeiro Jeová Colombo Coutinho, ligado aos Sampaio, saiu de casa cedo com o propósito de seguir até o Crato, porém, na altura da Fazenda Cachoeira, ele foi obrigado a parar seu veículo para retirar algumas pedras e troncos de madeiras colocados na estrada. Logo uma saraivada de tiros se abateu contra ele. Mesmo ferido o fazendeiro ainda sacou seu revólver e revidou à agressão, não conseguindo, no entanto, ferir ou identificar os atacantes. Atraídos pelos disparos, os empregados da fazenda Cachoeira correram até o local e encontraram Jeová Colombo Peixoto todo ensanguentado e de revólver em punho. Ele foi conduzido até Exu, onde membros da família Sampaio o removeram para o hospital do Crato. No local da emboscada descobriram cabaças com água, uma sandália japonesa meio cortado e restos de comida. Ninguém foi preso[17]. Existe a informação que Jeová levou 20 tiros e ficou paralítico[18].

Praça no centro da cidade.

O ódio tinha criado raízes. Por Isso, Janilton Sampaio Peixoto, irmão de Jamilton e Antônio Jaílson, funcionário público residindo no Recife e istrando o Mercado de Santo Amaro, tombou crivado com nove tiros de calibre 38 no dia 11 de setembro de 1972, uma segunda-feira, quando jantava com a família no restaurante “Palhoça do Melo”. Luiz Alberto e Antônio Aires de Alencar foram acusados de matar Janilton. Existe a informação que eles viviam em Santa Catarina e vieram de lá só para praticar esse assassinato. Deuzimar Ulisses Peixoto, a esposa de Janilton, foi ferida no braço e os dois filhos do casal, crianças de sete e dez anos de idade, presenciaram tudo.

Cruzes nas estradas de Exu.

No dia seguinte, ainda em Recife, defronte ao Edifício Cristina, no bairro do Espinheiro, José Arez Aires de Alencar foi ferido com três tiros efetuados por Vital Sampaio Peixoto e outros homens. O ambulante José João da Silva, que ava pelo local, foi ferido na ação.

Segundo informava o Diário de Pernambuco (edição de 14 de setembro de 1972), que em meio as lutas e como “medida acauteladora”, vários integrantes das famílias Alencar e Sampaio mandaram suas mulheres e filhos menores para outras cidades. E em Exu ficaram “apenas os rapazes que sabem atirar”. E o jornal completava afirmando “As mulheres e filhos dos Sampaio foram para o Crato, no Ceará, e as dos Alencar estão no Araripe”, outra cidade cearense. Mas houve outros problemas. Desde dezembro de 1971 não havia mais festas na cidade e cinco professoras pediram desligamento do MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) de Exu, pois os alunos simplesmente sumiram das salas de aula.

Revista policiual em um veículo que entrava em Exu.

As Manobras em Exu e Bodocó

Foi quando alguém decidiu tomar uma iniciativa para acabar com aquela verdadeira “orgia de sangue”. O então coronel Ivo Barbosa, comandante do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada (71º BIMtz), sediado na cidade pernambucana de Garanhuns, foi quem tomou essa iniciativa.

Coronel Ivo Barbosa de Araujo – Fonte – https://71bimtz.eb.mil.br/

Nascido em 19 de maio de 1928, na cidade de Nazaré da Mata, na área da zona da mata norte de Pernambuco, Ivo Barbosa de Araujo foi declarado aspirante a oficial da Arma de Infantaria em 17 de dezembro de 1948, ao concluir o curso de oficial da Escola Militar de Resende, atual Academia Militar das Agulhas Negras, e a partir daí foi galgando os postos do oficialato no Exército Brasileiro.

Soube que a ideia desse encontro começou durante uma manobra militar realizada entre as cidades pernambucanas de Bodocó e Exu e contava com a participação dos membros do 71º BIMtz. Durante quase uma semana (de 18 ao dia 24 de setembro de 1972) circularam nessa área com seus jipes e caminhões REO 6×6, um total de 379 militares (19 oficiais e 360 praças). Houve na verdade a realização de uma “Operação Presença” do Exército Brasileiro nessa área, que desdobrou em uma ACISO (Ação Cívico Social do Exército) em Exu. O tenente-médico Cláudio Montenegro Gurgel do Amaral e o tenente-dentista Climério Leite fizeram mais de 200 atendimentos e foram realizadas mais de 300 visitas sanitárias nas residências. Até a banda de música do batalhão tocou frevos na praça principal da cidade. Quem também adorou a chegada dos militares foi o comércio exuense, pois eles adquiriram muita comida e outros produtos na cidade e em propriedades vizinhas. Os militares circularam pelas ruas em seus uniformes verde-oliva, capacetes M-1 na cabeça, portando reluzentes fuzis FAL, metralhadoras INA e as famosas pistolas Colt 45, o que deixou Exu na mais absoluta paz durante aqueles dias[19].

Soldado do exército em uma esquina de Exu em setembro de 1972.

O coronel Ivo Barbosa então procurou os líderes das duas famílias e propôs um encontro na sede do seu batalhão, com o objetivo de sentarem frente a frente, dialogarem juntos e encontrarem o caminho da paz. E as lideranças concordaram. Na verdade, aquela proposta acabou sendo praticamente uma ordem, pois os chefes dos Alencar e Sampaio não eram idiotas de se colocarem contra o pedido de um oficial do Exército Brasileiro. Algo que naquela época poderia, talvez, trazer consequências mais complicadas para eles e seus negócios[20].

Mas antes até de ocorrer o encontro nas dependências do 71º BIMtz, um outro ato de violência foi praticado. José Aires de Alencar, o Zito Alencar, que matou o coronel Romão Sampaio no Domingo de Ramos de 1949, sofreu um atentado no dia 2 de outubro de 1972.

Soldados do Exérrcito Brasileiro em Exu.

Depois que Zito Alencar matou o coronel Romão ele foi preso, mas fugiu pouco tempo depois (dizem que subornou a guarda). Foi então para São Paulo de avião, onde ali ou alguns anos e existe a informação que teria até se formado. Daí voltou para o Nordeste, onde decidiu viver no município paraibano de Sapé com o nome falso de Adail Pessoa e montou um negócio. Mas nesse dia, ao dirigir na estrada que dava o a essa cidade, cruzou com um veículo Opala vermelho quando, de maneira rápida e inesperada, vários tiros partiram desse carro em direção ao seu, sendo Zito Alencar atingido no pescoço e na mão esquerda. Logo ele pegou um revólver com a mão direita e mandou três balaços no veículo dos pistoleiros, que fugiram. Como estava a apenas a cinco quilômetros de Sapé ele chegou rápido, recebeu apoio e sobreviveu[21].

O Acordo do Quartel de Garanhuns

O coronel Ivo Barbosa, apesar de preocupado, não esmoreceu e preparou seu 71º Batalhão de Infantaria Motorizado para o evento. Mas antes disso enviou para as autoridades em Brasília um relatório sobre o caso e sugeriu que, independentemente da do tal acordo, que em pouco tempo fosse decretada a intervenção federal no município, de forma a torná-lo área de segurança, com um policiamento ostensivo e permanente, onde seria realizado frequentes operações de desarmamento na cidade, nos sítios e nas fazendas. Evidenciando que apenas com à adoção de medidas preventivas e permanentes aquela luta fraticida e sangrenta teria um fim. Mas em Brasília ninguém deu atenção ao seu relatório!

Naqueles tempos complicados não era difícil ver em Exu.

Então, no domingo, 15 de outubro de 1972, ocorreu o encontro dos líderes e integrantes das famílias Alencar e Sampaio. Vejo que só o fato do coronel Ivo Barbosa colocar em uma mesma sala os integrantes daquelas duas famílias desarmados e uns diante dos outros, já poderia ser considerado um enorme êxito.

O maior resultado do comandante do Batalhão da Infantaria de Garanhuns foi ter sido redigido um “PROTOCOLO DE PAZ” constante de dez cláusulas, a ser assinado pelos membros de ambas as famílias. Lendo o documento eu percebo que ele atinge as raias do incrível, que mostra de alguma forma como se desenrolou essa reunião. Olhem abaixo:

Termos do acordo fimado na sede do 71º Batalhão de Infantaria Motorizada de Garanhuns.

Anos depois ao conceder uma entrevista, o coronel comentou que viu o clima em Exu muito tenso, fruto das mortes de muitos pais de famílias e outras pessoas que ali foram executadas. Afirmou que naquela luta jovens perderam a vida estupidamente e que em sua opinião a briga alcançou proporções incontroláveis de violência e barbarismo. Ele afirmou também que conheceu, provavelmente na época das manobras militares, muitos integrantes das duas famílias, que para ele eram homens trabalhadores e sérios, a elite da cidade, mas que estavam envolvidos emocionalmente no conflito e com o coração cheio de ódio. Afirmou que se mostrou chocado com os acontecimentos e apelou aos chefes dos clãs Sampaio e Alencar no sentido que fizessem uma pausa, meditassem e pensassem no futuro dos seus filhos e abandonassem a luta.

Para o coronel as manobras políticas e as intrigas se encarregavam de desencadear o ódio, de dar corpo a violência, de transformar rapazes imberbes em matadores frios e calculistas, justificando seus atos em nome da vingança, sentimento responsável pelo ciclo interminável da luta fratricida — “Matei para vingar, para lavar meu sangue com sangue – Essa era sempre a desculpa e a justificativa para a sucessão de mortes. Em um ambiente onde não há possibilidade de um equilíbrio emocional, os atentados, os homicídios e emboscadas são cometidos como um ato de heroísmo, de bravura, estimulando o derramamento de sangue. Então, a fúria incontrolável e inconsciente dos mais jovens havia se tornado o elemento de continuidade da luta entre os Sampaio e os Alencar.

Muitos fatores contribuíram para esse conflito continuar. As duas famílias lutavam pelo domínio da política partidária em Exu, recorrendo a todos os expedientes para alcançarem seus objetivos. Não esqueçamos as intrigas, a presença dos pistoleiros, os boatos alarmantes e a ausência da Justiça contribuíram muito para o caos. Some também a ideia do “Machismo do sertanejo” e a crença na letalidade fatalista de que “o homem só morre no dia certo”[22].

Segundo foi publicado no jornal carioca O Globo, após o encerramento do encontro, vários membros das duas famílias seguiram para as cidades cearenses de Barbalho, Crato, Missão Velha e Milagres e as localidades pernambucanas de Salgueiro, Araripina, Serrita, Bodocó e, evidentemente, Exu. Eles tinham a missão de conseguir as s dos membros das duas famílias que viviam nesses locais. Até Zito Alencar, que se recuperava do recente atentado em uma cama de hospital na Paraíba, assinou[23].

Policiais em Exu.

Acho que o maior problema desse momento foi que, por conveniência ou medo de estragar o encontro e uma possível paz, não se deliberou em nenhum momento punições para os envolvidos nos muitos crimes praticados. Se o Exército, que era politicamente muito forte nesse tempo, não apontou nenhum aspecto de punibilidade nesse encontro para os mais celerados, acho que só serviu para ampliar a já elevada sensação de impunidade e a certeza que tudo era possível!

Os jornais da época mostram uma certa euforia, torcida mesmo, para que aquele conflito se findasse. Mas…

O Começo do Fim

Mas o compromisso foi quebrado exatamente as uma e meia da tarde de 17 de janeiro de 1973, apenas três meses após o encontro em Garanhuns, quando Raimundo Aires de Alencar Ulisses, então prefeito de Exu, foi assassinado com tiros de revólver na praça principal da cidade, próximo a prefeitura e da Igreja Matriz de Bom Jesus dos Aflitos. Nesse crime ficou ferido com um tiro no pé Antônio Lourenço de Oliveira e foram acusadas seis pessoas. Raimundo Alencar não completou o seu mandato, sendo assassinado quando faltava 30 dias para terminar seu mandato. Deixou quatro filhos e sua esposa Riseuda Parente Aires estava gravida de seis meses[24].

Ao longo dos anos seguintes mais e mais mortes aconteceram, algumas sendo realizadas no Maranhão e até no Rio de Janeiro. Houve novas tentativas de acordos patrocinados pela Igreja Católica, que foram quebrados. Até Luiz Gonzaga, o mais ilustre filho de Exu, tentou com o seu prestígio acabar com aquela sangria. Mas, apesar do respeito que as famílias tinham pelo seu sucesso, não houve maiores resultados.

Luiz Gonzaga tocando para seu pai Januário em Exu. Foto realizada meses antes do falecimento de Seu Januário.

A imprensa pernambucana e nacional divulgava com destaque, muitas vezes mórbido e até mesmo doentio, cada acontecimento sangrento ocorrido em Exu, ou envolvendo os membros das famílias em litígio, o que só gerou problemas para os moradores do lugar. Várias vezes os jornais apontaram Exu como “A Cidade Maldita”. No final da década de 1970, o município foi até cenário das gravações de um documentário chamado “Exu, Uma Tragédia Sertaneja”, dirigido pelo competente documentarista Eduardo Coutinho, que buscou retratar os conflitos locais entre as famílias Alencar e Sampaio, tendo sido exibido no programa “Globo Repórter” e causado muita repercussão. Em meio a tudo isso, várias famílias de Exu se dispersaram pelo Brasil, em uma verdadeira diáspora para terem apenas o direito de viver!

Marco Maciel decreta a intervenção em Exu em 1981.

O fim, ou o começo do fim, só começou de verdade em 9 de novembro de 1981, quando Marco Antônio de Oliveira Maciel, então governador de Pernambuco, assinou a ordem de intervenção estadual no município de Exu e contando com o apoio do Governo Federal. Junto com o então Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, decidiram exonerar José Peixoto de Alencar, o prefeito eleito de Exu, e todos os vereadores.

A esquerda o Secretário de Segurança Pública Sérgio Higino Dias dos Santos Filho, junto do major Jorge Luís de Moura, interventor do município de Exu.

Designaram como interventor na cidade o major Jorge Luís de Moura, da Polícia Militar do Estado de Pernambuco. Ficou famosa a foto do major Moura andando pela cidade fardado, com uma valise em uma mão e na outra uma escopeta calibre 12.

O coronel Ivo Barbosa, que esperou nove anos para ver a intervenção do governo chegar ao Exu, o que talvez pudesse ter evitado muitas mortes, alcançou o posto de general de brigada e faleceu, salvo engano, em 2005.

Material do extinto Servição Nacional de Informações (SNI) sobre a intervenção em Exu.

Quem hoje visita Exu encontra um município com mais de 30.000 habitantes, com crescimento estável, uma cidade agradável do sertão nordestino, com um povo muito receptivo, que se orgulha de ser a terra do “Rei do Baião”. Eles gostam de mostrar aos visitantes o Parque Aza Branca, um museu dedicado à vida e à carreira de Luiz Gonzaga, além do Museu Bárbara de Alencar, na casa-grande da Fazenda Caiçara, e os interessantes locais na zona rural para a prática do ecoturismo. Em nenhum momento para um visitante que ali vai se sente o mínimo aspecto de tensão e medo. Mas, definitivamente, os moradores de Exu detestam relembrar esse período complicado da história do seu lugar. E eu não lhes tiro a razão.

Exu atualmente – Fonte – G1-PE.

Por isso, buscando compreender mais do que ali aconteceu em relação aos fatos históricos, foi que pesquisei e escrevi esse texto.

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NOTAS


[1] A denominação Exu, conforme os habitantes da terra, teria duas versões, uma decorrente de uma corrutela do nome da tribo que ali habitava e a outra é a denominação popular de um tipo de vespa que produz mel, cujo nome científico é Nectarina lecheguana, e chamada de “Inxu”, que ao ferroar causa muita dor.

[2] Importante comentar que o coronel Romão Filgueira Sampaio Filho era irmão do coronel Francisco Romão Sampaio, o famoso Chico Romão, o chefe da cidade pernambucana de Serrita e que morreu baleado em 1964. Ambos eram filhos do coronel Romão Pereira Filgueira Sampaio, importante figura política do final do século XIX no extremo oeste pernambucano e sul do Ceará, com o seu poder alcançando desde a cidade cearense de Jardim, até Salgueiro e Serrita, em Pernambuco.

[3] Partido Social Democrático (PSD) foi um partido político brasileiro identificado como de centro e fundado em 17 de julho de 1945 por antigos interventores do Estado Novo nas unidades federadas. Elegeu dois presidentes (Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek) e dois primeiros-ministros (Tancredo Neves e Brochado da Rocha). Também foi o partido de três presidentes da república que ascenderam ao cargo em função da linha sucessória (Carlos Luz, Nereu Ramos e Ranieri Mazzilli). Foi extinto na ditadura militar, pelo Ato Institucional Número Dois (AI-2), em 27 de outubro de 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Social_Democr%C3%A1tico_(1945) .

[4] Udenista é referente a UDN, ou União Democrática Nacional, um partido político fundado em 1945, de orientação conservadora e frontalmente opositor às políticas e à figura de Getúlio Vargas. Existiu de 1945 a 1965. Ver – https://pt.wikipedia.org/wiki/Uni%C3%A3o_Democr%C3%A1tica_Nacional

[5] Cincinato de Alencar Sete (ou algumas vezes Sette) é como o nome desse Senhor aparece nos registros oficias de bastimos dos seus filhos e até no atestado de óbito de Zito Alencar. Entretanto, em documentos da polícia pernambucana e na imprensa em geral, o nome que surge é Cincinato Sete de Alencar. Preferi seguir os documentos existentes em cartórios. Alguns desses registros apontam que Cincinato tinha a patente de capitão da Guarda Nacional.

[6] A imprensa informou na época que seu nome era Francisco Sete de Alencar. Novamente sigo os documentos em cartório que afirmam seu nome era Franscisco Aires de Alencar. Não consegui descobrir qual foi a real participação de Francisco nesse tiroteio, mas descobri que ele depois de ferido foi se tratar no Crato, Ceará, e de lá veio de avião para o Recife. Consta que faleceu em 1979.

[7] Ver Diário de Pernambuco, edição de 12 de abril de 1949, terça-feira, pág. 3.

[8] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 4 de fevereiro de 1953, quinta-feira, pág. 3.

[9] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.

[10] A Casa da Torre foi o embrião de um grande morgado que se iniciou na capitania da Bahia ainda no século XVI e que, por quase 300 anos, expandiu-se ao longo das gerações dos seus senhores por mais de 400 léguas na Região Nordeste do Brasil — um território que correspondia ao dobro da capitania do Piauí — à custa de guerras de extermínio contra os índios, com escravização destes para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar, nos engenhos e nas criações de animais. A expansão também foi motivada pela busca de metais preciosos, mas sem maiores sucessos. Constitui-se no centro de um expressivo poder militar no período colonial. De 1798 em diante, esteve envolvido nas lutas pela Independência do Brasil. Muitos dos seus membros foram agraciados com títulos de nobreza pelos monarcas Pedro I e seu filho Pedro II – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_da_Torre .

[11] Guálter Martiniano de Alencar Araripe, primeiro e único barão de Exu (Exu, 18 de junho de 1822 — Exu, 22 de julho de 1889), foi um político brasileiro, coronel da Guarda Nacional e eleito por diversas vezes deputado provincial por Pernambuco – Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Gu%C3%A1lter_Martiniano_de_Alencar_Araripe

[12] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/B%C3%A1rbara_de_Alencar .

[13] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 22 de julho de 1972, págs. 126 a 128.

[14] Ver Diário da Noite, Recife-PE, edição de 5 de julho de 1972, 1º Caderno, pág. 3.

[15] Ver revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro-RJ, edição de 30 de outubro de 1979, págs. 20 a 25.

[16] Ver Diário de Pernambuco, edições de quarta e quinta-feira, 21 e 22 de junho de 1972, sempre nas primeiras páginas.

[17] Ver Diário de Pernambuco, edição de sexta-feira, 18 de agosto de 1972, pág. 12.

[18] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.

[19] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 14 de setembro de 1972, pág. 27.

[20] Ver Revista Manchete, Rio de Janeiro-RJ, edição de 3 de fevereiro de 1973, págs. 123 a 126.

[21] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de outubro de 1972, pág. 1.

[22] Ver Diário de Pernambuco, edição de domingo, 3 de setembro de 1978, pág. 15.

[23] Ver O Globo, Rio de Janeiro-RJ, edição de sexta-feira, 20 de outubro de 1972, pág. Anos depois, quando o encontro no quartel de Garanhuns era somente uma lembrança quase irônica, foi a vez de Zito Alencar ser eliminado. Após se recuperar do atentado em Sapé em 1972, Zito decidiu voltar ao Exu e se candidatou a prefeito em 1977, sendo eleito em 1º de fevereiro. Governou Exu por apenas 15 meses, quando em 12 de maio de 1978 foi assassinado com dois tiros na cabeça, sentado na cabine de uma camionete D-10, estacionada defronte a Farmácia São José. O acusado de matar Zito foi o pistoleiro Gérson Lins, o “Joínha”, que na época estava preso na cadeia pública de Juazeiro do Norte, Ceará, mas saiu sem problemas para executar o crime. Na época Gerson confessou à polícia e a imprensa que o mandante da morte de Zito foi Raimundo Peixoto e a “encomenda do serviço” foi de CR$ 30.000,00 (Trinta mil cruzeiros). Depois de suas declarações à imprensa, Gérson Lins afirmou que confessou mediante tortura realizada por policiais, mas essas acusações foram refutadas.   

[24] Ver Diário de Pernambuco, edição de quinta-feira, 18 de janeiro de 1973, pág. 1.

CHAPÉU DE COURO NORDESTINO – INDENTIDADE DE UMA REGIÃO

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AS FOTOS QUE ILUSTRAM ESTE TEXTO SÃO DE ORGULHOSOS NORDESTINOS QUE CONHECI EM VÁRIOS LOCAIS DA NOSSA REGIÃO, JUNTO COM OUTROS AMIGOS, NOS ÚLTIMOS SEIS ANOS. SÃO PESSOAS QUE NÃO SE ENVERGONHAM DE USAR O CHAPÉU DE COURO – Fazenda Colônia – Carnaíba – Pernambuco – Foto – Solón Almeida Netto – 2008.

Autor – Rostand Medeiros

Este é um artefato que funciona como verdadeiro distintivo do Nordeste e do nordestino. Creio que talvez não existe um material com um aspecto tão forte em termos de identidade, tão representativo do nosso sertão do que o belo e tradicional chapéu de couro.

Um Material Com Fins Práticos 

A pecuária, a criação de gado no interior da atual Região do Nordeste do Brasil foi o primeiro grande fator de geração de renda e permanência do homem nesta região árida. Da atividade de criar o gado se obtinha a carne para alimentação, o leite e em seguida o couro, que era utilizado de diversas maneiras nas propriedades rurais. Em algumas fazendas se desenvolveram rústicos curtumes, que serviram para transformar o couro em mais um meio de geração de renda. Certamente foi nestes locais que se iniciou a tradição da manufatura dos chapéus de couro.

Este tradicional artefato nordestino inicialmente serviu basicamente para fins práticos, principalmente como parte da indumentária de proteção dos vaqueiros.

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Jeremoabo – Bahia – Foto – Rostand Medeiros – 2012

Além de primariamente servirem para proteger a cabeça dos sertanejos do inclemente sol e das chuvas temporárias, igualmente era utilizado para proteger seus usuários das ervas espinhosas da vegetação de caatinga, juntamente com o gibão e a perneira.

Mas apesar da designação comum, os chapéus de couro não possuíam um formato único. Variavam imensamente conforme a localidade do vaqueiro, servindo até mesmo como um identificador de sua proveniência.

Muitos acreditam que o tradicional chapéu de couro nordestino foi criado pelos cangaceiros. Mas isso não é verdade!

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Distrito de Nazaré, município de Floresta – Pernambuco – Foto – Rostand Medeiros – 2016

Entretanto devemos a estes bandoleiros das caatingas a transformação deste material em uma peça característica extremamente marcante na história deste movimento. Os cangaceiros faziam questão de colocar várias moedas (talvez para mostrar o apurado dos saques?), santinhos, cruzes, estrelas e outros símbolos, criando peças únicas em termos de estética e simbologia.

Fabricação Nada Fácil

Fabricar os tradicionais chapéus de couro nordestinos não é nada fácil. Primeiramente o couro do animal é levado para o curtimento vegetal. Lá ele é tratado, onde pode permanecer cru, com ou sem pelo, ser tingido, ou não.

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Barro – Ceará – Foto – Rostand Medeiros – 2015

Na segunda parte do processo o couro é cortado, dependendo das medidas determinadas, sendo tudo geralmente produzido à mão por jovens artesões.
Depois do corte o couro é molhado para ficar mais elástico e assim ser colocado em moldes. É lá que eles ganham forma e vão para a secagem. Esse processo depende da temperatura ambiente e pode durar de duas horas ou mais. Como chove pouco no sertão nordestino, isso não é um grande problema.

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Serra Talhada – Pernambuco – Foto – Rostand Medeiros – 2014

Em seguida o chapéu ganha a aba que vai proteger o rosto do vaqueiro. As oficinas fazem o tamanho das abas de acordo com o gosto do comprador, mas na Paraíba elas se caracterizam por serem curtas, já em algumas regiões da Bahia ela costuma ser maior.
A última etapa é a costura. Primeiro o material vai para a máquina de costura reta receber o acabamento. Mas os desenhos e aplicações ficam por conta da máquina manual, que apesar de ser mais trabalhosa é quem vai dar riqueza de detalhes ao chapéu de couro.

Todo esse trabalho, realizado por abnegados artesões, no meu entendimento o que mais valoriza este rico material.

Identidade Cultural

No meu entendimento foi a partir do sucesso de Luís Gonzaga no Sudeste, que utilizava vários modelos de chapéu de couro em suas apresentações, como marca de sua origem nordestina, estes órios aram gradativamente a ser utilizado como símbolo da vida sertaneja e do homem nordestino. Alem do Velho Lua, estas verdadeiras coroas nordestinas foram, e ainda são, utilizadas por gente do nível de Dominguinhos, Santana e tantos outros verdadeiros cantadores nordestinos.

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Vaqueiro depois de retornar da caatinga – Barro – Ceará – Foto – Rostand Medeiros – 2015

Entretanto, artistas que atualmente se dizem “forrozeiros”, que infelizmente são oriundos do próprio Nordeste, não utilizam mais em suas apresentações estes artefatos característicos.

Que eles não queiram usar estes símbolos nos grandes palcos é problema deles. Até aí tudo bem, gosto não se discute!

Mas o que se lamenta aqui é esse pessoal, travestidos de “modernos”, menosprezarem não apenas o velho e autêntico chapéu de couro, mas toda uma secular e tradicional cultura criada na região.

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Fazenda Barreiras, região da Serra Grande – Serra Talhada – Pernambuco – Foto – Rostand Medeiros – 2013

No meu entendimento o pior é que estes “artistas”, junto com a sua perniciosa e maciça “indústria cultural”, tentam de todas as formas mostrar a cultura tradicional nordestina como algo decadente, ultraada, sem serventia e em desuso. Estes seguem propagando músicas de extremo mau gosto, baixo nível e cantadas por gente que no máximo deveria utilizar suas vozes para vender jerimum na feira (com todo respeito aos feirantes).

A coisa é tão forte e o jogo é tão sujo que cheguei a ponto de perceber que aqueles que decidem utilizar um chapéu de couro em algumas regiões do próprio sertão nordestino são vistos de forma jocosa e com um olhar que fica entre o espanto e o mais completo escárnio. Interessante que há tempos atrás eu percebia isso apenas nas capitais.

Apesar desta questão, o bom e velho chapéu de couro está firme e forte na cabeça daqueles nordestinos que valorizam a cultura tradicional de sua terra. Até mesmo como símbolo de resistência cultural.

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Loja em Caruaru – Pernambuco – – Foto – Rostand Medeiros – 2016

E a melhor notícia é que a produção destes belos artefatos está tendo continuidade.

Resistência e Continuidade

Certamente que a maioria destes “artistas” não possuem capacidade mental de perceberem a beleza da arte que está por trás das tradicionais vestimentas e órios dos nossos vaqueiros. Verdadeiras obras de arte produzidas com maestria, por quem abraça um artesanato digno de exportação.

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Barro – Ceará – Foto – Rostand Medeiros – 2015

Não posso negar que em toda a região não são muitos os artesões envolvidos no processo de fabrico do tradicional chapéu de couro. Mas, para a sorte dos que valorizam a autêntica cultura nordestina, temos verdadeiros Mestres produzindo e ensinando a sua arte aos seus filhos e netos pelo Nordeste afora.

Este é o caso dos descendentes de Antônia Maria de Jesus, a conhecida “Totonha Marçal”, que continuam a manter a tradição no trabalho com chapéus de couro no Distrito da Ribeira, no município de Cabaceiras, Paraíba. Inclusive este município do Cariri Paraibano, situado a 180 Km de João Pessoa, capital da Paraíba, é atualmente o maior produtor de chapéus de couro do Brasil.

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Fino trabalho de Mestre Aprígio, de Ouricuri, Pernambuco, fotografado na Loja do Vaqueiro, em Caruaru – PE – Foto – Sérgio Azol – 2016.

Temos em Salgueiro, Pernambuco, mais precisamente na Fazenda Cacimbinhas (a 14 quilômetros do centro da cidade), o exemplo de uma família que há um século perpetua o ofício de transformar pedaços de couro em peças artesanais que conquistaram personalidades do mundo artístico e da política brasileira. Tudo começou em 1909 com Mestre Luiz, depois ou o oficio para seu filho, o conhecido Zé do Mestre. Este chegou a fabricar vestimentas (só gibões) para o amigo Luiz Gonzaga, o ex-presidente Médici, o rei Juan Carlos da Espanha e até para o Papa João Paulo II, em sua última visita ao Brasil. Atualmente a arte está preservada e nas mãos de seu filho Irineu Batista, mais conhecido como Irineu do Mestre.

Já em Ouricuri, também em Pernambuco, temos o Mestre Aprígio e o seu filho Romildo, que trabalham juntos mantendo a tradição. Mestre Aprígio tem orgulho em exibir pelas paredes de sua oficina, que outro denominam acertadamente de ateliê, as fotos que contam a história do artesão que começou a trabalhar aos 24 anos de idade. Já são mais de 50 anos de profissão e criatividade produzindo chapéus de couro, gibões e bolsas personalizados.

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Governador Diz Sept Rosado – RN – Foto – Rostand Medeiros – 2010

Evidentemente que não posso esquecer de Espedito Velozo de Carvalho, o Mestre Espedito Seleiro, de Nova Olinda, no Ceará. Ele tinha oito anos de idade quando começou a ajudar o pai em sua oficina. As histórias que ouvia quando criança eram célebres: foi o pai quem criou as sandálias do cangaceiro Lampião. Com o ar dos anos Mestre Espedito só cresceu na qualidade do seu trabalho, chamando a atenção de estilistas do Sudeste do país e foi ele que assinou as peças que o ator Marcos Palmeira usou no filme “O Homem que Desafiou o Diabo”, de 2007.

Eu acho muito bonito quem, mesmo que se abra para outras culturas, tem orgulho de sua terra e de sua identidade cultural. Para mim, junto com a bondade ao próximo e a humildade, é o tipo de situação que torna um outro ser humano verdadeiramente digno de respeito.

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Renovação, Fazenda Barreiras – Serra Talhada – Pernambuco – Foto – Rostand Medeiros – 2014

Sendo assim, não posso negar que fico muito feliz quando vejo alguém utilizar o bom e velho chapéu de couro nordestino. Quando eu encontro uma pessoa utilizando este tipo de material, penso que a cultura da minha terra ainda resiste em meio a um mar de muita mediocridade.

Eu também tenho os meus chapéus de couro (3) e tenho muito orgulho de utilizá-los, pois tenho a sorte de ser nordestino e amar minha região.

 
FONTES………………………………………………………………………………………………. 

INTERNET

http://sg10.com.br/noticia/colunasespeciais/2014/9/artesao-salgueirense-mantem-tradicao-secular.html

http://tecendotexto.blogspot.com.br/2010/07/chapeu-de-couro-o-capacete-do-vaqueiro.html

http://ribeiradoriotaperoa.blogspot.com.br/2012/02/o-couro-ontem-e-hoje-na-ribeira.html

http://www.lilianpacce.com.br/e-mais/espedito-seleiro/

LIVROS

FREYRE, G. Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX. Recife: Artenova, 1977.

PERICÁS, L. B. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010.

VIANNA, L. C. R. Bezerra da Silva, produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

GERALDO VANDRÉ: O ÍCONE DA MÚSICA DE PROTESTO FAZ 80 ANOS NO COMPLETO OSTRACISMO

Cantor e compositor paraibano cravou o nome da história com canções sociais. Foto: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press
Cantor e compositor paraibano cravou o nome da história com canções sociais. Foto: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press

Recolhido ao isolamento, em São Paulo, cantor e compositor paraibano nem sonha em reaver a projeção conquistada com sucessos da música brasileira nos anos 1960

Autora Luiza Maia – Diário de Pernambuco

Fonte – http://tokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com/app/noticia/viver/2015/09/06/internas_viver,596459/geraldo-vandre-o-icone-da-musica-de-protesto-faz-80-anos-no-completo-ostracismo.shtml

Desde a fatídica entrevista concedida no aeroporto, na companhia de oficiais do regime militar, para anunciar o retorno forjado à pátria-mãe, a vida e a carreira artística de Geraldo Vandré ganharam contornos mitológicos. Naquele dia 18 de agosto de 1973, o paraibano punha um irrevogável ponto final na trajetória popularizada menos de dez anos antes, com o sucesso de Disparada, apesar da promessa de “fazer canções de amor e paz” a partir de então.

Em 12 de setembro, o cantor e compositor cuja obra mais conhecida, Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando), foi tatuada na musicografia nacional como hino durante os anos de chumbo da ditadura militar completará 80 anos em meio ao ostracismo mais notável e longevo de um artista neste país.

Aparições públicas são raras. Na imagem, Vandré em João Pessoa, em 2008. Foto: Arquivo/ON/D.A. Press
Aparições públicas são raras. Na imagem, Vandré em João Pessoa, em 2008. Foto: Arquivo/ON/D.A. Press

As oito décadas são marcadas – especialmente pela liberação das biografias não autorizadas pela Justiça, em junho – com o lançamento de dois livros. Vandré: O homem que disse não, de Jorge Fernando dos Santos, escrito a partir de 2013, após um sonho do autor com o artista, de quem é fã desde a adolescência, foi lançado pela Geração Editorial. Os 100 exemplares de Geraldo Vandré: Uma canção interrompida foram bancados pelo próprio escritor e distribuídos gratuitamente, após recusa das editoras. Com a liberação, sairá em breve por editora já definida.

Funcionário público aposentado, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias – Vandré é a corruptela de Vandregíselo, nome do pai, otorrinolaringologista – mora em um apartamento modesto na Rua Martins Fontes, em São Paulo. “Ele a boa parte do tempo na casa da irmã, em Teresópolis (RJ). Noutras vezes, se hospeda no Hotel da Aeronáutica, no Rio”, conta o biógrafo Jorge Fernando. A poucos é concedida a honra de adentrar o lar. “É tudo espalhado pelo chão, cheio de livro, disco por todo canto”, conta Marcelo Melo, do Quinteto Violado, um dos instrumentistas do quinto e último disco de Vandré (Das terras de Benvirá), gravado na França, em 1971.

Vandré ficou em segundo lugar, mas foi o preferido do público no 3º Festival de Música Popular Brasileira, em 1968. Foto: Ediouro Publicações/Divulgação
Vandré ficou em segundo lugar, mas foi o preferido do público no 3º Festival de Música Popular Brasileira, em 1968. Foto: Ediouro Publicações/Divulgação

São obscuras as teorias sobre a prisão e as sessões de tortura às quais teria sido submetido entre 14 de julho de 1973, quando retornou ao Brasil, e o dia 18 de agosto de 1973, dia no qual foi gravado enquanto descia de avião da Força Aérea Brasileira (FAB) – veementemente negadas por ele. Na entrevista gravada pelo próprio governo e veiculada na tevê, rechaçou qualquer ligação com partidos políticos e se comprometeu a não escrever canções com teor político.

Chico Buarque e Geraldo Vandré - Foto - Revista Sétimo Céu-Reprodução
Chico Buarque e Geraldo Vandré – Foto – Revista Sétimo Céu-Reprodução

As aparições públicas são discretas, à margem dos holofotes, mas a última surpreendeu até iradores mais esperançosos. Em março de 2014, subiu ao palco no primeiro show no Brasil da cantora e ativista norte-americana Joan Baez – barrada pela censura em 1981 -, em São Paulo. “Eu vou convidar para o palco um mito. Ele não gosta disso, prefere ser somente um homem. Ele virá aqui, mas não vai cantar, vai ficar do meu lado”, ela apresentou. Com o boné nas mãos e tão emocionado quanto deslocado, o ermitão foi aplaudido calorosamente. Voltou no dia seguinte e declamou Soberana, dedicado a São Paulo.

"Geraldo Vandré" (1964), "Hora de lutar" (1965), "5 anos de canção" (1966), "Canto geral" (1968) e "Das terras de Benvirá" (1971, na França, e 1973, no Brasil) são os LPS lançados por Vandré
“Geraldo Vandré” (1964), “Hora de lutar” (1965), “5 anos de canção” (1966), “Canto geral” (1968) e “Das terras de Benvirá” (1971, na França, e 1973, no Brasil) são os LPS lançados por Vandré

A sonoridade da receptividade remete ao impacto causado pelas letras impactantes e arranjos de apenas duas notas – como instrumentista, ele nunca foi exatamente um virtuoso – nos festivais de música da década de 1960, dos quais foi um dos ícones. Baluarte da música de protesto a partir de 1968, quando enlouqueceu o Maracanãzinho durante a execução de Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando), Vandré tem enorme contribuição no processo de incorporação das raízes sertanejas à música brasileira.

Vandré estreou nos concursos em 1965, aos 20 anos. Defendeu, no I Festival Nacional de Música Popular Brasileira, Sonho de um carnaval, do amigo Chico Buarque, sem chegar à final. Em 1966, os dois protagonizaram a acirrada disputa entre Disparada, defendida por Jair Rodrigues, e A banda, pelo próprio compositor, com prêmio dividido entre os dois. Em 1968, Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, levou a melhor do júri, mas o público preferia Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando): Cynara e Cybele foram vaiadas no Maracanãzinho por 10 minutos.

Luiz Gonzaga - Fonte - brasileiros.com.br
Luiz Gonzaga – Fonte – brasileiros.com.br

O interesse pelas raízes musicais brasileiras e a origem nordestina o levaram a gravar Asa branca, de Luiz Gonzaga, no LP Hora de lutar – Feira de gado, do Rei do Baião e de Zé Dantas, foi registrada, mas incluída depois em compacto do Trio Marayá. “Asa Branca eu cantei como quem aboia mesmo, e a minha ideia era fazer isso à capela, somente a voz angustiada anunciando a rebelião. Essa foi uma reverência mesmo”, contou, ao site Ritmo Melodia, em 2004. Gonzaga retribuiu. Lançou Pra não dizer que não falei das flores em um compacto, o único dele recolhido pela censura, e Fica mal com Deus, em 1971.

Cantor se exilou na França e no Chile durante a ditadura. Foto: Elias Nassef/O Cruzeiro/EM/D.A Press
Cantor se exilou na França e no Chile durante a ditadura. Foto: Elias Nassef/O Cruzeiro/EM/D.A Press

Muito antes do retorno do exílio e da reclusão, demonstrava traços de uma personalidade forte e difícil. Enfrentava séria dificuldade para seguir uma disciplina de composição ou ensaio e insistia em controlar o processo com modificações e improvisos. Inspirado, modificava letras e melodias constantemente, testando a aptidão técnica – e a paciência – dos colegas.

De volta ao Brasil, após exílio com temporadas na França e no Chile, Vandré morreu. No lugar, renasceu o paraibano Geraldo Pedrosa, filho de José Vandregíselo e dona Martha. Misantropo, o senhor de 80 anos compõe, toca e canta, mas faz questão de ar o aniversário longe dos fãs e da imprensa. A obra, no entanto, dificilmente será esquecida. 

A MORTE DE DOMINGUINHOS

O grande Dominguinhos - Fonte - www.transasom.net
O grande Dominguinhos – Fonte – http://www.transasom.net

Batizado por Gonzaga, Dominguinhos levou adiante legado do Rei do Baião – Após começo com ritmos nordestinos, este grande músico pernambucano transitou entre muitos estilos

Um adolescente de 16 anos, chegado ao Rio de Janeiro havia pouco, de repente ganha a bênção do Rei do Baião ao ser chamado pelo próprio de “herdeiro artístico”. Não poderia ter começado de maneira mais certeira a carreira musical de Dominguinhos, o sanfoneiro nascido José Domingos de Morais, em Garanhuns, Agreste pernambucano, no dia 12 de fevereiro de 1941. O Brasil se despede do músico nesta terça-feira (23).

“Gonzaga estava divulgando para a imprensa o disco ‘Forró no escuro’ [1958] quando me apresentou como seu herdeiro artístico aos repórteres”, lembrou-se Dominguinhos, em entrevista ao G1, durante os festejos do centenário de Gonzaga, em dezembro do ano ado. “Foi uma surpresa muito grande, não esperava mesmo”, assegurou.

Dominguinhos junto ao Rei do Baião - Fonte - www.onordeste.com
Dominguinhos junto ao Rei do Baião – Fonte – http://www.onordeste.com

A relação entre os dois, no entanto, é mais antiga. Dominguinhos ainda era criança e tocava triângulo com os irmãos no grupo Os Três Pinguins. Naquela época, era chamado Neném do Acordeon, apelido de infância. Tinha 8 anos e estava tocando na frente do hotel onde Gonzaga se hospedara, em Garanhuns, quando o Rei do Baião notou seu talento. Ali mesmo, prometeu ao músico mirim uma sanfona de presente, caso este resolvesse ir ao Rio de Janeiro.

O artista consagrado não se esqueceu do garoto quando ele foi procurá-lo, já rapaz, na então capital federal. Acompanhado do pai, o também sanfoneiro Chicão, e de um dos irmãos, Dominguinhos se mudou para o Rio de Janeiro e ou a viver em Nilópolis. Em 1954, a intenção do músico era encontrar Luiz Gonzaga. Quando o encontro aconteceu, a promessa não demorou a ser cumprida: “Em cinco minutos, ele me deu uma sanfona novinha, sem eu pedir nada”, contou. Também não foi necessário tempo demais para Gonzagão ter certeza do que tinha suspeitado em 1949: o anúncio de Dominguinhos como herdeiro aconteceria apenas quatro anos após a chegada do então jovem sanfoneiro ao Rio. Além do instrumento e da bênção, Gonzaga ainda batizou o rapaz, dando-lhe o apelido que viraria nome artístico. Para o velho Lua, a alcunha de “Neném do Acordeon” não ajudaria na carreira como músico.

A primeira gravação profissional de Dominguinhos não poderia ser no disco de outro artista: em 1957, tocou sanfona em um álbum de Luiz Gonzaga, na música “Moça de feira”, de autoria de Armando Nunes e J. Portela. No mesmo ano, o padrinho ajudou de novo na hora de batizar o grupo do qual o afilhado faria parte: com Zito Borborema e Miudinho, Dominguinhos fundou o Trio Nordestino, que ficou conhecido por interpretar diversos ritmos do Nordeste. O grupo continuaria, com outras formações, mas a participação de Dominguinhos foi encerrada em 1960.

Os primeiros discos
Os primeiros discos

O mundo do samba, da gafieira e do bolero atrairia o sanfoneiro temporariamente, mas, em 1965, Dominguinhos foi convidado a gravar, na recém-inaugurada gravadora Cantagalo, um disco que tinha como alvo os migrantes nordestinos que viviam no Rio de Janeiro. O dono da empresa era Pedro Sertanejo, pai de Oswaldinho do Acordeon, um dos primeiros a lidar com o forró no mercado do Sul-Sudeste brasileiro. Foi o bastante para Dominguinhos voltar a tocar xotes e baiões e, em 1967, integrar uma excursão de Luiz Gonzaga à região Nordeste, dividindo-se entre as funções de sanfoneiro e motorista – o notório medo de avião do sanfoneiro não começou aqui, no entanto. Antes de adotar o transporte rodoviário, Dominguinhos voou pelo mundo durante 30 anos, mas há 26 tinha deixado as aeronaves de lado.

Luiz Gonzaga, Guadalupe, Dominguinhos e Genival Lacerda. Foto do casamento de Dominguinhos e Guadalupe - Fonte - http://www.forroemvinil.com/
Luiz Gonzaga, Guadalupe, Dominguinhos e Genival Lacerda. Foto do casamento de Dominguinhos e Guadalupe – Fonte – http://www.forroemvinil.com/

Além de ser o segundo sanfoneiro de Gonzaga, e motorista eventual, Dominguinhos teve a oportunidade de conhecer, nessa excursão, a cantora pernambucana Anastácia. O encontro com a compositora, com quem se envolveu, marcou a carreira do músico. Juntos, são autores de mais de 200 canções. “Tenho sede” e “Eu só quero um xodó” são dois dos grandes sucessos da dupla e esta última música já soma cerca de 250 regravações, em várias línguas.

O empresário Guilherme Araújo, que dirigia a carreira dos novos ídolos baianos como Gal Costa, Caetano Veloso e Gilberto Gil, viu Dominguinhos tocando num show de Luiz Gonzaga, em 1972, e fez o convite para que o sanfoneiro acompanhasse Gal no show “Índia”.  É dessa mesma época a primeira gravação de Gil de “Eu só quero um xodó”, versão que ficou muito famosa no Brasil. Como instrumentista, Dominguinhos ou então a transitar com desenvoltura no mundo da MPB, tocando ao vivo e também participando de gravações em estúdio.

Dominguinhos e Gilberto Gil - Fonte - www.premiodemusica.com.br
Dominguinhos e Gilberto Gil – Fonte – http://www.premiodemusica.com.br

Durante show no dia do centenário de Luiz Gonzaga, em 13 de dezembro deste ano, realizado na terra natal do Rei do Baião, Exu (PE), Gilberto Gil reiterou a importância de seu herdeiro. “Dominguinhos teve a herança do Gonzaga, que ele incorporou, através das canções, dos estilos, o gosto pelo xote, xaxado”. No entanto, para Gil, Dominguinhos soube trilhar um caminho próprio. “Ele foi além, em uma direção que Gonzaga não pôde, não teve tempo. Ele foi na direção do início de Gonzaga, o instrumentista, da época das boates do Mangue, no Rio de Janeiro, quando ele tocava tango, choro, polca, foxtrote, tocava tudo, repertório internacional, tudo na sanfona”.

Em meados dos anos 1980, Dominguinhos viu sua popularidade crescer em nível nacional. “De volta pro meu aconchego”, composta em parceria com Nando Cordel e gravada por Elba Ramalho, e “Isso aqui tá bom demais”, assinada junto com Chico Buarque, e gravada pelos dois, fizeram parte da trilha sonora da novela “Roque Santeiro”, da TV Globo, um sucesso absoluto entre 1985 e 1986. Temas dos personagens Roque Santeiro e Sinhozinho Malta, respectivamente, as canções ganharam milhares de ouvintes, levando o nome de Dominguinhos país adentro.

A composição de trilha sonora voltaria à vida de Dominguinhos em 1997, quando o sanfoneiro assinou as canções do filme “O cangaceiro”, de Anibal Massaini Neto. Dois anos depois, o disco “Você vai ver o que é bom” trouxe o registro de “O riacho do imbuzero”, uma letra até então inédita do compositor pernambucano Zé Dantas, que foi entregue a Dominguinhos pela viúva do parceiro de Luiz Gonzaga.  No mesmo trabalho, os dez anos da morte do Rei do Baião foram lembrados na música “Prece a Luiz”, assinada em parceria com Climério.

CD-Dominguinhos-Iluminado

Em 2004, Dominguinhos cumpriu temporada de shows no Rio de Janeiro, em dupla com Elba Ramalho, com repertório que privilegiou os hits de ambos os artistas. As apresentações se transformaram em CD no ano seguinte.  Em 2007, os papéis se inverteram e foi a vez de Dominguinhos virar padrinho: o sanfoneiro participou da estreia da filha Liv Moraes em disco, fazendo o arranjo e tocando a sanfona em algumas das faixas.  Nos últimos anos, a cantora acompanhou o pai em muitas das suas apresentações, inclusive durante a festa pelo centenário de Gonzaga, em Exu. A gravação, em 2009, do primeiro registro em DVD – “Dominguinhos ao vivo” – aconteceu no maior teatro ao ar livre do mundo, em Fazenda Nova, cidade do Agreste pernambucano, mesmo palco onde é realizada anualmente a Paixão de Cristo de Nova Jerusalém. Os cantores Elba Ramalho, Renato Teixeira, Liv Moraes e Jorge de Altinho e os sanfoneiros Waldonys e Cezzinha participaram do trabalho.

Entre os últimos CDs gravados por Dominguinhos estão os trabalhos com o violonista gaúcho Yamandu Costa. A parceria começou em 2007, com o disco “Yamandu + Dominguinhos”, que tinha uma única preocupação: deixá-los tocarem o que tivessem vontade, sem amarras a repertórios ou estilos. Em cinco dias, foram registrados clássicos como “Feira de Mangaio” (Sivuca e Glória Gadelha), “Wave” (Tom Jobim), “Pedacinho do céu” (Waldir Azevedo) e “Asa branca” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). O encontro dos músicos viraria DVD, em 2009, e permitiria a produção de um novo CD, o “Lado B – Yamandu Costa e Dominguinhos”, lançado em 2010. Composições de Hermínio Bello de Carvalho, Jacob do Bandolim, Lupicínio Rodrigues, Ary Barroso e Lamartine Babo fazem parte do repertório do segundo disco.

Prêmios e honrarias não foram poucos ao longo de praticamente 60 anos de carreira: em 2002, o CD “Chegando de mansinho” deu a Dominguinhos seu primeiro Grammy Latino. “Conterrâneos”, CD solo gravado em 2006, conquistou o Prêmio Tim em 2007, na categoria cantor regional. Em 2008, Dominguinhos foi o homenageado do Prêmio Tim de Música Brasileira e, dois anos depois, venceu o Prêmio Shell de Música. Este ano, o disco “Iluminado” deu ao sanfoneiro pernambucano mais um Grammy Latino, na categoria raízes brasileiras –  uma classificação mais do que digna para uma estrela da música brasileira, defensor e renovador de suas raízes nordestinas.

Fonte – G1 PE

MISSA DO VAQUEIRO DE SERRITA, PERNAMBUCO – OS PRIMEIROS ANOS

Tradição, Religiosidade e Cultura Nordestina

AUTOR – ROSTAND MEDEIROS

A missa do vaqueiro, realizada no município de Serrita, a 536 km do Recife, surgiu em 1971 como uma homenagem ao vaqueiro Raimundo Jacó, sendo considerada atualmente uma das maiores e mais importantes festas do sertão nordestino.

Esse evento atrai anualmente cerca de 50 mil visitantes e é promovido pela Fundação João Câncio, em parceria com a Prefeitura Municipal de Serrita e a Associação de Vaqueiros de Pega de Boi na Caatinga do Alto Sertão de Pernambuco (Apega).

Vamos conhecer um pouco de sua história.

A Morte de Raimundo Jacó

Em 1954 Serrita, no Sertão do Araripe, próximo a cidade de Salgueiro, era bem maior em termos de área territorial e possuía uma população estimada em quase 23.000 habitantes. Mas em um Nordeste ainda prioritariamente agrário, na sede municipal daqueles tempos habitavam pouco menos de 700 pessoas[1].

Vaqueiro do Nordeste, 1941, Percy Lau – Fonte – http://www.desenhandoobrasil.com.br

Em meio à caatinga fechada daquela região, à vegetação cortante e espinhenta que caracteriza este ecossistema, o vaqueiro encourado Raimundo Jacó se destacava na sua lide.

Conhecido pela sua dedicação ao trabalho era muito estimado pela população local. Ficou afamado pela coragem ao capturar, ou “pegar”, o boi no meio do mato. Ele também era conhecido por saber no meio da caatinga fechada, onde descansava e bebia cada um dos animais que ele tomava conta.

De tão destemido, o vaqueiro tinha o apelido de “Raimundo Doido”. Era casado com Odília de Jesus e tinha como filhos Francisca e Vicente. Em Rancharia, atualmente distrito do município de Granito, era irado pelo seu aboio afinado, daqueles vibrantes, cantado “com o dedo no ouvido” [2].

Sobre o vaqueiro Raimundo Jacó, os irmãos cantadores Pedro e João Bandeira de Caldas assim cantaram a sua fama;

“Não respeitava favela

Serra, facheiro, cipó

Sua calça era a perneira

Seu gibão o paletó

Fosse a cavalo ou a pé

Era uma coisa só” [3]

Raimundo Jacó trabalhava como vaqueiro para o fazendeiro José de Sá Barreto, conhecido como Seu “São” e Dona Tereza Teles, a Dona “Tetê”. Consta que ele cuidava do gado do patrão e José Miguel Lopes, seu colega de profissão, era o responsável pelo plantel da patroa.

No dia 8 de julho de 1954, ano seco, os dois vaqueiros saíram pelo sertão em busca de uma rês arisca que havia fugido e era famosa pelas suas astúcias.

Mas no fim do dia apenas Miguel retornou a sede da fazenda.

Contou que não havia encontrado Raimundo Jacó e logo a notícia se espalhou. Em pouco tempo várias pessoas rasgavam a caatinga na busca pelo afamado vaqueiro.

Dois dias após seu desaparecimento, o cadáver de Jacó foi encontrado junto a um pé de imbaúba, em um lugar conhecido como sítio Lajes. A pouca distância do corpo estava amarrado o garrote fugitivo, o seu cavalo e, guardando o cadáver dos urubus, estava o seu fiel cachorro.

No crânio do vaqueiro havia duas marcas de ferimentos e não muito distante do seu corpo, uma pedra com sangue. Todo o cenário apontava para um possível assassinato[4].

Consta que Raimundo Jacó foi sepultado no local onde fora morto. Afirma-se que o seu fiel cachorro acompanhou todo o enterro e que depois ficou no local, até morrer de sede e de fome, guardando o túmulo do seu amo.

O Nascimento de Um Mito

Logo, para a opinião pública e para a justiça local, Miguel Lopes surgiu como o mais provável suspeito da morte de Raimundo Jacó. Afirmavam que Miguel invejava o colega de profissão por suas habilidades como vaqueiro e que entre ambos havia uma rixa muito forte.

Para muitos o assassinato teria acontecido quando Miguel chegou às margens do açude do sítio Lajes e se deparou com Raimundo Jacó fumando tranquilamente um cigarrinho. Junto estava o seu cavalo, seu cachorro e a rês fugitiva, já devidamente amarrada. A cena deixou Miguel bastante alterado. Logo, motivado pela inveja, o ódio aflorou e de posse de uma pedra ele bateu fortemente na cabeça de Jacó.

Foi aberto um processo crime contra Miguel Lopes, que afirmava ser inocente e houve controvérsias e discussões em relação à morte de Jacó.

Clarisbalte Figueiredo Sampaio, o Promotor Público da cidade, desistiu do processo contra Miguel Lopes. No calhamaço de papeis que compunha a peça processual havia declarações de cinco testemunhas, que nem mesmo assistiram o episódio da morte do vaqueiro.

Logo o processo foi arquivado por falta de provas e a morte de Raimundo Jacó até hoje não foi esclarecida.

Ocorre que desde 1949 os Alencar e os Sampaios, as duas mais poderosas famílias da cidade de Exu, mantinham uma luta ferrenha entre seus membros. Estas famílias, como se diz na região oeste do Rio Grande do Norte, “se acabavam na bala”. Miguel era então ligado a um dos clãs e, para muitos na região, foi através desta ligação que ele não foi preso[5].

Vinte e dois anos depois da morte do vaqueiro, encontramos em um jornal pernambucano uma interessante e controversa declaração de Geraldo Teles, filho de Tereza Teles, a Dona “Tetê”, patroa de Raimundo Jacó e Miguel Lopes.

Ele afirmou que a morte de Jacó poderia ter sido acidental, pois este “sofria do coração e bebia muito” e afirmava que Miguel, que ainda estava vivo na época da reportagem, seria “incapaz de fazer mal a alguém”. Geraldo Teles levantou a hipótese que Jacó poderia ter tido um colapso. Após o ataque, consequentemente o vaqueiro teria caído do cavalo, batido a cabeça na pedra e falecido sem assistência médica[6].

Mas se da justiça não teve castigo, de uma parte da população da região o acusado da morte de Jacó só recebeu ódio e desprezo[7].

Como ocorre em muitos locais do Nordeste onde pessoas assassinadas em mortes trágicas eram enterradas, logo a cruz que marcava o túmulo de Raimundo Jacó ou a receber várias pessoas, principalmente vaqueiros. Estes, além de deixarem fitas e velas, rezavam e pediam ao falecido que intercedesse por alguma causa. 

Mas foi um primo legítimo do falecido, que empunhava uma sanfona e fazia sucesso no Rio de Janeiro, que imortalizaria para sempre a figura de Raimundo Jacó em uma inesquecível canção.

A Morte do Vaqueiro na Voz de Luiz Gonzaga

Luiz Gonzaga do Nascimento nasceu na fazenda Caiçara, em Exu, no dia 13 de dezembro de 1912, dia consagrado no catolicismo a Santa Luzia. Era filho de Januário José dos Santos e de Ana Batista de Jesus, mais conhecida como Santana. Além de agricultor seu pai era um afamado tocador de acordeon e igualmente conhecido por concertar este tipo de instrumento musical.

Luiz Gonzaga no início da carreira – Fonte – http://blogln.ning.com

Foi com Januário que Luiz Gonzaga aprendeu a tocar ainda criança e ou a se apresentar acompanhando seu pai.

Em meio a muito talento, grande capacidade musical, inúmeras peripécias, aventuras e sorte, em 1963 vamos encontrar Luiz Gonzaga como um consagrado músico e cantor, com seu sucesso alcançando todo o Brasil e tendo se tornado um verdadeiro ícone da música nordestina.

Apesar de 1963 não ser um dos períodos mais felizes na carreira de Luiz Gonzaga, devido à concorrência com as músicas modernas e os rock vindos do exterior, naquele ano o músico pernambucano lançou pela empresa fonográfica RCA, o Long Play, ou “LP”, intitulado “Pisa no Pilão – Festa do Milho”.

Este disco de vinil tinha um acervo musical mais apropriada para ser tocado em festas juninas, pois possuía músicas intituladas “Festa do Milho”, “Festa de São João” e “Pisa no Pilão”.

Mas a quarta faixa do lado “A” do LP trazia uma toada diferente. Nomeada “A Morte do Vaqueiro”, é uma música marcante e de longe a mais importante deste disco de Luiz Gonzaga.

Capa do LP onde foi primeiramente divulgado a música “A morte do vaqueiro” – Fonte – discotecapublica.blogspot.com.br

Nas páginas 229 e 230 do livro “A vida do viajante: A saga de Luiz Gonzaga”, da sa Dominique Dreyfrus, a música foi composta em uma única tarde na casa de Nelson Barbalho, amigo de Gonzaga[8].

O famoso cantador do Sertão do Araripe queria homenagear seu primo, o vaqueiro Raimundo Jacó. Ele narrou a Nelson como foi o episódio da morte do parente e em pouco tempo a “A Morte do Vaqueiro” ficou pronta.

A música se tornou um marcante sucesso da carreira de Luiz Gonzaga, imortalizando a morte de Jacó e se tornando um dos motores que impulsionaria um dos mais importantes eventos do sertão nordestino – A Missa do Vaqueiro de Serrita.

Mas toda missa precisa de um padre!

Um Padre Antes de Tudo Autêntico

Mesmo hoje em dia, em meio a toda uma plêiade de padres cantores, que estão sempre na televisão e surgem na velocidade da internet, certamente chamaria a atenção de todos se fosse divulgado que um sacerdote nascido no sertão de Pernambuco valorizava tanto as tradições de sua terra ao ponto de utilizasse normalmente o gibão de couro, particie de constantes vaquejadas e fosse conhecido como “Padre Vaqueiro”.

Padre João Câncio

Imagine isso então no final da década de 1960?

João Câncio dos Santos nasceu em Petrolina, Pernambuco, em 21 de outubro de 1936, era filho de Francisco Avelino dos Santos e de Laudemira Carvalho Sales e seguiu sua vocação sacerdotal logo cedo. Estudou no seminário do Crato, depois foi para Salvador e João Pessoa, onde se formou padre em 1965.

Sua primeira paróquia foi em Serrita, onde iniciava seu trabalho pastoral com a consciência de que a religião e a fé estão presentes em todas as pessoas. Segundo material produzido pela Fundação Padre João Câncio, o pároco não impôs a comunidade a sua oratória de seminário, mas buscou aproximar-se da comunidade, vivenciando e praticando seus hábitos, com o propósito de entendê-los melhor[9].

No livro “A vida do viajante: A saga de Luiz Gonzaga”, nas páginas 246 e 247, Dominique Dreyfrus informa que em uma vaquejada realizada em Exu, no verão de 1970, ano de forte seca, o padre conheceu Luiz Gonzaga e daí nasceu uma grande amizade.

O padre Câncio adorava a música “A Morte do Vaqueiro”, que escutava no toca fitas de sua Ford Rural, enquanto seguia para alguma obrigação sacerdotal no meio do sertão.

A autora sa informou que em meio à seca de 1970, durante as celebrações que ocorriam nas frentes de emergência, que proporcionava aos trabalhadores rurais alguma renda (mínima) em meio à calamidade climática, alguém comentou que “existia missa para todo tipo de gente, mas não havia para vaqueiros”. Logo foi sugerido que uma missa dessas poderia ocorrer no local onde Raimundo Jacó foi assassinado.

1971-Primeiro ano da Missa do Vaqueiro de Serrita, Pernambuco

Como o padre Câncio era um vaqueiro, gostava da música e conhecia Luiz Gonzaga, estava pavimentado o caminho para a Missa do Vaqueiro de Serrita.

Entretanto, ao lermos o trabalho intitulado “Padres do interior II – Os padres da Paroquia de Nossa Senhora do Bom Concelho de Granito”, produzido pelo padre Francisco José P. Cavalcante e publicado na internet em 2010, afirma que a ideia da famosa Missa do Vaqueiro de Serrita tem relação direta com uma celebração pela vida do vaqueiro e havia sido criada primeiramente na Diocese de Petrolina, no ano de 1941.

Segundo o padre Cavalcante foi no dia 2 de agosto de 1941, com uma concentração na fazenda Lagoa Seca, que se realizou pela primeira vez o “Dia do Vaqueiro”, evento idealizado pelo padre Américo Soares.

Registros informam que os vaqueiros estavam neste evento com a indumentária de couro apropriada e entraram nesta cidade do interior de Pernambuco dispostos em filas de quatro em quatro. Depois se dirigiram para a igreja matriz de Nossa Senhora Rainha dos Anjos, onde houve palestra preparando os vaqueiros para o sacramento da penitência. No dia seguinte, pela manhã, os vaqueiros participaram de uma missa na Matriz, presidida por Dom Idílio José Soares. Após duas missas realizadas no mesmo dia, os vaqueiros se concentraram diante do Palácio Diocesano e em seguida partiram em eata pela cidade.

No ano seguinte a festa se repetiu com cerca de 150 vaqueiros. A programação foi semelhante à apresentada acima, mas com a diferença que o pregador foi famoso e carismático frei Damião de Bozzano.

Celebrações de vaqueiros pelo interior do Nordeste não eram incomuns nas décadas de 1940 e 1950. Aqui vemos um encontro de vaqueiros nas ruas de Icó, Ceará – Fonte – http://www.icoenoticia.com

No livro de tombo da Paróquia de Nossa Senhora Rainha dos Anjos, de Petrolina, há uma anotação informando que em 1946 continuava a ser celebrada a Festa do Vaqueiro. Em 21 de julho de 1951 o evento ou a ser presidido pelo padre José de Castro, vigário cooperador de Petrolina. Apesar das dificuldades o padre José conseguiu reunir uns 200 vaqueiros naquele ano.

A ideia de celebrar a vida do Vaqueiro foi seguida em outras paróquias da Diocese, como foi o caso na cidade de Araripina, Pernambuco, onde os vaqueiros entravam na cidade tocando os seus búzios nos eventos celebrados pelo padre Gonçalo Pereira Lima[10].

1971 – A Primeira Missa

Os jornais pesquisados na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco não são muito pródigos em relatos sobre a primeira Missa do Vaqueiro realizada em Serrita.

1971 – Luiz Gonzaga na primeira celebração

Ao folhear as velhas páginas, posso entender que o evento estava a ser uma comemoração religiosa que ocorria em uma pequena cidade sertaneja, localizada a mais de 550 quilômetros da capital pernambucana.

Segundo o padre Câncio a primeira missa contou com o apoio decisivo de Luiz Gonzaga, que patrocinou grande parte do evento. Vários vaqueiros (o número não é especificado) e cerca de “50 outras pessoas” atenderam ao chamamento do padre e do cantador e se fizeram presentes no sítio Lajes.

Os cavaleiros vieram a celebração montados em seus alazões, trajados a caráter e assistiram a missa montados. A comunhão foi celebrada não com hóstias tradicionais, mas com queijo de coalho e rapadura. A missa foi celebrada sobre um tablado de madeira e junto ao padre estavam os familiares de Raimundo Jacó.

Os poucos relatos que me forneceram sobre este primeiro evento mostram uma foto com o consagrado Luiz Gonzaga, de sanfona em punho, cantando o sermão da missa. A pesquisadora sa Dominique Dreyfus informa em seu livro, página 248, que Gonzaga participou ativamente dos primeiros anos da Missa do vaqueiro de Serrita e apoiou financeiramente o evento até 1974.[11]

Os primeiros eventos foram caracterizados pela simplicidade

Não foi possível precisar a data, mas acredito ter sido no terceiro domingo de julho de 1971, 18 de julho, pois nos anos seguintes seria nesta data que normalmente o evento aria a ocorrer.[12]

Mas percebemos através dos antigos periódicos que foi tudo muito simples, sem sofisticação, sem recursos eletrônicos, mas com muita fé e um positivo sentimento participativo de todos que ali estavam.[13]

Mas algo aconteceu!

A simplicidade do altar nos primeiros eventos

Não sabemos como se processou, mas em meio à missa simples e tradicional de 1971, com todos os vaqueiros encourados presentes, foram realizadas as tomadas cinematográficas para um documentário.

Intitulado “A Missa do Vaqueiro”, era um curta-metragem rodado em 16 m.m., colorido, com 25 minutos de duração e tinha a direção do baiano José Carlos Capinam e do carioca José Carlos Avellar.[14]

Repercussão no Sul do País

Em janeiro de 1972 vamos encontrar o padre João Câncio e os poetas e cantadores Pedro e João Bandeira reunidos na casa de Luiz Gonzaga, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Estavam na Cidade Maravilhosa para assistir a uma exibição do trabalho de Capinam e Avellar, mas concederam entrevistas para os periódicos locais O Jornal e Jornal do Brasil, onde o padre Câncio conseguiu chamar a atenção dos jornalistas cariocas tanto para o seu trabalho sacerdotal, como para a incipiente e diferenciada celebração religiosa na zona rural de Serrita[15].

Os jornalistas se impressionaram com a simplicidade e a inteligência do padre Câncio. Afirmaram que ele poderia tanto comentar sobre problemas do sertão, como sobre a “Crise de Bagladesh”[16].

Nos anos posteriores a Missa do Vaqueiro de Serrita se consolidou e foi notícia em inúmeros jornais do sul do país. Com a divulgação na mídia o evento cresceu em movimento e fluxo de pessoas, tornando-se uma dos mais importantes eventos do calendário turístico de Pernambuco.

Ao violão o poeta Bandeira, tendo ao seu lado o padre Câncio com seu chapéu de couro. Foto da edição de 12 de janeiro de 1972, do periódico carioca “O Jornal”

Se nos anos seguintes a celebração só cresceu, igualmente ocorreram criticas relativas a descaracterização da pequena e simples festa, da participação negativa das forças políticas regionais no evento.

Anos depois o padre Câncio decidiu deixar a batina, casou com Helena Câncio e veio a falecer no dia 10 de fevereiro de 1989. Não sei até quando o grande Luiz Gonzaga continuou a frequentar o evento. Mas indubitavelmente a Missa do Vaqueiro, mantendo ou não suas características iniciais, deve a estes dois homens, que tanto amavam o sertão, o seu sucesso.

 

NOTAS


[1] Sobre dados estatísticos de Serrita na década de 1950, ver “Enciclopédia dos Municípios Brasileiros”, 18º Volume, IBGE, 1958, págs. 279 a 281.

[2] Este costume de muitos vaqueiros aboiadores colocarem o dedo no ouvido ao começar a cantar provem da necessidade da transformação da voz do rapsodo, de “voz do peito” em “voz da cabeça”, e à necessidade de manter o equilíbrio em face da vertigem que a cantiga provoca. Ver http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=892

[3] Ver “O Jornal”, Rio de Janeiro, edição de quarta feira, 19 de janeiro de 1972, págs. 4 e 5. Pedro e João Bandeira de Caldas, salvo engano, são netos do afamado violeiro Manuel Galdino Bandeira e são naturais do Sítio Riacho da Bela Vista, município de São José de Piranhas, sertão da Paraíba. Mas a vida artística destes respeitados violeiros se desenvolveu na cidade do Crato, Ceará.

[4] Ver o “Diário de Pernambuco”, edição de domingo, 20 de julho de 1975, págs. 12 e 13 e a edição de terça feira, 27 de agosto de 1996, págs. 10 e 11, existentes na hemeroteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco. O “Jornal do Commércio”, de Recife, na sua edição de quarta feira, 16 de julho de 1976, pág. 10, aponta que o corpo de Jacó foi encontrado um dia após o seu assassinato.

[5] A cidade de Exu se encontra a cerca de 70 quilômetros de Serrita. O conflito entre as famílias Alencar e Sampaio marcou profundamente a região do Sertão do Araripe, principalmente na década de 1970. Esta briga entre famílias tradicionais só acabou quando o próprio Governo Federal chegou a intervir na cidade, em parceria com outras instituições de Pernambuco, inclusive a igreja católica.

[6] “Diário de Pernambuco”, edição de terça feira, 20 de julho de 1976, página 9. Ver a reportagem sobre a Missa do Vaqueiro.

[7] Na edição de domingo, 27 de agosto de 1996, do “Diário de Pernambuco”, de Recife, trás a informação que José Miguel Lopes, ainda vivo a época da reportagem, jamais participou da celebração famosa, vivendo  praticamente recluso no distrito de Rancharia.

[8] Segundo site http://www.onordeste.com, Nelson Barbalho nasceu no dia 2 de junho de 1918, na cidade de Caruaru, Pernambuco. Não chegou a concluir o curso secundário no Colégio Americano Batista do Recife, regressando à terra natal para trabalhar. Aposentou-se como fiscal do IAPAS, função que lhe permitiu conhecer quase todas as cidades do interior pernambucano, recolhendo, assim, farto material para seus livros. Jornalista, historiador, pesquisador, lexicógrafo, compositor musical (parceiro em diversas músicas com Luís Gonzaga – o Rei do Baião), Nelson Barbalho sempre foi um escritor, autor de quase uma centena de livros, entre os quais destacamos “Cronologia Pernambucana” (com vinte volumes publicados dos quase cinquenta que compõem a obra), perto de vinte livros sobre Caruaru (“Meu povinho de Caruaru”, “Major Sinval”, “Caruaru do meu tempo”, etc.) e outros trabalhos folclóricos como “Dicionário da Cachaça”, “Dicionário do Açúcar”, sem contar vários ensaios publicados em jornais e revistas especializadas, na qualidade de estudioso da história e costumes do povo do Nordeste. Faleceu na cidade do Recife, no dia 22 de outubro de 1993.

[9] Ver http://www.onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Padre+Jo%C3%A3o+C%C3%A2ncio

[10] Certas espécies de búzios marinhos possuem a capacidade de produzir sons fortes, que serviam para comunicação a distância e foram utilizados para esta prática em várias partes do mundo, por vários povos, através dos séculos. No sertão nordestino, de largas paragens, a utilização de búzios era uma forma de comunicação prática entre vaqueiros que tangiam gado no meio da caatinga. Vem daí o termo “buzar”, para tocar o instrumento.

[11] A foto comentada está na edição do periódico carioca “O Jornal”, de quarta feira, 19 de janeiro de 1972.

[12] Ver as páginas do periódico carioca “Jornal do Brasil”, edição de quinta feira, 1 de agosto de 1974, em reportagem realizada pela jornalista Leticia Lins, que seguiu para Serrita para realizar a cobertura da missa que acontecia pela terceira vez, onde temos informes do primeiro evento. Ainda sobre a primeira missa, ver o “Jornal do Commércio”, de Recife, edição de terça feira , 18 de julho de 1978.

[13] Em entrevista concedida pelo padre João Câncio e Luiz Gonzaga, ao periódico carioca “O Jornal”, de 19 de janeiro de 1972, afirma que a missa teve a participação de “cinco mil vaqueiros”, número que considero exagerado.

[14] No site http://cinemateca.gov.br temos detalhes deste documentário, mas com o título “A Morte do Vaqueiro”. José Carlos Capinam é poeta e compositor. Natural de Esplanada, Bahia, é considerado um dos grandes letristas de sua geração.  Poeta desde a adolescência mudou-se para Salvador aos 19 anos, onde iniciou o curso de direito, na Universidade Federal da Bahia, onde conheceu os estudantes Gilberto Gil e Caetano Veloso, respectivamente dos cursos de istração e Filosofia. Capinam participou ativamente do movimento Tropicalista no fim da década de 1960. Uma de suas músicas mais famosas é uma homenagem ao guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara e intitulada “Soy loco por ti, América”, com parceria de Gilberto Gil. Também é compositor da música “Papel Marche”, junto com João Bosco, Em 2000 compôs a ópera Rei Brasil 500 Anos, ao lado de Fernando Cerqueira e Paulo Dourado, uma crítica as comemorações dos 500 anos de Descobrimento do Brasil. Além de letrista, poeta e escritor, Capinam é publicitário, jornalista e médico!  Ver http://www.salvadorcomh.com.br. Já o carioca  José Carlos Avellar é Jornalista de formação, trabalhou por mais de vinte anos como crítico de cinema do Jornal do Brasil. Atualmente é integrante do conselho editorial da revista Cinemais e da publicação virtual “El ojo que piensa”, da Universidade de Guadalajara (México). É consultor dos festivais internacionais de cinema de Berlim (desde 1980), de San Sebastián (desde 1993) e de Montreal (desde 1995). Desde 2006 é também curador (com Sérgio Sanz) do Festival de Gramado e já publicou vários livros de ensaios sobre cinema. Ver http://bancocultural.com.br/cinema/?p=71.

[15] Descobri que o documentário “Missa do Vaqueiro” foi premiado na Jornada Nordestina de Curta-metragem, sendo exibido no MAM – Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, no início de outubro de 1973. Ver o “Diário de Notícias”, Rio de Janeiro, edição de domingo, pág. 16, 30 de setembro de 1973.

[16] Bangladesh, antigo Paquistão Oriental, é um país asiático, superpopuloso, que fica entre a Índia e o Golfo de Bengala. Independente do Paquistão em 1971, enfrentou uma sangrenta guerra pela sua liberdade que durou nove meses, encerranda no dia 16 de dezembro de 1971. Bangladesh contou com o apoio da Índia, que se envolveu no conflito contra o Paquistão. Este conflito, devido ao alto número de mortos civis, as terríveis imagens de pessoas famintas em meio aos combates, chamou a atenção dos países ocidentais.

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VIVA LUIZ GONZAGA – OS PRIMEIROS ANOS

FONTE – http://luzdefifo.blogspot.com

Luiz Gonzaga nasceu em Exu, extremo oeste do estado de Pernambuco, em uma fazenda chamada Caiçara, a três léguas da cidade. Era filho de Januário e Ana Batista, conhecida por Santana. Consta que ele recebeu o seu nome por ter nascido no dia dedico a homenagear Santa Luzia.

Aos sete anos Luiz já ajudava a família pegando na enxada. Mas preferia ficar olhando o pai consertar sanfonas e observar como se tocava esse instrumento. Januário era sanfoneiro respeitado em toda a região e Luiz estudava os movimentos dos dedos do pai no teclado, louco para experimentar o fole.

Dona Santana e Januário, pais de Luiz Gonzaga - Fonte - http://luzdefifo.blogspot.com

Um dia, com os pais ausentes, Luiz pegou uma sanfona velha e começou a tocar. Com poucas tentativas já conseguia tirar melodias do instrumento. Foi quando a mãe chegou e lhe deu um safanão. Não queria um filho sanfoneiro que se perderia no sertão. Mas Januário gostava das tendências musicais do filho. Deixava o filho ir tocando as sanfonas que vinham de longe para serem consertadas. Só se assustou quando um dono de um terreiro muito concorrido pediu licença para Luiz tocar num baile. O menino irrequieto e cheio de iniciativa, já andara tocando por lá, sem que Januário soubesse, fazendo grande sucesso.

– Fale com Santana, ela é que resolve – disse Januário, ao mesmo tempo orgulhoso e temeroso pelo filho.

Santana a princípio negou, mas depois resolveu deixar na mão dos homens o assunto. Conversa vai, conversa vem, Januário consentiu:

– E se der sono nele por lá?

– Ora, a gente arma a rede e manda ele drumi – respondeu o dono do terreiro, com o sanfoneiro já garantido para a festa.

Naquela noite Luiz tocou com todo entusiasmo, agradando em cheio. Mas realmente não resistiu. Os olhos pesaram, a sanfona tornou-se um fardo e o menino foi para a rede. Tão menino ainda que fez xixi enquanto dormia, fugindo para casa com vergonha.

Já consagrada, Luiz toca com seu pai - Fonte - http://luzdefifo.blogspot.com

A partir de então ou a acompanhar Januário pelos forrós daquele sertão. Santana a princípio discordava, mas calou-se depois de ver os dois mil réis que o menino ganhava revezando-se com o pai na sanfona.

Fazenda da família Alencar - Fonte - http://blogs.diariodepernambuco.com.br/gonzagao/?p=65

Ajudando o pai na roça e na sanfona, acompanhando a mãe às feiras, fazendo pequenos serviços para os fazendeiros da região. Luiz, embora fosse filho de trabalhadores e não fosse branco, era muito bem tratado pelos membros da poderosa família Aires de Alencar. As filhas do fazendeiro Manuel Aires de Alencar, ensinaram-lhe as poucas letras que aprendeu: o nome, “ler uma carta e escrever outra”. Ensinaram-lhe também a falar correto, comer direito, boas maneiras. O Coronel Aires era considerado um homem bondoso e respeitado até pelos adversários.

Foi o Senhor Aires quem realizou o grande sonho de Gonzaga: ter uma sanfona própria. O instrumento, uma harmônica amarela marca “Veado”, custava 120$000, Luiz tinha 60$000 economizados. O fazendeiro pagou o resto. Mais tarde foi reembolsado por Luiz com o fruto de seu trabalho de sanfoneiro.

O primeiro dinheiro ganho com sua sanfona foi no casamento de Seu Dezinho, em Ipueira: ganhou 20$000. Foi nessa festa que sua fama de bom sanfoneiro começou a fixar-se. Luiz sentiu que seu destino era aquele quando, no meio do baile, Mestre Duda, o mais respeitado sanfoneiro da região, soltou o elogio: “Esse menino é um monstro pra tocar”.

Sanfoneiro era o que Luiz Gonzaga sempre quis ser na vida - Fonte - http://nacal.blogspot.com

– Foi o maior elogio que já recebi na minha vida – disse Gonzaga.

Quando descansava da sanfona, Luiz dançava e namorava. Uma vez, pensou em casar, comprou até alianças, mas Santana acabou com o noivado do adolescente. A coisa foi pior quando entrou para um grupo de escoteiros, em Exu, e começou um namoro de olhares com Nazinha, filha de Raimundo Delgado, uma figura importante da cidade.

A primeira conversa entre os dois confirmou o interesse mútuo. Pensando novamente em casamento, Luiz foi falar com os pais da moça. Raimundo não estava; a mãe foi simpática, mas deu a entender que o pai não aprovaria o namoro. Dias depois, um amigo contava a reação de Raimundo “- Um diabo que não trabalha, não tem roça, não tem nada, só puxando aquele fole, como é que quer se casar? É isso, mora nas terras dos Aires e pensa que é Alencar. Os Aires podendo tirar o couro daquele negro. Dão liberdade e agora quer moça branca pra se casar”.

Luiz não hesitou; comprou uma peixeira e foi tirar satisfações do homem, disposto a matá-lo. Raimundo conseguiu desconversar e contou tudo a Santana. O resultado foi uma surra no valentão, a maior que recebeu na vida. Santana açoitou-o até perder as forças e cair sentado num banco. Luiz, assim que se recompôs, fugiu para o mato.

Em Crato, Luiz mentiu que ia a Fortaleza comprar um fole novo. E vendeu o velho para Raimundo Lula, tomando o trem que o levava pra uma resolução: entrar para o Exército. Queria deixar para sempre Exu, a vergonha do quase crime e de uma surra aos dezessete anos. Como tantos homens do interior, ia para a capital, buscar no Exército uma vida melhor.

O soldado Luiz Gonzaga posa com sanfona na banda de música do quartel do Exército da cidade de Juiz de Fora, meados da década de 1930, cidade mineira onde ele ou a maior parte da vida militar - Fonte - http://www.museuluizgonzaga.com.br

Tornou-se o recruta 122 numa época violenta: a Revolução de 1930 logo estourava no Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba. Para este último Estado seguiu o batalhão de Luiz, aderindo aos revoltosos na cidade de Sousa. Os meses seguintes foram de missões ao Pará, interior do Ceará e Teresina, agora em defesa da revolução vitoriosa. Na capital do Piauí, o soldado 122, que estava prestes a dar baixa, conseguiu o engajamento e foi para o Sul: Rio, Belo Horizonte, Campo Grande, Juiz de Fora.

Tinha agora um apelido: “Bico de Aço”, pois se tornara corneteiro muito competente. Com a sanfona, tivera um reencontro muito triste. Foi tocar na orquestra do quartel, o maestro falou:

– Gonzaga, dá um Mi Bemol aí.

– Mi Bemol? Que diabo é isso?

E assim o bom sanfoneiro de Exu ficou de fora da orquestra: não sabia nem a escala musical. Mas decidiu aprender. Mandou fazer uma sanfona com Seu Carlos Alemão e começou a estudar com Domingos Ambrósio, O Dominguinhos, famoso sanfoneiro de Minas. Aprendia o Mi Bemol e as músicas que se tocavam no centro do país: polcas, valsas, tangos.

Transferido para Ouro Fino, sul de Minas, lá tocou pela primeira vez num clube, “assassinando” o repertório de Augusto Calheiros e Antenógenes Silva. Os bons tempos de caserna estavam no fim. Uma nova lei proibia que Luiz ficasse mais de dez anos engajado. Depois de uma ida a São Paulo, em busca de um fole melhor, retornou à vida paisana. Era 1939, Luiz Gonzaga não sabia direito o que fazer.

“Cum um bocado de roupa
Minha sanfona e dinheiro
Eu vim pra terra da luz
Que é o Rio de Janeiro;
Tive meu primeiro emprego
Meu amigo não se zangue;
Foi num canto de café
Ali pertinho do Mangue.”

Enquanto esperava um navio para voltar a Pernambuco, Luiz ficou no Batalhão de Guardas do Rio de Janeiro. Um soldado o aconselhou:

Ganhando a vida com a sanfona - Fonte - http://luzdefifo.blogspot.com

– Mas, rapaz! Com um instrumento desses aí e na moita. Isso é dinheiro vivo, moço! Sei onde você com isso aí pode levar seus cinquentões folgados!

Era na zona do Mangue, Rua Júlio do Carmo, esquina de Carmo Neto. “Um fuzuê dos diabos”, como narrou anos depois Luiz.

Ao barulho do movimento na rua juntava-se o rumor dos bares, da boêmia malandra e constante, soldados e marinheiros do mundo inteiro. Loiros, chinos, brasileiros, alemães, russos, polacos, o diabo. Desconfiado, Luiz começou a tocar timidamente. Mas logo conseguiu um companheiro, o guitarrista Xavier Pinheiro, com quem ou a tocar nos bares do mangue, nas docas do porto, nas ruas, onde houvesse alguém disposto a ouvir e jogar alguns tostões no pires. Acabou sendo convidado para tocar em festinhas de subúrbio e nos cabarés da Lapa, após a meia-noite, quando encerrava seu “expediente” nas ruas da cidade. A sanfona garantia-lhe a sobrevivência e abria-lhe novos caminhos.

Na gafieira Elite, na Praça da República, Luiz teria a primeira oportunidade de conhecer uma figura do rádio, o pianista cego Amirton Valim, para quem tocou seus forrós e chamegos do Nordeste. Era uma exceção, pois seu repertório continuava sendo o exigido pelo público da época: tangos, fados, valsas, foxtrotes, etc.

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Foi tocando esses ritmos estrangeiros que Luiz fez as primeiras tentativas no rádio, arriscando-se nos programas de calouros de Silvino Neto e Ari Barroso. Fracasso total: nunca ava de uma medíocre nota 3.

Um dia um grupo de estudantes cearenses chamou-lhe a atenção para o erro que cometia: por que não apresentava as músicas que crescera ouvindo e tocando, as músicas gostosas dos sanfoneiros do sertão como seu pai Januário e Mestre Duda?

– Bôas noite, seu Barroso.
– Rapaz, procure um emprego.
– Seu Ari, me dá licença pra eu tocar um chamego?
– Chamego?… O que é isso no rol da coisa mundana?
– O chamego, Seu Barroso, é música pernambucana.
– Como é o nome desse negócio?
– “Vira e Mexe”
– Pois arrivira e mexe esse danado… A gente vê cada uma…

Ary Barroso - Fonte http://www.clickgratis.com.br

Luiz virou e mexeu com todo mundo. Ari Barroso deu-lhe nota 5 e o prêmio de 15$000. O público pediu bis, entusiasmado com a descoberta. Luiz também fazia uma descoberta “-Havia ambiente para as músicas do nosso sertão, havia um filão a explorar, até então virgem quase não avam de contrafações grosseiras aqueles programas sertanejos com emboladas e rancheiras”.

Não deixou o pires do Mangue, mas começou a aparecer em programas de rádio, como o “Zé do Norte”, e a conhecer os compositores que irava: Augusto Calheiros, Antenógenes Silva. Este último, ao saber que Gonzaga tocava no Mangue, profetizou “-Pois vá se aguentando lá, que seu dia chegará”.

E o dia começou a chegar quando Luiz, tocando no Mangue, foi procurado por Januário França, pois este precisava de um sanfoneiro para acompanhar Genésio Arruda numa gravação. Luiz hesitou:

– Será que eu acerto?

– É sopa, rapaz.

Luiz saiu-se tão bem no acompanhamento que o diretor artístico e chefe do setor de vendas da empresa fonográfica multinacional norte-americana RCA Victor, Ernesto Augusto Matos, pediu-lhe para tocar alguma outra coisa em solo. Luiz tocou duas valsas e uma rancheira.

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Matos gostou e acabou fazendo uma concessão “-Agora meta lá esse negocinho do Norte que você disse que tem”. O “negocinho” eram o xamego “Vira e mexe” e o xote “No Meu Pé de Serra”. E o empresário o mandou vir gravar no outro dia, 5 de março 1941.

Seu talento chama a atenção ainda mais a atenção de Ernesto Matos. No dia 14 de março Luiz Gonzaga grava, assinando pela primeira vez como artista principal e exclusivo da RCA Victor, quatro músicas que são lançadas em dois discos de 78 rotações.

Logo é publicada a primeira reportagem sobre Luiz Gonzaga na revista carioca Vitrine, com o título “Luiz Gonzaga, o virtuoso do acordeom”.  Ainda em 1941, Gonzaga grava mais dois disco de 78 rotações.

O sucesso havia chegado e Gonzaga já era chamado como “o maior sanfoneiro do Nordeste, e até do Brasil”.

Nos anos seguintes grava cerca de 30 discos de 78 rotações, muitos choros, valsas e mazurcas, todos em solo e instrumentais, pois a RCA Victor insiste em não lhe permitir cantar em seus discos.

Impresso do disco RCA Victor, onde Luiz Gonzaga tocou junto ao seu pai em 1954 - Fonte - http://budegadamusica.blogspot.com

Inicia apresentações na Rádio Clube do Brasil, para onde foi levado por Renato Mource, substituindo Antenógenes Silva no programa “Alma do Sertão”. Ali conheceu César de Alencar, o locutor do programa. Foi quando apareceu Dino, violonista de sete cordas que tinha a mania de apelidar todo mundo. Ao ver a cara redonda e rosada de Luiz Gonzaga, Dino imediatamente o chamou de “Lua”.

Em 1943 é trazido pelas mãos do radialista Almirante – que também foi responsável pela descoberta de Gonzaga – o sanfoneiro catarinense Pedro Raimundo, que realiza sua estreia na Rádio Nacional com roupas típicas de gaúcho. Inspirado nele, Gonzagão a a se apresentar vestido de nordestino.

Nessa época, irritado com a interpretação dada por Manezinho Araújo para a sua “Dezessete e Setecentos”, parceria com Miguel Lima, o sanfoneiro a a cantá-la. Chovem cartas pedindo que ele continue cantando.

Em 1944 Gonzagão é contratado pela Rádio Nacional, com um salário de Cr$ 1.600,00. Nesta empresa o então radialista Paulo Gracindo divulga seu apelido “Lua”.

No ano seguinte consegue alcançar um grande sonho; grava seu primeiro disco tocando e cantando. É escolhida a mazurca “Dança Mariquinha”, uma parceria com Miguel Lima. Luiz Gonzaga chama atenção pelo timbre de voz e a sua desenvoltura no cantar. Nesse mesmo ano, e ainda em parceria com Lima, grava outros dois discos interpretando “Penerô Xerém” e “Cortando Pano”.

Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga - Fonte - http://luzdefifo.blogspot.com

Querendo dar um rumo mais nordestino para suas composições, Gonzaga procura o maestro e compositor Lauro Maia, para que este coloque letras em suas melodias. Mas Maia recusa, porém apresenta-lhe o cunhado, o advogado cearense Humberto Cavalcanti Teixeira, com quem Luiz Gonzaga viria a compor vários clássicos. No dia 22 de setembro, nasce de uma relação com a cantora Odaléia Guedes dos Santos o seu filho Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior.

No mês de outubro de 1946, o conjunto “Quatro Ases e um Coringa”, da Odeon, acompanhado pela sanfona de Luiz Gonzaga, grava a a música “Baião”, segunda parceria de Gonzaga e Humberto Teixeira, sucesso em todo país.

Depois de receber a visita de sua mãe Santana, Gonzaga volta à sua terra, Exu, após 16 anos de ausência. No retorno para a então Capital Federal, a pelo Recife, participando de vários programas de rádio e muitas festas. Nesse momento conhece Sivuca, Nelson Ferreira, Capiba e Zé Dantas, um jovem estudante de medicina, natural da cidade de Carnaíba, no sertão do Pajeú. Zé Dantas era um grande músico por vocação, um apaixonado pela cultura nordestina e nasce uma grande amizade com o sanfoneiro de Exu.

Em família: Gonzagão e os irmãos dançando e os pais tocando - Fonte - http://luzdefifo.blogspot.com

Luiz Gonzaga grava em março de 1947 um disco de 78 rotações que trás uma música que se tornaria um clássico da música brasileira: a toada “Asa Branca”. Era a sua terceira parceria com Humberto Teixeira, inspirado no repertório de tradição oral nordestina.

A partir desse ano, Luiz Gonzaga adota à sua apresentação artística o chapéu de couro semelhante ao utilizado por Lampião, a quem tinha verdadeira iração. Embora a Rádio Nacional ainda não o permitisse apresentar-se trajado “como cangaceiro” nos seus programas, ele gradativamente vai assumindo o uso do chapéu de couro, ao mesmo tempo em que também plasmava a identidade nordestina no cenário nacional.

Num domingo de julho Gonzaga conhece na Rádio Nacional a contadora Helena das Neves Cavalcanti, e a contrata para ser sua secretária. Rapidamente o namoro acontece e Gonzaga pensa em casar. Fato que ocorre em 16 de junho 1948 no Rio de Janeiro. O novo casal a a morar, juntamente com a mãe de Helena, dona Marieta, no bairro de Cachambi.

No ano seguinte, aproveitando uma folga entre as gravações, Luiz Gonzaga leva a esposa e sogra para conhecerem o Araripe, e sua terra Exu. Porém, devido as desavenças e mortes que acontecia entre as famílias Sampaio e Alencar, interrompem a viagem quando estavam no Crato, Ceará. A grande violência que marcava a disputa entre estes clãs rivais em Exu, ameaçava sua família, ligada aos Alencar. Preocupado, Gonzaga aluga uma casa no Crato, para onde leva seus pais e irmãos, enquanto preparava a mudança de sua família para o Rio de Janeiro, o que ocorreu ainda em 1949.

Luiz Gonzaga e Zé Dantas - Fonte - http://luzdefifo.blogspot.com

Em janeiro de 1950, para alegria de Gonzaga, o médico formando Zé Dantas chega ao Rio de Janeiro. Nesse ano o sanfoneiro pernambucano lançou, gravando ou cedendo para outros intérpretes, mais de vinte músicas inéditas, a maioria parcerias com Humberto Teixeira e Zé Dantas. Muitas destas se tornariam clássicos da MPB. Em junho lança a música “A dança da moda”, parceria com Zé Dantas que retratava a febre nacional pelo baião.

E a trajetória de sucesso continuou.