1923 – UM CONCORRIDO CONCERTO NO TEATRO ALBERTO MARANHÃO

Quem se Apresentou e o Que foi Tocado na Festa de Despedida de Alcides Cicco?

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Muitos podem imaginar que há 101 anos a capital potiguar era uma cidade cujo ritmo da vida era muito lento, calmo e sem maiores novidades. Isso tem muito de verdade e pode estar relacionado com o fato dessa velha urbe possuir nessa época cerca de 32.000 habitantes. Número menor que as 35.725 pessoas que em 2022 viviam no bairro de Lagoa Nova.

Mas se essa situação de calmaria e tranquilidade era normal, nas atividades artísticas do belo Theatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão, a situação era bem diferente.

Inaugurado em 24 de março de 1904, após sete anos de construção, o Carlos Gomes se tornou o principal centro de apresentações culturais de Natal, com variados artistas subindo no seu palco e deleitando o público local. O interessante livro Teatro Carlos Gomes – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão, lista um grande número de recitais, conferências, concertos, apresentações diversas e até eventos políticos que ali se ocorreram durante a sua História.

O antigo Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Fundação José Augusto.

Para impulsionar o movimento musical em Natal, em 31 de março de 1908 o governador Alberto Maranhão assinou, o Decreto nº 176, criando a Eschola de Musica, que funcionaria anexa ao teatro. Quem ficou à frente desta instituição foi o maestro Luigi Maria Smido, que além dessa função acumulou a direção da banda de música do Batalhão de Segurança (Polícia Militar). Segundo o professor Claudio Galvão, o verdadeiro nome de Smido era Luigi Maria Schmidt und Insbruck e a maioria das fontes aponta que ele era italiano.

Mas em 6 de janeiro de 1914, sete dias após ser empossado pela segunda vez governador do Rio Grande do Norte, o recifense Joaquim Ferreira Chaves extinguiu a escola de música e alegou que fazia isso por falta de dinheiro. Somente dois anos depois foi criada uma nova escola no teatro e sob o comando do italiano Thomaz Babini.

Orquestra do Teatro Calos Gomes nas primeiras dércadas do século XX – Fonte – Livro – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão.

Essas iniciativas educacionais na área musical deixaram muitos frutos, pois uma interessante plêiade de artistas ou a existir na cidade e estes tinham no Theatro Carlos Gomes o local ideal para desenvolver a sua arte. No livro do Professor Claudio Galvão existe muitas informações sobre essa evolução e o desenvolvimento musical em Natal nessa época.

Ele nos conta que com o ar dos anos o teatro ou por altos e baixos, com momentos em que sua orquestra ficou reduzida a um sexteto e quando o local precisou de uma reforma, a luta para conseguir a verba destinada para esse trabalho foi duríssima. Mas no ano de 1922, diante as comemorações do centenário da Independência em Natal, o governador Antônio de Souza caprichou nos festejos e apoiou no que foi necessário para que o Theatro Carlos Gomes pudesse receber apresentações dignas da casa e do público natalense.

Praça Augusto Severo e Estação da Great Western of Brazil Railway em 1906, na Ribeira, na mesma área onde se encontra o Teatro Alberto Maranhão – Fonte – Fundação José Augusto.

Em meio a todos esses problemas e processos, cada vez mais crescia o número de músicos em Natal e a muitos deles mostravam extrema capacidade musical. Um desses músicos foi Alcides Cicco.

O Escriturário Que Era Barítono

Alcides Cicco nasceu em 1894 na cidade de São José de Mipibu, sendo filho de Vincenzo De Cicco, um italiano da comuna de Sapri, província de Salerno, região da Campânia, sudoeste da Itália. Vincenzo imigrou para o Brasil e casou em São José de Mipibu com Ana Albuquerque e Melo, com quem teve doze filhos. Depois ele se mudou com toda a família para Natal e se tornou comerciante.  

Alcides Cicco – Fonte – – Livro – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão.

Sobre os primeiros anos de Alcides eu não tenho muitas informações, mas sei que ele não seguiu seus irmãos Januário na medicina e nem Celso como padre. A música falou mais alto!

Segundo o Professor Claudio Galvão, o jovem Alcides fez parte da Eschola de Musica do Carlos Gomes em 1908 e desde cedo apresentou inclinação para o canto lírico, mas também tocava violino. Existem nos antigos jornais natalenses da década de 1920, várias citações da participação de Alcides em um grande número de eventos e sempre fazendo bom uso da sua privilegiada voz.

Uma das muitas referências da participação de Alcides em eventos musicais em Natal.

Foi quando se espalhou a notícia em Natal que o virtuoso Alcides estava de partida para centros maiores e mais desenvolvidos, em busca de aprimoramentos para a sua capacidade artística. E seria com tudo pago pelo erário público e com direito a Lei proferida pelos altos dirigentes do Estado. Enfim, não dava mesmo para um 4º Escriturário do Tesouro do Rio Grande do Norte bancar do próprio bolso dois anos de estudos musicais lá fora.

Diante da notícia, a classe musical local decidiu realizar um evento no Theatro Carlos Gomes. Ficou acertado que aquele acontecimento se chamaria pomposamente “Festival de Artes e Letras”, seria dedicado ao governador Antônio de Souza e teria a participação de Luigi Maria Smido, Thomaz Babini, o jovem músico Waldemar de Almeida e outros mais. Apesar do nome oficial, todo mundo em Natal sabia que a festa era o “bota-fora” de Alcides Cicco para o Rio de Janeiro…

Finalmente, às oito e meia da noite de sábado, 27 de janeiro de 1923, a festa começou!

A Festa de Alcides

O Theatro Carlos Gomes lotou, ficou até apertado, estava “à cunha” como expressou um jornalista na época. O governador e sua família estiveram presentes e mais um grande número de políticos que hoje são nomes de ruas e avenidas em Natal. Mas o que valeu mesmo foram as apresentações no palco.

Waldemar de Almeida na juventude – Fonte – Livro – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura, do Professor Cláudio Augusto Pinto Galvão.

Nos jornais antigos temos em detalhes a sequência das apresentações, com as obras que foram executadas e seus respectivos autores naquela. O nosso BLOG TOK DE HISTÓRIA, fazendo uso das atuais tecnologias existentes, traz para seus leitores a sequência exata de quase todas as obras que ali foram executadas. Essa é uma interessante oportunidade de compreender que tipo de música os natalenses apreciavam no seu principal teatro, em uma época onde o rádio ainda dava os primeiros os (e demoraria quase vinte anos para chegar a Natal), a televisão estava engatinhando e a internet não era nem ficção cientifica.

O evento iniciou com a orquestra do teatro sendo conduzida pelo maestro Smido e tocando uma ouverture, ou abertura, intitulada Poète et Paysan, do austríaco Franz von Suppé (1819 – 1895). Essa peça estreou em Viena no ano de 1846, mas após a morte do autor foi transformada em uma opereta em três atos, sendo a sua abertura a mais difundida e tocada.

Após a execução da abertura de Suppé, houve uma “Ligeira sessão literária”. Mesmo sem maiores detalhamentos de como se desenrolou esse momento, sabemos que primeiramente subiu ao palco o Doutor Sebastião Fernandes de Oliveira, então juiz de direito de Ceará-Mirim e diretor do “Centro Polymathico”, que trouxe perante o público natalense os “belletristas” Luís da Câmara Cascudo, José Gabat (sic), Ezequiel Wanderley, Othoniel Menezes, F. Palma, Virgílio Trindade e Jayme Wanderley.

Na sequência houve a 2ª Parte, que começou com Thomaz Babini assumindo a orquestra e Alcides Cicco como barítono. Foi executada com maestria a terceira função da ópera Zazà, do italiano Rugero Leoncavallo (1857 – 1919). A estreia dessa ópera aconteceu no Teatro Lírico de Milão, Itália, em 10 de novembro de 1900 e essa terceira função se chamava Cascart, um cantor de sala de concertos.

A segunda obra da 2ª parte da apresentação foi a Polonais em dó sustenido menor, Opus 26, 1, composta pelo polonês Frédéric Chopin (1810 – 1849). Quem tocou essa obrafoi o jovem pianista Waldemar de Almeida, então com 19 anos e natural da cidade de Macau, Rio Grande do Norte.

Veio então a 3ª Parte, a mais longa, que começou com a peça Air de Ballet, do francês Jules Massenet (1842 – 1912), novamente com a participação da orquestra do teatro, com o maestro Babini na regência.

A segunda obra dessa parte do espetáculo foi Fantaisie-Impromptu, Op. 66, de Frédéric Chopin. Essa foi peça composta em 1834 e publicada postumamente em 1855, sendo uma das composições mais frequentemente executadas e populares de Chopin. Naquela noite de 1923 no nosso teatro, foi o jovem Waldemar de Almeida que a executou ao piano.

Bem, nessa altura das apresentações não dava para deixar de fora algum compositor brasileiro e a escolha foi pelo cearense Alberto Nepomuceno (1864 – 1920). Este foi um compositor, pianista, organista, regente e membro da Academia Brasileira de Música, sendo considerado o “pai” do nacionalismo na música erudita brasileira. Coube a Waldemar de Almeida tocar ao piano o Noctuno, Op. 33.

A última peça a ser tocada foi executada pela orquestra do teatro, sob a regência de Luigi Maria Smido e se chamava Romance em fá. Infelizmente o texto não comentou quem era o autor dessa obra. Talvez o próprio Smido. Nesse caso não encontrei nenhum material em áudio e vídeo que mostrasse a apresentação dessa peça.

Então o evento se encerrou e Alcides Cicco partiu para o Rio de Janeiro. Em poucos anos voltou para a sua terra e seu teatro.

Um Boêmio Bondoso e Tímido

Luís da Câmara Cascudo assim se expressou em uma Acta Diurna Sobre Alcides Cicco, publicada no jornal natalense A República, edição de 20 de junho de 1959. O Professor Claudio Galvão a transcreveu em parte no seu interessante livro Teatro Carlos Gomes – Alberto Maranhão – 100 Anos de Arte e Cultura.

Cascudo o descreveu como modesto, tímido, raras vezes se apresentou em público. Quanto ao seu objetivo artístico, comentou: Preparou-se a vida inteira para ser o que não conseguiu realizar: um artista dramático, um tenor de óperas, de óperas especialmente italianas, Verdi, Puccini, Leoncavallo, Mascagni. Sobre seu trabalho como do Theatro Carlos Gomes, evocava: […] prestou inolvidáveis serviços, batendo-se pela manutenção, trabalhando diretamente na sua conservação. Quantas vezes o vi, de pincel na mão, pintando paredes e gradis, com tinta paga do seu bolso.  

Três anos antes de Alcides Cicco falecer, o escritor Gumercindo Saraiva escreveu uma interessante crônica sobre ele no jornal O Poti, edição de 13 de julho de 1956, que achei mais interessante transcrever na íntegra.

POR QUE ALCIDES NÃO SE CASOU?

Alcides Cicco, antigo diretor do Teatro Carlos Gomes, é figura excêntrica de boêmio da cidade. Vez por outra o encontro num dos bares da Ribeira tomando cerveja e cantando trechos de óperas, com toda força de seus pulmões.

Sempre achei que Alcides deve ser personagem de uma opereta, ou de um desgarrado na vida em um romance de Balzac. Seu tipo físico, bondade, boêmia, sua vida sem ambições e sem pessimismos, tudo nele é estranho e romanesco.

Creio que quase todo mundo sabe por que Alcides não seguiu a sua carreira de cantor lírico. Estudava no Rio e conseguiu uma bolsa de estudos na Itália. Veio a Natal se despedir dos seus parentes. Aqui, uns amigos convidaram-no a dar um eio em Papari (atual cidade de Nísia Floresta) e comer uns camarões. Pois bem. Ele gostou tanto dos camarões que desistiu para sempre de sua viagem à Europa…

E não se diga que Alcides não tem habilidades que o destacam do comum dos homens. Uma das melhores macarronadas que já comi nesta cidade foi feita por Alcides Cicco em sua própria casa, faz alguns anos. Ele preparou os quitutes com verdadeiro gosto artístico.

Numa roda de amigos João Meira Lima divulgou o motivo por que ainda hoje Alcides Cicco persiste solteirão. Ouviu a história de sua própria boca, num momento de recordações e confidências…

Alcides era jovem e ava uma noite na antiga rua da Palha (atual rua Vigário Bartolomeu, no Centro). Casualmente, viu numa janela uns olhos cintilantes, quase de fogo. Achou-os maravilhosos e sentiu que estava loucamente apaixonado. Todas as noites, infalivelmente, Alcides desfilava pela rua de Palha para contemplar os mais belos olhos de sua vida. Tímido e romântico – foi sempre assim – não tinha coragem de abordar a criatura dos lindos olhos. Afinal, uma noite, tomou umas cervejas, encheu-se de coragem e resolveu enfrentar a dama dos seus sonhos. De longe viu os olhos brilhantes e aproximou-se, quase hipnotizado pelo fogo daquele olhar… Quando chegou em frente á janela – foi a maior decepção de sua vida – ouviu um miado longo e notou que a dona dos olhos de fogo era apenas uma velha gata de estimação… Desde esse dia não quis mais saber de casamento…

Alcides Cicco faleceu por volta das seis da manhã do dia 19 de junho de 1959, de complicações do diabetes. Expirou na antiga residência da família Cicco, no número 190 da Avenida Duque de Caxias, na Ribeira, e que por um verdadeiro milagre ainda se conserva preservada.

Alcides nunca casou, mas criou uma união permanente com a música e o velho teatro de Natal.

O BANCO DA BOTICA – MEMÓRIAS DAS ANTIGAS FARMÁCIAS DO SERTÃO

Raimundo Nonato – Figuras e Tradições do Nordeste – Editora Irmãos Pongetti, Rio de Janeiro, 1958, Páginas 9 a 18.

O banco de botica sertaneja era um lugar de importância, gozando de prestígio e de renome, dono por assim dizer, de meio mundo de influência e respeito da gente da localidade.

Era, também, ponto perigoso para a reputação da vida alheia, pois ali tanto se falava de política ou de inverno, como se difamava o vizinho ou a mulher do próximo. Alguns desses bancos chegaram a deixar uma história, tal a importância da sua roda de conversadores, de ordinários, de gente boa, onde se contavam autoridades como o juiz de direito, o presidente da Intendência, o vigário, o promotor e o velho chefe político, que andava pelas ruas de ceroula e de alpercata de rabicho.

Por isso ou por aquilo, o certo é que ninguém queria ser inimigo do boticário. O seu conceito vinha da língua dos faladores que por lá se encontravam, era ainda assim elevado, pois sempre prestava favores e servia indistintamente nas ocasiões de apertura.

O boticário, nesses velhos tempos, era uma pessoa extraordinária na vida dos lugarejos do sertão. Coisa semelhante a feiticeiro, homem mágico, milagroso, com quem poucos se atreviam a tirar prosa. Só ele conhecia o segredo dos remédios, a arte daquelas drogas maravilhosas que estancavam sangue, fazia desaparecer as dores, levantavam as pessoas, curavam os doentes e salvavam vidas preciosas, às vezes à beira da sepultura.

Em vista disso, tinha lá suas inúmeras amizades, sendo largo o compadresco, aparecendo sempre como padrinho de vela e testemunha de casamento quando o Padre Natanael vinha celebrar missa, de quinze em quinze dias.

Também não era necessário largo conhecimento para atender às necessidades dos membros da comunidade rústica. Naqueles dias as indicações eram as mais simples. Não havia maiores possibilidades, o dilema era fatal: ou os remédios curavam, ou levavam o paciente, irremediavelmente, para a cidade dos pés juntos.

E como eram esses remédios?

Os nomes eram grandes, impressionantes, de prosódia retumbante e forte.

— Semicúpios, sinapismo e purgantes. Estes últimos, espécie de panaceia universal, eram recomendados para todos os achaques. Variavam só os ingredientes e as dosagens. De todos o óleo de rícino era o mais generalizado. Depois o sal amargo, que se vendia na loja de Cristalino Costa, em Martins, a 18 vinténs o quilo. A aguardente alemã, magnésia, Limonada de Leford, água vienense, Rubinat e purgante dos quatro humores. Jalapa e azeite de caroço de carrapato eram aplicados segundo a gravidade da moléstia, servindo, indistintamente, ora para aliviar empanzinamentos, ora para dores em geral, inchações ocasionadas por coice de burro, para dor nas cruzes e ventre crescido. Na verdade, só os casos mais graves reclamavam a aguardente alemã, ou a jalapa, considerados sempre purgantes muito fortes. Eram comuns nos distúrbios originados pela congestão.

Em Caicó, na Praça do Mercado, a Farmácia Pereira vendia uma bebida refrescante que utilizava na sua composição cocaína.

Nem sempre era encontrado o remédio no momento de maior vexame. A aguardente alemã, por exemplo, sempre desaparecia da botica. Mas, o homem dos remédios não se perturbava. Quando aparecia um caso de urgência, preparava o ingrediente com cachaça velha da terra e o resultado era sempre o mesmo. Até os doutores formados recomendavam esse emprego…

Em Mossoró, o bodegueiro João Caetano possuía várias garrafas do precioso líquido que arinho não bebe. Eram nove garrafinhas brancas, bastante antigas, colocadas no alto das prateleiras. Aquela cana do Cumbe da Bahia que não vinha ao balcão para venda, contava bem vinte anos de conservação, pois, conforme assegurava o dono da bodega, era da mesma idade de uma filha sua e de uma gata mourisca de estimação, que dormia dentro do caixão de bolachas ou ressonava por cima da saca de farinha de mandioca. Pois lá um dia adoeceu a esposa do Teofinho, um vendedor de massas dos Paredões de Mossoró, e não foi encontrado o remédio receitado. O Dr. Castro[1] não criou embaraços, mandou aplicar a cachaça do Caetano, e a mulher ficou novinha em folha.

De modo rigoroso, a pessoa purgada tinha regime especial. Não podia ouvir barulho, nem tiro ou gritaria. Ficava agasalhada em quarto escuro, bem fechado, com as frestas das portas e janelas tomadas com pano para o vento não entrar. Permanecia nesse estado de três a nove dias. Ninguém podia falar alto, nem menino gritava por perto. Para manter esse silêncio, trabalhavam o puxa-vante de orelha e ferozes beliscões de arrancar o couro. O purgado ficava ainda de cabeça amarrada com pano branco, calçado de meias e com os ouvidos entupidos de algodão. Essa precaução ocorria quando se tratava de mulher de parto. A alimentação era cuidada e pouca. Só caldo de pinto, às vezes de mungunzá ou de arroz do barco e chá. Mais para o fim, uns crespinhos de goma e que não fosse fresca. De vício só o café, torrado, sem doce e que não estivesse requentado.

Remédio que serviam para quase tudo!

Quebrar o resguardo de uma pessoa era coisa muito séria!

Mas, em última situação, o boticário era a chave da esperança. Dele dependia tudo. Sua palavra e seus remédios decidiam a sorte de muitas vidas.

Nesse regime, além dos purgativos, as pílulas gozavam de muita aceitação. As pomadas eram sempre recomendadas na cura das perebas e dos arranhões malignos. A de São Lázaro era a mais conhecida. Também não havia de que duvidar. Ferida braba, por pior que fosse, não aguentava sete curativos, desde que o doente não fizesse extravagâncias e não abusasse de comida carregada, como peba gordo, guiné, carne de porco ou avoante.

Emulsão de Scott, até hoje nas farmácias.

A velha botica tinha um rol dos seus remédios afamados: Elixir de Mururé, Pílulas de Mato, Emulsão de Scott, Pílulas de Bristol, Antigal do Dr. Guerra, Pomada Reclus, Elixir de Nogueira, Pomada de São Lázaro, Viperina do Dr. Castro contra as mordeduras das cobras venenosas. Pílulas de Pião e Jalapa, Joatonka Rosado, Gotas Salvadoras, Água Inglesa e Xarope de Angico.

As drogas da botica eram, porém, insignificantes em vista do grande número de indicações e meizinhas caseiras. As folhas, as raízes, sementes e cascas desempenhavam larga influência na atividade da medicina sertaneja. A maior parte dos remédios era mesmo de origem vegetal. Daí, o largo ciclo da sua propaganda, dominando grande parte e composição da farmacopeia grosseira, de emergência, linha marginal da arte e da ciência de curar por meios e processos racionais.

O Antigal do Dr. Machado.

De comum havia um chá para cada doença, uma indicação, um recurso de cuja eficácia não cabia levantar suspeita. Sua variedade era imensa e rica como a própria flora de onde vinham. O fedegoso, por exemplo, deixou fama, assim como a jurubeba branca. O cozimento de raiz de velame, a batata de purga, o cardo santo para dor na garganta e a infusão de malva e agrião para mal do peito. O chá de cravo de defunto era para doença dos olhos, a cabacinha e a cabeça de negro eram como depurativos. Cebola branca serenada para o catarro. Chá de alho para gripe e mel de juá para doença do peito. Cumaru e sucupira para reumatismo. Mororó para enfraquecimento e Babosa (nove folhas lavadas em nove águas) feito mel com açúcar branco servia para escarro de sangue. Capeba usado para doenças do fígado e a jandiroba para reumatismo. Mão-fechada para a dor de mulher. Catucá era calmante. Jatobá para os rins e vias respiratórias e a milona para o fígado. Alcaçuz era outro remédio para a tosse. Mastruço (ou Mastruz) com leite usavam para bronquite. Leite de pião era para as mordidas de cobra. Língua de vaca para o baço e melancia da praia para a dor de lado. Jucá para espalhar o sangue e maxixe do Pará (a flor) para puxado. Casca de jaboticaba utilizavam para dor de barriga e velame branco para afinar o sangue. E mais raspa de juá, folha de abacate, capim santo, folha de laranjeira eram os remédios de casa para todas as indicações.

Também a folha de mostarda quente servia para dor de cabeça. Emplasto de jerimum com pirão de farinha para estourar panariço. Casca de romã para rouquidão. Chá de quebra pedra para rins e gado e o chá de folha de mamão para indigestão.

Pílulas de Bristol em uma propaganda de 1954.

Havia coisa mais violenta: chá de caroço de pinha usavam para a mordida de cascavel e pimenta malagueta com café amargo baixava a febre.

Fora da farmácia havia ainda um remédio temerário, conhecido pelo nome de “garrafadas”, preparadas por especialistas e que, segundo se dizia, arrancavam o mal pela raiz.

Já a nomenclatura das doenças era extensa e os nomes de alguns chegavam a dar nó na garganta. Muitos nem podiam ser pronunciados na presença das crianças, como o garrotilho, que era chamado “mal de menino”. De uma relação rica e vasta não seria demais que se citasse:

Propaganda da Farmácia Pires, em Jardim do Seridó.

— Quebranto, olhado, espinhela caída, dor de veado, mal das juntas, puxado, nó na tripa, ar encasado, cupim, boqueira, fininha, impinge, inteiriça, cobreiro, sete couros, doença do peito, gafeira, chega e vira, dor na boca do estombo (estômago), tontura, brotoeja, pereba, pilora, calor de figo, farnezim, dor de mulher, curuba, fogo selvagem, bexiga lixa, caminheira, campainha caída, mau olhado, dor de ventosidade, ventre-caído, bucho quebrado, cabeça de prego, pé triado, mazela, braço desmentido, galco, quebradura, fuá, gota serena, sapiranga, tersol, andaço, morrinha no corpo, macacoa, sarampão, esquinência, doença interiora, câimbra de sangue, esquentamento e erisipela.

Com todas essas doenças, ainda se podia morrer de:

— Bexiga, garrotilho, estopor, moléstia do ar, moléstia do vento, frouxo, cancro, antraz, gálico, urinas doce, tosse, força de sangue, paridura, vício, inchação, catarrão, maligna, espasmo, cobreiro, sezões, gota, inchaço, puxado, moléstia do peito, ferida na garganta, chagas, maleita, ferida na boca, lombriga, defluxo, pontada, fluxo de sangue, frouxo de sangue, doença gálica, pontada no ouvido, sezões malignas, tumor nas costas, humor recolhido, moléstia do vento, estrepada, caroço na barriga, velhice, inflamação no estômago, cobra, feridas recolhidas, tuberto, andosso, gota coral, caroço no rosto, sarampo, umas cacetadas, uma inflamação nos bofes, quebradura descida, tiro, mordidela de cascavel, uma inchação nos peitos, frialdade, hemorroidas, tísica, parto, um tumor de repente, uma queda, afogado, feridas gomosas, moléstia na barriga, retrocesso de sangue, facada, uma ferida, dor nos ouvidos, hidrópico, feridas espasmódicas, inchação na cabeça, inflamação no fígado e estopor.

A farmácia de Jerônimo Rosa, em Mossoró.

Muitos dos velhos donos de botica do sertão se tornaram afamados pela segurança com que indicavam seus xaropes.

De quantos exerceram os trabalhos de farmacêuticos por esses tempos de meu Deus, Palmério Filho, da cidade de Assu, é, sem dúvida, o profissional mais interessante, não só pela sua atividade nesse ramo, como pelo número de anos que tem atravessado no o da frascaria, dos sais, das latas de pomadas. e vidros de tintura.[2]

Uma curiosidade do boticário da terra de Ulisses Caldas é que ele não gosta de receitar. De lá era também Amorim, o Cajurema, boticário de projeção pelos lugares marginais do Baixo Assu. Em São Miguel, Chico França sempre viveu metido no seu quarto vendendo drogas e meizinhas poderosas. Em Martins, Areamiro de Almeida e Neco Cocada negociaram com homeopatias e laxantes por muitos anos, depois de João Teixeira de Sousa. Em outra época, Álvaro Andrade pontificava em Pau dos Ferros. Patu vivia nos domínios “clínicos” de Ascendino de Almeida, boticário que sarjava, fazia parto e encanava braço quebrado. Nas Pendências quem receitava todo o mundo era João Lalau e no Itaú, do Apodi, Fausto Pinheiro fazia até defunto andar…

Havia também grandes homeopatas e alopatas do maior conceito. De alguns afirmavam que eram “quase médicos”. Zenon Martins, na cidade deste nome, Bento Antônio de Oliveira, em Mossoró, Quinca Antão, na Várzea do Assú, e o Cel. Zé Leite do Castelo, nos pés da Serra, sempre foram tidos e havidos como homens de “muita ciência”.

Em Mossoró, depois da antiga botica de Manuel Artur de Azevedo, que apareceu lá pelas eras de 1877, a farmácia do Dr. Monteiro gozou de justo renome, especialmente, no que regista sua crônica sobre o caso de um ilustre comerciante da cidade que sempre chegava para a prosa, impondo a contar a história de um gordo peru que comera. Cansado daquilo, lá um dia o médico dono do negócio, em vez do digestivo habitual impingiu ao amigo boa dose de tártaro, bastante para o mesmo revelar que o peru não ava de grossa feijoada…

Já em época mais recente, três estabelecimentos se desenvolveram nesse ramo de negócio. A Farmácia Rosado, de Jerônimo Rosado, continuando com os seus sucessores. Esse local tornou-se saliente porque nos seus bancos, o Partido Popular fez tenda de reunião. A Farmácia Central, de Edgar Medeiros, era o maior foco de linguarudos deste mundo. Já a farmácia Almeida, de Vicente Almeida, onde faziam paradas em períodos diversos Carlile Magalhães (gerente da agência do Banco do Brasil), Aprígio Câmara, Dário de Andrade, Alfredo Simonetti (diretores da Escola Normal), Henrique Lima, Major Rufino Caldas, (representante da Fábrica de Algodãozinho de Aracati) e Vicente Praxedes da Silveira Martins, além dos tipos populares que motivavam encrencas, como Artur Capote, o deputado das “massas oprimidas”. Vitorino da Caieira, sertanejo de quatro costados, e Anélio, o profeta de barba grande e cabeleira desgrenhada, sobraçando um respeitável cajado de miolo de aroeira[3].

Quem relembra, hoje (1958), os dias desse ado tem necessariamente de reconhecer a influência de desbravamento que o banco da botica desempenhou em tantos pontos do interior do Brasil. Seu papel de concentração social e humana concorreu, poderosamente, para melhorar a formação dos pequenos núcleos de populações rurais, onde a ação do boticário, à semelhança do vigário, do comboieiro, do professor de meninos e do coronel chefe político, se fez sentir de modo realmente construtivo e duradouro..

A seu tempo, a botica era uma casa cujo nome despertava confiança. A palavra e o vidro de remédio faziam escapar os males da vida, mais pela confiança que inspiravam, do que propriamente pelos seus efeitos e poder curativo.

Em outro aspecto, observado através do campo sociológico, é das mais expressivas a função desempenhada na comunidade pelo grupo do banco da botica[4].

Ali, entre conversas e animadas partidas de gamão, muita coisa séria foi ventilada, sobressaindo ideias boas, de ordem, pública ou interesse privado, notícias da política, do inverno e do comércio, assuntos sempre discutidos, para os quais até soluções foram apontadas, embora sem aplicação, porque a maior parte dos problemas dos rincões sertanejos ainda continua virgem, como era nos dias pré-cabralianos.

Aqueles encontros, se, às vezes, puderam fermentar dissenções, e rixas, também serviram para dirimir questões, amainar ódios, e, até evitar crimes. Os frequentadores é que eram quase sempre os mesmos. Lá um dia, surgia a novidade: uma cara nova. Era um estranho que chegava à terra e ali comparecia, penetrando na conversa, ando assim a se filiar ao ajuntamento, não raro, ficando permanentemente no lugar, integrado no pensamento da sua gente, no seu trabalho e no destino das suas preocupações coletivas.

Tempo virá, talvez, em que estudo mais demorado e profundo chegue a evidenciar a influência aglutinadora dessas reuniões, tão simples nas suas origens, mas tão poderosas como fator de o, que tiveram início nas rodas de conversas do banco da botica, centro de movimentação, de pensamentos e atividades, consequentemente, elemento social e civilizador[5].

NOTAS


[1] — Dr. Francisco Pinheiro de Almeida Castro. Médico, natural da Província do Ceará, radicado em Mossoró, onde foi chefe político de incontestável prestígio. Nessa posição, sempre se conduziu com elevado espírito de harmonia, mantendo entendimentos com o chefe antagonista, o Cel. Bento Praxedes Fernandes Pimenta. Na cidade, muitos relembram a esse respeito a desinteligência surgida por ocasião da visita do Capitão José da Penha, onde o local indicado pelos amigos do Dr. Castro para um discurso do vibrante militar foi o mercado público, inaugurado há pouco tempo, quando era presidência da Intendência Municipal Antônio Filgueira. Contra isso se levantaram os governistas, achando que o Penha não podia falar num próprio público para atacar o Governador do Estado, que nesse tempo era Alberto Maranhão. Pois mesmo “de baixo”, na condição difícil de oposicionista, Almeida Castro articulou-se com seu adversário Bento Praxedes, e chamando o presidente da Intendência, Francisco Izódio de Sousa, permitiram que o Jota da Penha falasse do mercado, que para isso fora embandeirado, respeitando-se os locais que pertenciam aos elementos governistas. Dr. Castro faleceu em Mossoró a 22-6-1922, quando exercia o mandato de Deputado Federal. Em sua homenagem a cidade, além de um busto, deu o seu nome a uma das suas ruas, por sinal, aquela em que residiu por muitos anos.

[2] — Jornalista Palmério Filho, homem de letras, conservador e pertencente a tradicional família açuense. Durante muito tempo fez publicar, sob sua direção, um jornal de bom formato chamado “A CIDADE”, infelizmente, hoje (1958), desaparecido. A seu respeito além do mais é típico o apego de Palmério Filho ao seu rincão, pois numa longa existência nunca viu outro lugar, mesmo dos mais perto do Assú. Seu mundo geográfico perde-se ali mesmo, em redor dos carnaubais verdejantes que pontilham às margens do velho rio, cuja várzea tem hoje uma história graças aos ensaios de M. Rodrigues de Melo. Palmério Filho é ainda afamado pelas suas qualidades de tribuno.

[3] — Essa gente que frequentava o banco da farmácia Almeida, deixou memória em Mossoró. De uma feita, o dono da casa para envenenar a situação, contou ao coronel Vicente Martins que o Major Romão Filgueiras ia sair, num andor, durante as festas do 30 de setembro. E isso, acrescentava o farmacêutico, maldosamente, era só por adulação, pois o Desembargador João Dionísio Filgueira se encontrava no cargo de Secretário do Estado, ao tempo da Interventoria do General Fernando Dantas. O outro, sem se dar por achado, saiu logo e chegando em casa mudou de fatiota e lá se foi à procura do velho abolicionista mossoroense. Não perdeu tempo em andar, pois na primeira esquina, descobrindo o amigo, dele se aproximou e foi deitando a queima roupa: — “Mas, Romão, meu parente, você não está vendo que isso é uma coisa ridícula, essa de pensar em correr as ruas num andor? — Não vê, meu primo, que isso é arrumação do Padre Mota para agradecer ao Dionísio e vê por esse meio se pode continuar na Prefeitura, inventando impostos e matando os jumentos dos pobres?” Diante daquilo, o Major Romão que tudo ignorava, não teve melhor saída e foi dizendo: — “É Vicente, não é bem um andor, ouviu? …É uma coisa assim…” E lá se foi deixando o amigo embatucado.

[4] — O fato não é apenas originalidade de pequenos lugares do interior. Em muitas cidades importantes, e, até, em capitais, há notícia da existência desses pontos de reuniões. Em Fortaleza, por exemplo, é tradicional a crônica do Banco da Praça do Ferreira, bem em frente à Farmácia Pasteur, centro de encontros e conversações de figuras respeitáveis da progressista capital alencarina. Também em Natal, são conhecidas memórias de alguns desses locais que adquiriram celebridade na vida da cidade. Na sua magnífica História do Rio Grande do Norte, o escritor Luís da Câmara Cascudo faz referências a pelo menos dois desses recantos, afirmando: “Amintas, o Juiz da Capital, era o delegado do Conselheiro Tarquino de Souza, conservador da velha lei, um dos chefes do grupo da Botica (a Botica era do Comendador José Gervasio de Amorim Garcia, cunhado de Amintas) adversário do Cantão da Gameleira, na Cidade Alta, ponto de reunião dos fiéis do Padre João Manuel”.

[5] — Remédios Tradicionais -— Escreveu Veríssimo de Melo: “Estou recebendo, com alegria, uma nova e curiosa colaboração do Prof. Raimundo Nonato. Trata-se de uma relação de remédios caseiros, usados ainda hoje nos nossos sertões. Muitos deles têm nomes gosados e parecem extravagantes. Mas, ninguém pode condená-los sem procurar sua justificação científica. Se eles persistem na memória popular, desafiando os séculos, é sinal de que são realmente úteis. O Prof. Raimundo Nonato confessou-me que ele próprio já bebera chá de flor de toco. Uma tia minha já tomou chá de perna de grilo. Mas, vamos à revelação, tal qual me mandou o prezado confrade Raimundo Nonato”:

1 — Chá de lagartixa, para dor de garganta;

2 — Ovo com breu, para asma;

3 — Banha de urubu, para erisipela;

4 — Água de bilro ou de chocalho, para menino aprender a falar;

5 — Chá de perna de pinto com mel de jandaíra, para puxado; (sic)

6 — Rosário de sabugo, para tosse de cachorro;

7 — Água de raiz de fedegoso, para catarro;

8 — Mistura de vinagre, cachaça e goma, para dor de barriga;

9 — Chá de flor de toco, para sarampo;

10 — Urina de menino novo, para dordói; (sic)

11 — Chá de cavalo do cão, para papeira que desce;

12 — Chá de barata assada, para dor de veado;

13 — Sanapismo (cataplasma) de alho numa perna, para dor de dente;

14 — Mel de cupim, para atalhar hemorragia;

15 — Garapa de-açúcar preto, também para estancar o sangue;

16 — Sarro de. cachimbo, para matar carrapato;

17 — Pó de caroço de pião, para. dor de cabeça;

18 — Barro de casa de besouro, para papeira;

19 —- Chá de esterco de cavalo, para sezão;

20 — Café com pimenta malagueta, contra gripe;

21 — Cebola branca assada e serenada, para tosse braba;

22 — Chá de grilo para menino ficar falador;

23 — Chá de talo de mamoeiro, para empanzinamento;

24 — Pó. de bucho de barata, para dor de ouvido e para estourar fleimão:

25 — Mascar a flor do cajueiro, contra queima (asia);

26 — Baba de fumo mascado, com leite de pião, contra veneno de cobra;

27. — Picada de abelha de enxuí, contra reumatismo;

28 — Cortar um novelo de linha, misturar com açúcar e comer de manhã, em. jejum, para expelir vermes;

29 — Chá de encosto da pena de galinha pedrês, contra tuberculose;

30 — Chá de encosto da pena de galinha pedrês, contra tuberculose; 31 — Meter um botão de-ceroula na boca, para ar a dor de mordida de lacrau. Também. se fala num. chá de mão de pilão, e noutro de cabo-de chapéu de sol de parteira, sem indicação muito certa. Termina. Raimundo Nonato.

31 — Meter um botão de-ceroula na boca, para ar a dor de mordida de lacrau. Também. se fala num chá de mão de pilão, e noutro de cabo-de chapéu de sol de parteira, sem indicação muito certa. Termina Raimundo Nonato.

A FAZENDA RIBEIRO DE SÃO JOSÉ DE MIPIBU E SUAS HISTÓRIAS

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Muitas das antigas e tradicionais fazendas do interior do Nordeste vem sofrendo de intenso abandono e destruição, fazendo com que suas histórias caiam no puro e simples esquecimento.

Alguns acham que isso é até uma coisa boa, pois muitos desses locais foram antros de intensas opressões, iniquidades, perseguições, mortes e outras mazelas. O problema dessa ideia é que várias dessas antigas estruturas possuem enorme importância histórica, com informações que ampliam o conhecimento sobre o ado da nossa região e a perda destes locais é algo bastante complicado e irreversível. 

Casa Grande da Fazeneda Ribeiro, em São José de Mipibu – Foto – Rostand Medeiros

Por isso é sempre positivo encontrar uma antiga propriedade rural bem preservada e com muitas histórias. Esse é o caso da Fazenda Ribeiro, a cerca de seis quilômetros da cidade potiguar de São José de Mipibu.

A casa sede está, pelo menos para que a vê de fora, muito bem conservada, pintada de branco e detalhes azuis.

Foto – Rostand Medeiros

Segundo o pesquisador e blogueiro Daltro Emerenciano, em um artigo sobre a história da Fazenda Ribeiro (https://www.blogdedaltroemerenciano.com.br/2012/10/pedacos-do-nosso-rio-grande-do-norte/), informou que o agricultor Francisco Sales e Silva foi o patriarca da família Ribeiro Dantas e Duarte e teria construído uma primeira casa grande na área da propriedade Ribeiro entre o final do século XVIII e o início do seguinte. Nesse mesmo período foi “erguida uma capela em estilo colonial barroco, em homenagem a São João e também montada em separado uma primitiva engenhoca movida à tração animal e destinada a fabricação de açúcar bruto e seus derivados e, por conseguinte, aquele local ou a ser a primeira sede da Fazenda Ribeiro”.

Foto – Rostand Medeiros

Emerenciano comentou que essa propriedade esteve envolvida nos acontecimentos ligados a chamada Revolução Pernambucana de 1817. Ele publicou que “Pelo relato que se tem daqueles que pesquisaram sobre o movimento em prol da independência do Brasil e que culminou com a eclosão da revolução de 1817, as reuniões para a divulgação das ideias liberais e adesão do maior número de simpatizantes, eram realizadas em pontos afastados da capital, inclusive na cômoda e espaçosa Casa Grande do SÍTIO RIBEIRO. Ali o Coronel de Milícias, André de Albuquerque, mentor do movimento em nossa província, conferenciava com os homens de influência de Natal e vilas do interior, ocasião em que era oferecido aos convivas um farto banquete servido em baixelas de prata”.

Necrológico de Horácio Cândido Sales e Silva, publicado em 28 de setembro de 1903.

Foi um neto de Francisco Sales e Silva, chamado Horácio Cândido Sales e Silva (26/09/1838 – 27/09/1903), bacharel em direito, que transferiu a sede da propriedade para um local mais apropriado, onde construiu a nova sede, a casa destinada ao engenho e uma capela, cujos padroeiros são Santa Ana e São Joaquim. Infelizmente não conseguimos apurar as datas dessas construções, mas soubemos que Horácio Sales importou da Europa o maquinário e órios necessários a montagem da moenda do engenho movida a vapor, em substituição a antiga engenhoca movida à tração animal.

Capela da Fazenda Ribeiro – Foto – Rostand Medeiros.

Sobre a capela existente ela tem uma característica muito interessante que é o seu alpendre, algo que não vejo com frequência nas antigas capelas do Rio Grande do Norte.

Horácio casou duas vezes. A sua primeira esposa, Anna Vivina de Sales e Silva, nasceu em 17 de dezembro de 1845, teve oito filhos e faleceu em 6 de junho de 1877. Já a segunda, Joaquina Marcolina Ribeiro Dantas (27/01/1854 – 27/02/1941), teve cinco filhos, sendo o terceiro um menino que se chamou Celso Dantas Sales e nasceu na Fazenda Ribeiro em 4 de julho de 1884.

Lápides de Horácio Sales e suas esposas – Foto – https://www.familysearch.org/

Esse jovem ingressou na Faculdade de Direito do Recife, bacharelando-se em 10 de dezembro de 1904. Um ano depois foi nomeado promotor público de Acari, onde conheceu Josefa Leonila de Araújo (16/04/1903 – 22/11/1959), conhecida como Teca, com quem casaria no ano de 1918. Essa jovem era filha dos acarienses Manoel Ubaldo da Silva Neto e Leonila Sérvulo de Araújo.

Celso Dantas Sales, pai de Dom Eugênio, em 1904 – Foto – Fundação Joaqiuim Nabuco.

Depois o Doutor Celso foi transferido para o estado Amazonas, onde exerceu o cargo de juiz de direito nas cidades de Lábrea, Benjamin Constant e outros municípios. Voltando ao Rio Grande do Norte em 1914, atuou como juiz em Acari. Em 8 de novembro de 1920, ainda em Acari, nasceu o segundo filho do juiz Celso e Dona Teca, que foi batizado como Eugênio de Araújo Sales.

No mesmo ano do nascimento do segundo filho, o juiz Celso foi designado para a cidade potiguar de Nova Cruz, sendo depois transferido, a pedido, para a Comarca de São José do Mipibu. Nessa cidade nasceram outros filhos do casal, inclusive Dom Heitor de Araújo Sales.

O pequeno Eugênio, ao centro, com os pais e o irmão Sílvio – Fonte – https://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%AAnio_Sales

Na sequência veio trabalhar em Natal, onde foi membro das Juntas de Sanções, depois foi nomeado desembargador por decreto em 30 de novembro de 1926 e atuou como Procurador Geral do Estado, conforme está descrito em seu necrológico no jornal natalense “A República”, publicado em 16 de outubro de 1934, quatro dias após o seu falecimento em Fortaleza, Ceará, devido a tuberculose.

Infelizmente sobre a vivência e convivência da família do Doutor Celso, Dona Teca e seus filhos na Fazenda Ribeiro eu não consegui maiores informações, mas seguramente o jovem Eugênio se tornou o potiguar com a mais expressiva história de atuação na Igreja Católica.

Depois de fazer estudos humanísticos no Colégio Santo Antônio em Natal, ingressou no seminário em 1937. Foi ordenado por Dom Marcolino Dantas sacerdote em 21 de novembro de 1943. Em seguida ou a exercer o ministério pastoral em Nova Cruz e na sequência foi chamado ao Seminário de Natal, onde atuou como encarregado de suprimentos, professor e diretor espiritual. Entre muitas outras atividades, o Padre Eugênio foi capelão da Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Norte, no posto de Capitão.

Sino da capela da Fazenda Ribeiro – Foto – Rostand Medeiros.

Em 1 de junho de 1954, aos 33 anos, foi nomeado bispo auxiliar de Natal pelo Papa Pio XII e ordenado bispo no dia 15 de agosto de 1954, pelas mãos de Dom José de Medeiros Delgado, Dom Eliseu Simões Mendes e de Dom José Adelino Dantas. Posteriormente, em outubro de 1962, foi designado apostólico da Arquidiocese de Natal. Aqui promoveu uma série de iniciativas que rapidamente se espalharam por todo o Nordeste do Brasil: fundou o serviço de assistência social aos trabalhadores rurais, centros educacionais e transmissões de rádio para ensino fundamental e médio.

Região rural da Fazenda Ribeiro – Foto – Rostand Medeiros.

Em 6 de julho de 1964 foi nomeado Apostólico em Salvador, Bahia, e em 29 de outubro de 1968 tornou-se Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, pelo Papa Paulo VI. Nesta Arquidiocese iniciou novas iniciativas pastorais e promoções sociais para os menos favorecidos. Também dirigiu o departamento de ação social do Conselho Episcopal Latino-Americano e participou do Concílio Vaticano II.

Foi proclamado Cardeal pelo Papa Paulo VI no consistório de 28 de abril de 1969. Em 29 de outubro de 1971, Paulo VI nomeou-o Arcebispo do Rio de Janeiro. Dom Eugênio de Araújo Sales faleceu em 9 de julho de 2012.

1926 – COLUNA PRESTES NO RIO GRANDE DO NORTE – PROCESSO RELATIVO AO INCÊNDIO DO CARTÓRIO DA CIDADE DE SÃO MIGUEL-RN

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O Juiz de Direito Felipe Luiz Machado Barros

PRESTO AQUI UMA SINGELA HOMENAGEM AO JUIZ DE DIREITO FELIPE LUIZ MACHADO BARROS, QUE DEU INÍCIO AO TRABALHO DE PRESERVAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO DO CONTEÚDO DESTE DOCUMENTO.

Recentemente fui agraciado com o título de cidadania da cidade de São Miguel, Rio Grande do Norte, onde recebi esta honraria com extremo orgulho e gratidão.

Para esta bela cidade eu retornei no último dia 18 de setembro de 2015, onde participei de uma festa verdadeiramente maravilhosa. Ali reencontrei muitos amigos e amigas, além de voltar a uma cidade pela qual tenho enorme carinho.

Diplomação (31)

Durante o evento eu tive a oportunidade de conhecer o jovem Juiz de Direito Felipe Luiz Machado Barros, que igualmente estava tendo a honra de receber este título de cidadania. Ele é o atual juiz da Comarca de São Miguel e uma pessoa que possui extremo conhecimento, sensibilidade e prazer pela história.

Não posso negar que sempre me sinto muito feliz e recompensado ao encontrar pessoas que sabem reconhecer a importância da história para o aprimoramento da cidadania de uma comunidade. Melhor ainda quando estas pessoas partem para a realização de ações práticas!

Pesquisando no arquivo de sua Comarca, o Juiz Felipe encontrou o documento do processo sobre o incêndio ocorrido no cartório da cidade de São Miguel em 1926 e praticado pelos membros da famosa Coluna Prestes, que ficaram conhecido nas região como “Revoltosos”.

Diante da importância histórica deste documento, o juiz Felipe transcreveu o texto na íntegra e iniciou os processos de preservação deste valioso material.

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Anteriormente no nosso TOK DE HISTÓRIA eu reproduzi um texto sobre a agem da Coluna Prestes na região. Texto esse que faz parte do meu segundo livro “João Rufino – Um visionário de fé”. Para ver este texto clique neste link – /2012/01/03/a-historia-da-coluna-de-revoltosos-em-sao-miguel/

Mas voltando ao trabalho realizado por este jovem juiz, ele é merecedor dos mais amplos e fortes elogios. Em um texto escrito por este magistrado, que me foi reado pela amiga e professora Geania Leite, os leitores do nosso TOK DE HISTÓRIA poderão compreender mais sobre este episódio que tanto marcou a região da Serra do Camará.

Ao explicar sua ação, no seu escrito o Juiz Felipe Barros deixa registrado uma frase que para mim é verdadeiramente música – Preservar a história é papel de cada cidadão.

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Igreja de São Miguel na década de 1950 – Foto – René Guida

Mesmo eu não sendo funcionário do Tribunal de Justiça, tenho conhecimento das enormes dificuldades, problemas e do tempo limitado para que ações assim se tornem corriqueiras nas comarcas potiguares. Entretanto, seria algo maravilhoso que outros juízes, promotores e pessoas do direito seguissem o exemplo deste jovem e dinâmico magistrado.

Muito obrigado Dr. Felipe Barros.

Atenciosamente,

Rostand Medeiros

Escritor e Pesquisador

P.S. – Para manter a linha editorial do TOK DE HISTÓRIA, decidi acrescentar fotografias de antigas manchetes do ataque de 1926 e da cidade de São Miguel ao texto resgatado pelo Juiz Felipe Barros. Igualmente coloquei em negrito algumas frases do texto copiado do original. As fotos possuem apenas um caráter meramente ilustrativo e fazem parte da coleção do historiador e meu amigo René Guida.

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O responsável pelo blog TOK DE HISTÓRIA na época das pesquisas para o desenvolvimento do livro “João Rufino-Um visionário de fé”. Este maquinário é do antigo engenho onde ocorreu um forte tiroteio entre os defensores da cidade de São Miguel e os membros da Coluna Prestes.

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Domingo, 16 de fevereiro de 2014

Um pouco de história: proc nº 1-1926, da Comarca de São Miguel.
Por Felipe Luiz Machado Barros
Juiz de Direito titular da Vara Criminal de Macaíba, Rio Grande do Norte
Juiz designado para a Comarca de São Miguel e Diretor do Foro

Nos arquivos do Fórum da Comarca de São Miguel foi encontrado o processo com registro de tombo de nº 1 do ano de 1926.

Naquele tempo os processos eram todos reunidos em um único cartório, que fazia as vezes de tabelionato e secretaria de vara judicial (atualmente os cartórios são separados: os judiciais, onde funcionam os juízes, e os extrajudiciais, onde continuam os registros de pessoas naturais e jurídicas, de imóveis, de notas, etc., e que têm à frente um tabelião).

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Imagem meramente ilustrativa de um típico combatente da década de 1920 dos sertões do Nordeste. Os membros da Coluna Prestes se vestiam, estavam equipados e armados de forma similar.

O número 1 indica que o processo foi o primeiro a ser registrado em 1926, e sua abertura deveu-se a um fato inusitado: havia a chamada “Coluna de Revoltosos” (nome dado à época à Coluna Prestes), em agem por São Miguel, ateado fogo no cartório da cidade.

Temos assim um valioso registro oficial da agem da famigerada “Coluna Prestes” pelo Estado do Rio Grande do Norte, lá pelo alto oeste, mais precisamente pela “Villa” de São Miguel, então sob a influência política de Coronel João Pessoa de Albuquerque, Deputado Estadual.

A instauração do processo para apuração das causas do incêndio (por isso chamado de “auto de incêndio”) no cartório se deu por ordem do juiz de direito da “Commarca” de Pau-dos-Ferros, Dr. João Vicente da Costa, na data de 18 de fevereiro de 1826, que substabeleceu as funções ao “cidadão” Elinas Dias da Cunha, juiz districtal da Villa de São Miguel.

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Tradicional imagem do Arcanjo São Miguel venerada na Serra do Camará – Foto – René Guida

Os originais foram entregues à istração do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte a fim de que sejam preservados pelo Centro de Memória ali existente, organizado pelo servidor Eduardo Gosson, porém tomei o cuidado de copiar os autos em arquivo PDF, podendo ser aqui ado.

Abaixo segue a transcrição feita por mim mesmo; foi difícil em razão do formato da letra da época, estilo de escrita, mas, enfim, acho que deu certo, e agora tive tempo de disponibilizar.

Preservar a história é papel de cada cidadão.

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TRANSCRIÇÃO FEITA EM 30-9-2013 – PROC. 1/1926 – COMARCA DE SÃO MIGUEL

(Autor: Felipe Barros, Juiz de Direito titular da Vara Criminal de Macaíba, designado para a Comarca de São Miguel)

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1926

Juízo Districtal da Comarca de São Miguel

Registro Cronológico nº 1

Auto de incendio no cartorio do publico judicial, a requerimento do Doutor Juiz de Direito da Comarca de Pau dos Ferros, com Jurisdição nesta de São Miguel.

O Escrivão

José Avelino Pinheiro

Autoação

Ano de mil novecentos vinte seis, nesta Villa e Comarca de São Miguel, Estado do Rio Grande do Norte, aos vinte três de fevereiro de dito anno, autoei no meu cartorio o officio e auto que adiante xx, do que fiz esta autoação.

São Mioguel (1)
Foto – René Guida

Eu, José Avelino Pinheiro, escrivão que a escrevi.

Autoados.

Juizo de Direito da Comarca de Pau dos Ferros, em 18 de Fevereiro de 1926.

Ilmo. Sr. 1º Juiz Districtal de S. Miguel.

Scientificado pelo Escrivao do Cartorio do publico judicial e notas desse districto e comarca, ora sob minha jurisdição, do incendio do mesmo cartorio por um grupo da numerosa horda de rebeldes que, no dia 4 do corrente, invadiu esse municipio, recomendo-vos que façais proceder a auto circunstanciado sobre o referido facto, do qual conste a verificação, entre outros que forem julgados convenientes, dos seguintes pontos: 1º Houve incendio? 2º Foi total ou parcial? 3º Se parcial, quais os pontos attingidos? 4º Onde teve começo? 5º Qual a materia que o produziu? 6º Havia em deposito ou derramada em algum local qualquer materia explosiva ou inflamavel? 7º Qual o modo por que foi ou pareça ter sido produzido o incendio? 8º Que objectos ou contas foram incendiados? 9º Quaes os effeitos ou resultados do incendio? 10º Si foram incendiados ou por qualquer forma inutilizados, livros de notas, do registro civil, registro geral de imóveis ou hippotteccas, termos, autos, etc? 11º Si houve arrombamento ou violencia a qualquer móvel ou imóvel? 12º Qual o valor do damno causado?

São Mioguel (2)
Foto – René Guida

Cumprida essa diligencia, por meio do referido auto de incendio, assignado pelas principaes auctoridades locaes, e fazendo-se, a seguir, o exame pericial competente, de accordo com os quesitos supra, que do alludido auto, como medida preliminar, constarão em forma de narrativa, deveis me remetter tres copias desse processado, afim de serem encaminhadas à Secretaria do Governo e do Tribunal e de archivar uma neste Juízo.

Saúde e Fraternidade,

João Vicente da Costa

Auto de incendio

Aos vinte trez dias do ano mês de fevereiro de mil novecentos vinte seis, nesta Villa de São Miguel, Districto e Comarca do mesmo nome, às doze horas do dia, presentes o cidadão Elinas Dias da Cunha, primeiro Juiz Districtal, em exercício, comigo escrivão de seu cargo abaixo-assinado e mais os cidadãos Cel. João Pessoa de Albuquerque, Deputado Estadual e Presidente da Intendência, Major Manoel Antônio Nunes, primeiro substituto do Juiz Federal, Vicente Ferreira de Souza, Delegado de Polícia Francisco da Costa Queiros, Promotor Publico interino da Comarca, Doutor Antonio Gonçalves Vieira, medico residente nesta Villa, perante os mesmos, foi procedida a verificação do incendio, feito no cartorio publico do judicial e notas, nesta Villa, no dia quatro do corrente, pelas quatorze horas, por um grupo de rebeldes chefiado pelo General Miguel Costa e Coroneis Carlos Prestes e João Alberto e outros mesmos graduados, constatando-se o seguinte: que foi arrebentada a porta e revolvidos todos os papéis e livros de qualquer natureza que foram arrastados para fora, sendo queimados ao pé da calçada do mesmo predio, onde se encontravam cinzas; que nenhum livro ou auto ficou em cartorio, o que tudo foi especionado devidamente pelas autoridades acima declaradas, e assim mandou o Juiz que se lavrasse este, que depois de lido e achado conforme, vai assignado por todos.

São Mioguel (4)
Foto – René Guida

Eu, José Avelino Pinheiro, escrivão que o escrevi.

Elinas Dias da Cunha
João Pessoa de Albuquerque
Manoel Antonio Nunes
Vicente Ferreira de Souza
Dr. Antonio Gonçalves Vieira
Francisco da Costa Queiros

Conclusão

Na data retro e lugar, no meu cartorio, faço estes autos conclusos, ao Juiz Districtal no exercício, cidadão Elinas Dias da Cunha, do que diz este termo. Eu, José Avelino Pinheiro, escrivão que o escrevi.

Conclusão

Devendo-se proceder o auto a perguntas ao serventuário respectivo José Avelino Pinheiro, nomeio para substitui-lo nas suas funções ad hoc o cidadão José Pessoa de Carvalho, que juntará o compromisso legal. Intimem-se depois os cidadões Dr. Antonio Gonçalves Vieira e Manoel Vieira de Carvalho para procederem ao competente exame pericial no cartorio publico em prezença de duas testemunhas, tendo em vista as perícias requeridas na petição à fls.

São Miguel, 23 de fevereiro de 1926.

São Mioguel (5)
Foto – René Guida

  1. Cunha

Data

Na data supra e lugar, no meu cartorio, por parte do dito Juiz me foram entregues estes autos, do que fiz este termo. Eu, José Avelino Pinheiro, escrivão que o escrevi.

Certidão

Certifico que em virtude do despacho retro e supra do Juiz, intimei ao cidadão José Pessoa de Carvalho, pelo conteúdo do referido despacho; Dou fé.

São Miguel, 23 de fevereiro 1926.

O Escrivão.
José Avelino Pinheiro.

Termo de compromisso de escrivão ad-hoc.

Aos vinte trez de fevereiro de mil novecentos vinte seis, nesta Villa e Comarca de São Miguel, no meu cartorio, presente o Juiz Districtal no exercício, cidadão Elinas Dias Cunha, comigo escrivão effectivo de seu cargo, abaixo nomeado e sendo ahi compareceu o cidadão José Pessoa de Carvalho, a quem o dito Juiz deferiu o compromisso legal de escrivão ad-hoc, para funcionar no presente feito.
E sendo por ele aceito o dito compromisso, prometteu cumprir tudo debaixo das responsabilidades de seu cargo; do que fiz este termo. Eu, José Avelino Pinheiro, escrivão que o escrevi.

Elinas Dias da Cunha
José Pessôa de Carvalho
Certidão

SAO MIGUEL ARCANJO
Altar da igreja de São Miguel – Foto – René Guida

Cerifico em virtude do despacho retro do Juiz, intimei nesta Villa aos peritos Dr. Antonio Gonçalves Vieira e Manoel Vieira de Carvalho, bem como as duas testemunhas, por todo conteúdo do referido despacho do que ficaram bem scientes; dou fé.
São Miguel, 23 de fevereiro de 1926.
O Escrivão ad-hoc
José Pessôa de Carvalho

Termo de compromisso dos peritos nomeados

Aos vinte e trez de fevereiro de mil novecentos vinte seis nesta Villa e Comarca de São Miguel, no cartorio publico, presente o cidadão Elinas Dias da Cunha, Juiz Districtal no exercicio, comigo escrivão ad-hoc de seu cargo abaixo assinado, e sendo ahi compareceram os cidadãos Dr. Antonio Gonçalves Vieira e Manoel Vieira de Carvalho, a quem o dito Juiz defferiu o compromisso legal de peritos para fazerem investigações acerca do incendio do cartorio publico desta Villa. E sendo por elles acceito o dito compromisso prometteram tudo comigo debaixo da responsabilidade de seus cargos; do que para constar fiz o presente termo que assignam com o Juiz.
Eu, José Pessôa de Carvalho, escrivão ad-hoc o escrevi.

Elinas Dias da Cunha
Dr. Antonio Gonçalves Vieira
Manoel Vieira de Carvalho

São Miguel
Foto – René Guida

Auto de verificação o incendio do cartorio publico da Commarca de São Miguel.

Aos vinte e trez dias do mez de fevereiro de mil novecentos vinte e seis nesta Villa e Comarca de São Miguel no cartorio publico, presente o Juiz Districtal em exercício, cidadão Elinas Dias da Cunha, commigo o escrivão ad-hoc de seu cargo abaixo nomeado, e ahi compareceram os peritos retro compromissados e as testemunhas Francisco Nogueira de Queiroz e Avelino Tavares Magalhães, todos maiores, negociantes e residentes nesta Villa, de idoneidades moraes, e o refferido Juiz encarregou aos dois primeiros de procederem as investigações que julgassem necessarias acerca do incendio do cartorio publico do judicial e notas desta Commarca de São Miguel, e que respondessem aos quesitos seguintes: 1º Se houve incendio? 2º Se foi total ou parcial? 3º Se parcial, quais os pontos attingidos? 4º Onde teve começo? 5º Qual a materia que o produziu? 6º Se havia em deposito ou derramada em algum local qualquer materia explosiva ou inflamavel? 7º Qual o modo por que foi ou pareça ter sido produzido o incendio? 8º Que objectos ou cousas foram incendiados? 9º Quaes os effeitos ou resultados do incendio? 10º Se foram incendiados ou por qualquer forma inutilizados, livros de notas, do registro civil, registro geral de immóveis ou hipotheccas, termos, autos, etc? 11º Se houve arrombamento ou violencia a qualquer móvel ou imóvel? 12º Qual o valor do damno causado?. Em consequencia do que aram os peritos a faserem as investigações nescessarias, concluidas as quais declararam o seguinte: que examinando as portas do predio que serve ao cartorio publico bem como as portas da casa de morada contigua ao mesmo cartorio verificaram estarem algumas deterioradas a ponto de permettir a invasão do refferido predio, no qual se observa estar o archivo geral completamente desocupado, notando-se ao pé da calçada do cartorio grande quantidade de cinzas, ficando denegrido o local do incendio pelo que responderam: ao primeiro quesito, sim, ao segundo, que foi total, ao terceiro prejudicado com a resposta do segundo, ao quarto, ao pé da calçada, ao quinto, que se tratando de papeis, nescessario se fez apenas phosphoros, ao sexto, não, ao setimo, produzido pelos phosphoros, ao oitavo, todos os papeis e livros existentes no cartorio, ao nono, destruição completa, ao decimo, sim, ao decimo primeiro, sim, ao decimo segundo, valor inestimavel. E são estas as respostas que em suas consciencias e debaixo do compromisso prestado, tem a faser. E como nada mais disseram, mandou o Juiz encerrar o presente auto que depois de lido e achado conforme assignou com os peritos e testemunhas.
Eu, José Pessôa de Carvalho, escrivão ad-hoc, o escrevi e assigno.

Elinas Dias da Cunha
Dr. Antonio Gonçalves Vieira
Manoel Vieira de Carvalho
Francisco Nogueira de Queiroz
Avelino Tavares Magalhães
José Pessôa de Carvalho

São Mioguel (3)
Foto – René Guida

Auto de perguntas feitas ao escrivão e tabelião José Avelino Pinheiro.

Aos vinte e seis dias do mez de fevereiro de mil novecentos vinte e seis nesta Villa e Comarca de São Miguel, no cartorio publico, presente o cidadão Elinas Dias da Cunha, Juiz Districtal em exercicio commigo escrivão de seu cargo nomeado, e sendo ahi compareceu o escrivão e tabelião effectivo José Avelino Pinheiro, a quem o dito Juiz fez as perguntas seguintes: perguntado qual seu nome, naturalidade, estado, profissão, filiação e residencia, respondeu chamar-se José Avellino Pinheiro, nactural do Estado do Ceará, casado, escrivão e tabelião effectivo desta Commarca, filho de Joaquim Pinheiro de Almeida e residente nesta Villa. Perguntado como se havia dado o facto do incendio do cartorio publico que estava sob sua guarda como escrivão effectivo, respondeu que no dia quatro, estando refugiado em casa do Pe. Tertuliano Fernandes, depois de já ter vindo do Sítio “Póto”, proximo a esta Villa, com garantia de um dos officiaes dos rebeldes, e pelas 14 horas ou 15 aproximadamente, houvio fortes pancadas que lhe pareceram ser em portas de casas nesta Villa; e a esse tempo lhe chega seu contra-parente, Antonio Rodrigues de Carvalho, que com pressão fora intimado por um dos officiais rebeldes a lhe mostrar as portas do edificio onde foncionava o cartorio publico; e coagido foi obrigado a incinerar o refferido predio onde por meio de arrombamento das portas alem de danificação de algumas de casa de sua residencia, fez incursão no primeiro de onde retirou todos os papeis concernentes ao archivo do cartorio publico bem como do militar que estava sob minha guarda, e collocando-os ao pé da calçada do refferido predio incendiou-os com o auxilio de uma lata de kerosene conduzida por José e tal, vulgo “José Biró”, vulgarmente conhecido nesta Villa. Somente no dia 6 do corrente é que tomei chegada a minha casa e pude verificar a destruição na repartição a meu cargo além dos prejuisos em minha casa de morada que fica contigua, que avalio em roupas e objectos na quantia de trez contos de réis, afora pequena parte escriptu commercio particular que foi totalmente danificado junto com os papeis do cartorio. Os livros e objectos que tenho em minoria destruidos pela horda são os seguintes – archivo eleitoral – trezentos e cincoenta autos de eleitores; trez volumes de leis que regulava o serviço eleitoral federal e eleitoral; o livro de termo de inclusão de cada eleitor; o livro de ordem numerica de cada eleitor; e os demais papeis como sejam: officios, circulares, telegrammas e outros quaisquer, exceto o livro das s dos eleitores que está sob a guarda do Dr. Juiz de Direito que tem jurisdição nesta Commarca. – Archivo geral do escrivão e tabelião. Fôram incendiados todos os livros do registro de nascimentos, casamentos, obtos, de notas do tabelionato, de inventarios, arrolamentos e sumarios, autos-crimes, inclusive de Geraldo Affonso da Silva, que sentenciado a trinta annos conforme a ultima sentença do Jury, se acha recolhido na cadeia de Mossoró à requisição do mesmo Dr. Juiz de Direito com jurisdição nesta Commarca; bem como destruídos os autos de Agostinho Nogueira de Queiroz, pronunciado no art. 294, o que se acha homisiado no Estado do Ceará; assim mais foram incendiados diversos autos de demarcação e divisão de terras de licença para venda de immoveis, de habilitações para casamentos, etc. – Registro hypotecario – tambem foram incendiados todos os livros concernentes ao officio de que se trata. – Archivo militar – foram também incendiados todos os livros e papeis do archivo militar como sejam: livros de alistamento geral, circulares, telegrammas, officios, listas de sorteados e o expediente para o serviço do corrente anno, de cujo archivo era o secretario e estava sob minha guarda. Alem de todos os papeis acima referidos, tambem foram danificados totalmente dois codigos do processo penal annotados, dezeceis volumes da Revista do Supremo Tribunal, um codigo civil do Estado, um codigo de processo penal do Estado, diversos formularios e um regulamento da policia estadual. E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, deu-se por findo este auto que lhe sendo lido e achar conforme assigna com o Juiz.
Eu, José Pessôa de Carvalho, escrivão ad-hoc, o escrevi e assigno.

Elinas Dias da Cunha
José Avelino Pinheiro
José Pessôa de Carvalho

São Miguel-Escola Padre Cosme-1
Escola Padre Cosme na década de 1920 – Foto – IHGRN

Conclusos

Na data retro e lugar no cartorio publico faço estes autos concluzos ao primeiro Juiz Districtal no exercicio, cidadão Elinas Dias da Cunha; do que fiz este termo. Eu, José Pessôa de Carvalho, escrivão ad-hoc, o escrevi.

Conclusos

De conformidade com a requisição do Doutor Juiz de Direito da Comarca de Pau dos Ferros, constante de seu officio de 18 do actual, o escrivão extraia trez copias de todo o processado para lhe ser remettidos tudo de acordo com o citado officio.

São Miguel, 28 de fevereiro de 1926.

E.Cunha

Data

Na data supra e lugar no cartorio publico por parte do dito Juiz me foram entregues estes autos; do que fiz este termo. Eu, José Pessôa de Carvalho, escrivão ad-hoc o escrevi.

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Nota publicada na imprensa potiguar em 1926 pelo governo do Rio Grande do Norte sobre o ataque da Coluna Prestes no Alto Oeste 

Certidão

Certifico que extraí as trez copias deste processado conforme determinou o Juiz em seu despacho de fls. retro; dou fé.

São Miguel, 25 de fevereiro de 1926.

O Escrivão ad-hoc.
José Pessôa de Carvalho.