É FATO QUE O EXÉRCITO BRASILEIRO PRODUZIU UM MATERIAL COM FOTOS E FILMES SOBRE NATAL E A BASE DE PARNAMIRIM DURANTE A SEGUNDA GUERRA? E ONDE SE ENCONTRA ESSE RARO MATERIAL?

Descobri Que o Exército Brasileiro Realizou em 1942 Todo um Trabalho Documental e Iconográfico, Com Fotos e Filmes Sobre Natal e a Base de Parnamirim. Mas onde está esse material???

Rostand Medeiros – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rostand_Medeiros

Mesmo com muitos historiadores não aceitando essa situação, o tema sobre a cidade de Natal durante a Segunda Guerra Mundial sempre foi algo que chamou (e chama) bastante a atenção do povo dessa cidade, sendo os materiais produzidos sobre esse período da história local os mais consumidos. São livros, vídeos, histórias em quadrinhos, peças de teatro e outros produtos.

NATAL, BRASIL – JUNHO 1943: A view as US servicemen at the Parnamirim airport at the US Air Force base in Natal, Brazil. (Photo by Ivan Dmitri/Michael Ochs Archives/Getty Images) *** Local Caption***

A presença de tropas estrangeiras na cidade, dos atos de espionagem nazifascista em Natal, a reação dos natalenses envolvidos nesse contexto, o que mudou na cidade, o que a população conseguiu de vantagem com tudo isso e também o que sofreu, são sempre pontos de interesse dos moradores da “Cidade do Sol”.

Enfim, devido a sua propalada posição estratégica, Natal foi seguramente a cidade mais envolvida na Segunda Guerra Mundial na América do Sul.

Parnamirim Field – Fonte – NARA.

Aqui existiu uma das maiores bases aéreas Aliadas envolvidas no conflito e daqui partiram milhares de aeronaves para atuarem em diversas frentes de combate, desde a África, ando pela Europa e chegando até a China.

Por aqui sempre chamou atenção quando surgem novos dados e materiais, principalmente iconográficos, sobre a cidade naqueles tempos turbulentos. Uma coleção de novas fotos, ou até mesmo uma simples foto, já é motivo de discussão entre aqueles que gostam de observar esse período da História da cidade.

E com muita satisfação eu descubro que o Exército Brasileiro realizou em 1942 todo um trabalho documental e iconográfico, com fotos e filmes sobre Natal e a Base de Parnamirim. Todo esse material foi destinado para a produção de uma palestra que se realizou nas primeiras semanas de janeiro de 1943, no antigo Palácio da Guerra, atual Palácio Duque de Caxias, ao lado da Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Vejam abaixo!

Maravilha! Mas como foi produzido esse material? Quem o produziu? Quem foi o oficial que apresentou esse trabalho no Rio? E o mais importante – onde está esse material?

Sobre Quem Apresentou

Nos jornais brasileiros, não consta o nome de quem realizou e produziu o material iconográfico, mas como as notícias apontam o capitão Jefferson Cardim de Alencar Osorio como o palestrante do evento no Palácio Duque de Caxias e devido a sua patente, o mais provável é que ele tenha sido o responsável por essa pesquisa.

Mas quem era Jefferson Cardim e como ele veio parar em Natal?

O capitão Jefferson Cardim de Alencar Osorio na época da Segunda Guerra.

Sabemos que nasceu em 17 de fevereiro de 1912 no Rio de Janeiro, sendo filho do capitão de corveta Roberto de Alencar Osorio e da professora Corina Cardim de Alencar Osório.

Apesar de ter um pai oficial da Marinha, Cardim decidiu seguir a carreira militar no Exército. Entrou na Escola Militar do Realengo, sendo declarado aspirante a oficial em 25 de janeiro de 1934 (Turma Marechal José Pessoa) na arma de artilharia. Logo ô jovem oficial foi promovido a segundo tenente.

A sua primeira unidade foi o 6º Grupo de Artilharia de Costa (6º G. A. Co.), no Forte de Coimbra, no atual estado do Mato Grosso do Sul. Em 1936 estava no 4º Regimento de Artilharia Montado (4º R. A. M.), em Itu, interior de São Paulo, sendo depois transferido para Santa Maria, no Rio Grande do Sul, para atuar no 5º Regimento de Artilharia Montado (5º R. A. M.), conhecido como Regimento Mallet. Na sequência veio para Niterói, Rio de Janeiro, para servir no Forte de São Luiz, como oficial da 2ª Bateria Independente de Artilharia de Costa (2ª B. I. A. C.).

Canhão alemão antiaéreo de 88m.m. do I/3º R. A. A. Ae e utilizado em Natal.

Em dezembro de 1941, um dia antes do ataque japonês a base americana de Pearl Harbor, ele concluiu o curso de defesa antiaérea e logo foi transferido para o Primeiro Batalhão do 3º Regimento de Artilharia Antiaérea (I/3 R. A. A. Ae.) que estava aquartelado em Natal, tendo sido promovido a capitão.

Como Pode Ter Sido Realizado Esse Trabalho

Certamente trabalhando com outros militares e provavelmente devido ao volume de informações, o capitão Jefferson Cardim decidiu dividir o seu trabalho em duas partes. Em uma das partes ele trabalhou com dados sobre a topografia, clima, custo de vida (que estava subindo bastante em Natal com a presença dos militares americanos), saúde, alimentação, ambiente social e cultural.

NATAL, BRASIL – JUNHO 1943: A street view as servicemen talk with locals in Natal, Brazil. (Photo by Ivan Dmitri/Michael Ochs Archives/Getty Images) *** Local Caption***

Na outra parte, segundo foi publicado nos jornais, foram basicamente contemplados os aspectos relativos a defesa militar de Natal, a defesa da Base de Parnamirim e finalizando havia o foco sobre os militares brasileiros e americanos na região. Foi visado o número de militares atuando na área e, provavelmente, nesse último quesito um dos pontos observados podem ter sido os aspectos da interação e convivência entre as forças do Brasil e dos Estados Unidos, algo que preocupava os dois governos.

NATAL, BRASIL – JUNHO 1943: US servicemen sit to have a drink at the Grande Hotel in NATAL, BRAZIl. (Photo by Ivan Dmitri/Michael Ochs Archives/Getty Images) *** Local Caption***

Outras coisas colocadas pelo capitão Jefferson Cardim nessa última parte dos estudos e da palestra são os chamados “pontos sensíveis importantes” como as vias de transporte em Natal, tanto terrestre como fluvial, nesse caso certamente o Rio Potengi. Outros pontos eram as “defesas naturais da cidade” uma parte específica sobre as dunas que cercam Natal. Havia ainda uma parte sobre “o moral da tropa” e outro sobre as “Secas na defesa do Nordeste”. Sobre essa última parte parece que esse militar e quem mais o tenha assessorado adentraram para o sertão potiguar.

Apresentação no Rio de Janeiro

Quando esse projeto teve início e quando se deu sua finalização não sabemos. Mas sabemos que o capitão Jefferson Cardim sofreu um acidente quando estava em Natal, mas não é comentado em nenhum local o que lhe aconteceu. Mas aparentemente foi algo grave, pois consta uma notícia publicada no jornal carioca Diário de Notícias, de 9 de agosto de 1942, que ele veio de Natal para o Rio de Janeiro para ficar internado no Hospital Central do Exército e estava acompanhado do soldado Antônio da Conceição, lotado no I/3 R. A. A. Ae.

Dois meses depois, dia 20 de novembro, é publicado no mesmo Diário de Notícias uma reprodução do Boletim Interno nº 269 da Diretoria de Artilharia, ordenando que Cardim fosse “inspecionado” pela Diretoria de Saúde para a conclusão da sua licença de saúde.

Jefferson Cardim quando era coronel, no início da década de 1960.

As próximas noticias sobre Cardim é a divulgação da palestra, que foi chamada “Conferência sobre a Defesa de Natal”.

Em um mesmo dia (03/12/1942) foram publicadas três notas explicativas sobre a conferência em jornais do Rio (Jornal do Brasil, Diário de Notícias e Gazeta de Notícias). Dois dias depois esse material foi repetido na imprensa natalense no jornal A Ordem. Todos esses jornais comentaram que a palestra iria ocorrer no dia 9 de dezembro, uma quarta feira, às duas da tarde. Depois surgiu outra nota informando que foi alterada para o dia 13, no mesmo horário.

Bem, se a conferência aconteceu, ou não, sinceramente eu não sei!

Como o evento se desenrolou e como foi apresentado, ou como foi visto e recebido pelos presentes e até quem estava por lá é um mistério!

Soldados dos Dragões da Indepêndencia no interior do Palácio Duque de Caxia em 1942.

E a razão foi porque não encontrei nenhuma indicação sobre isso nos jornais e revistas disponíveis no site da Biblioteca Nacional. Também fiz uma busca nos riquíssimos sites do Arquivo Nacional e nada. Mas eu não acredito que depois de tanta propaganda, tanta divulgação em alguns dos principais jornais do país, esse evento deixou de acontecer.

Evento no Palácio Duque de Caxias em 1945, com a participação do general Eurico Gaspar Dutra e o general norte-americano Mark Clark, comandante do 5º Exército dos Estados Unidos na Itália.

Mas no final das contas, o mais importante é saber o que foi feito desse importante material, que teoricamente foi apresentado pelo capitão Jefferson Cardim.

Guerrilha de Três os

Jefferson Cardim continuou no Exército Brasileiro, progrediu na carreira militar, mas adentrou bastante no aspecto político e houve consequências para ele e sua família.

O coronel Jefferson Cardim e sua esposa em uma solenidade.

Segundo os sites Memória da Democracia e Memória da Ditadura ( https://memorialdademocracia.com.br/card/ditaduras-se-unem-as-ordens-de-tio-sam e https://memoriasdaditadura.org.br/personagens/jefferson-cardim/  ), esses são os fatos envolvendo Cardim e a criação de um núcleo de guerrilheiros contra o Regime Militar em 1965.

Na noite de 26 de março de 1965, um grupo de camponeses, militares e profissionais liberais liderado pelo coronel do Exército Jefferson Cardim Osório e pelo sargento da Brigada Militar (PM) Albery Vieira dos Santos toma a cidade de Três os (RS).

Militares coletando informações na região de Três os, Rio Grande do Sul.

Depois de cortar a comunicação telefônica da localidade e levar armas, fardas e munição do destacamento policial, o comando invadiu a rádio local e transmitiu um manifesto contra a ditadura. Dali, o grupo partiu para os municípios de Tenente Portela e Barra do Guarita, no Rio Grande do Sul, e Itapiranga, em Santa Catarina, onde tomaram os postos da Polícia Militar.

A prisão dos guerrilheiros deu-se na cidade paranaense de Capitão Leônidas Marques dois dias mais tarde. O coronel Cardim fazia parte do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), grupo de militares ligados ao ex-governador Leonel Brizola, exilado no Uruguai. 

Jefferson Cardim preso.

Cardim é conhecido por ser o líder de um dos primeiros movimentos armados contra a ditadura. Filho de um oficial da Marinha, em diversas situações se posicionou contra as orientações do exército. Com o golpe, a ditadura cassou sua patente e o aposentou depois do Ato Institucional Nº 1 (AI-1).

Quando ele já estava no Uruguai, por auxílio de João Goulart, organizou o Movimento 26 de Março, também conhecido como Guerrilha de Três os. Da cidade do Rio Grande do Sul de mesmo nome, o grupo do coronel subiu em direção ao Paraná. Isso porque, no dia 26 de março de 1965, o presidente Castelo Branco estaria em Foz do Iguaçu para a inauguração da Ponte da Amizade, na fronteira entre Brasil e Paraguai.

Solenidade no velório do sargento Carlos Argemiro de Carvalho, paranaense, única vítima da Guerrilha de Três os.

A ação foi frustrada pelas tropas do governo, resultando na dispersão e posterior prisão de todos os insurgentes. Preso e levado a Curitiba (PR), Cardim foi torturado e ficou detido até 1968, quando conseguiu fugir. Em 1970, foi sequestrado na Argentina, como uma das primeiras ações da Operação Condor”.

Em 1985, Jefferson Cardim teve a sua anistia cassada e foi viver fora do país como refugiado Através da ação de setores da Organização das Nações Unidas (ONU), o governo francês o acolheu e durante a sua permanência em Paris. lhe concederam uma ajuda de 3.600 francos, que, segundo Cardim declarou, dava para comer em restaurantes universitários e dormir em um quartinho de hotel no Quartier Latin.

Faleceu no Rio de Janeiro, em 29 de janeiro de 1995.

1964 – A REVOLTA DOS MARINHEIROS E FUZILEIROS NAVAIS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Marinheiros e fuzileiros navais sublevados no interior do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, sendo cercados por tropas do Exército Brasileiro. Essa manifestação militar foi um dos estopins da Revolução de 1964, que implantou o regime ditatorial no Brasil por vários anos.

A Revolta dos Marinheiros ocorreu entre os dias 25 a 27 de março de 1964, no Rio de Janeiro e foi um conflito entre as altas autoridades da Marinha do Brasil e a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB).

Momento em que os fuzileiros navais foram enviados para desalojar seus colegas de farda. Mas…

No Brasil, a primeira metade na década de 1960 foi um período de grande mobilização de grupos como “estudantes, sindicalistas, políticos, artistas, camponeses organizados, comunistas e outros. Como parte dessa agitação social e vinculados às demais forças, surgiram movimentos nos membros formadores dos grupos de baixa patente nas Forças Armadas, como sargentos, cabos e soldados. Eles eram tipicamente esquerdistas, com ideologia nacionalista e reformista. Foram organizados em associações de classe, incluindo a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil,

vários deles aderiram ao movimentro e largaram suas armas!

A AMFNB fez parte dos movimentos dos militares de baixa patente no início da década de 1960, onde também figura a revolta dos sargentos do Exército e da Marinha em 1963, da qual participaram muitos de seus integrantes. Era uma associação de classe para uma categoria pobre, com condições de trabalho difíceis, privada de direitos como o voto e o casamento, e marcada pela extrema diferença social em relação aos oficiais das Forças Armadas, situação que inclusive perdura até hoje!

A AMFNB foi fundada 25 de março de 1962 por marinheiros e fuzileiros navais e em 1964 seu presidente era José Anselmo dos Santos, o conhecido “Cabo Anselmo”.

Plenária dos marinheiros e fuzileiros navais durante o movimento. Ao microfone uma das principais lideranças, o marinheiro José Anselmo dos Santos.

Nesses dois anos essa associação conquistou milhares de membros e uma liderança mais combativa, aproximando-se do presidente João Melchior Marques Goulart, o Jango, e de organizações de esquerda, além de se interessar por questões externas à corporação, como as reformas de base.

A entidade encontrou hostilidade por parte dos oficiais da Marinha sobre a questão da indisciplina militar. Sua politização não foi tolerada, ao contrário das atividades políticas do funcionalismo.

Ocupação da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro pelos marinheiros e fuzileiros navais.

O aniversário de dois anos da Associação, no dia 25, foi comemorado no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, na Rua Ana Neri, 152, bairro de Benfica. Cerca de dois mil marinheiros estavam no local, quando o então ministro da Marinha, Sílvio Mota, ordenou a prisão dos 40 organizadores do evento, por declaração proferida no dia 20. Em reação, os marinheiros se recusaram a abandonar o local até o cumprimento de uma série de demandas.

O ministro da Marinha, Silvio Mota, decretou prontidão estrita, o que exigia a presença de marinheiros em suas unidades, mas eles desobedeceram e ficaram na sede do Sindicato.

Tropas da Polícia do Exército na hora do almoço, ou rancho, agaurdando o desfecho das negociações.

Essa desobediência não constituiu um movimento armado. No dia 26, o ministro queria invadir o sindicato com fuzileiros navais reforçados por tropas do exército.

Vinte e cinco soldados da tropa enviada pelo ministro para desmobilizar o protesto resolveram depor as armas e aderir ao motim. O comandante dos fuzileiros navais, almirante Cândido Aragão, foi exonerado por sua recusa de realizar o ataque. Vale ressaltar que a esquerda em geral era a favor dos rebeldes, enquanto a oficialidade era contra. Uma segunda operação de retirada dos amotinados, mas foi cancelada.

As mulheres dos amotinados apoiaram intensamente seus companheiros, até porque uma das reivindicações desses militares era a possibilidade dos praças das Forças Armadas contrairem matrimônio.

O presidente João Goulart voltou às pressas de São Borja para o Rio de Janeiro, nomeou Paulo Mário da Cunha Rodrigues como novo ministro no lugar de Sílvio Mota, e assumiu as negociações. Na manhã do dia 27, ele acertou a saída dos amotinados e, à tarde, declarou a anistia dos marujos.

O motim saía vitorioso e as Forças Armadas afrontadas. A ação de Goulart foi duramente criticada pela oposição e visto pelas autoridades como conivente com a quebra da disciplina militar.

Na rua outras tropas bem armadas aguardam o desfecho da situação.

Além disso a revolta dos marinheiros unificou muitos militares contra Goulart, fragilizou o governo e forneceu às lideranças que conspiravam contra Jango o pretexto para sustentarem a denúncia de ilegalidade do presidente. Enquanto isso, o horizonte do golpe ficava perigosamente mais próximo e no final do mês de março os militares derrubaram Jango.

Fim do movimento e a retirada dos marinheiros e fuzileiros em viaturas do Exército.

O episódio da revolta dos marinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro está relacionado com a Revolta de Chibata de 1910, como se sentiu na época, e foi seguida da punição dos envolvidos. Outras consequências foi que muitos dos punidos participaram da luta armada contra a ditadura militar. Entretanto, a longo prazo, ocorreu o aperfeiçoamento das condições dos praças da Marinha.

Poucos dias depois do fim do movimento dos marinheiros e fuzileiros navais, novamente as viaturas militares deixaram os quartéis para ajudarem na deflagração do Golpe de Estado de 31 de março de 1964.

A revolta é frequentemente acusada de ser obra de agentes provocadores (especialmente o “Cabo Anselmo”) a serviço dos golpistas que derrubaram Goulart, o que tem sido contestado por historiadores.

José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, é ainda hoje o mais conhecido informante a serviço da Marinha e da CIA durante a Ditadura Militar.

Fonte – https://riomemoritokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com.br/memoria/revolta-dos-marinheiros/

O BRADO DA CASERNA

Flagrante da rebelião dos sargentos da Marinha e da Aeronáutica, Brasília, setembro de 1963.

REVOLTAS DE MARINHEIROS, SOLDADOS E SARGENTOS FORAM COMUNS NA NOSSA HISTÓRIA: DAS REBELIÕES CONTRA OS CASTIGOS CRUÉIS ÀS LUTAS PELO DIREITO À ORGANIZAÇÃO

Em 1910, um relatório do Ministério da Marinha afirmava que a maior fonte de alistamento de seu pessoal era encontrada “nos xadrezes da polícia”. No Exército, a situação não era muito diferente, pois nossas Forças Armadas se constituíram inicialmente segundo o modelo europeu de recrutamento: os oficiais eram escolhidos na nobreza e as praças nas classes baixas. Assim se pretendia garantir a lealdade dos oficiais ao governo e às classes dirigentes e dificultar a integração do Exército como uma instituição que pudesse assumir o seu próprio papel político.

Com esse tipo de recrutamento, o clima nos quartéis e navios era formado por uma grande indisciplina e constantes ameaças de deserção, combatidas com castigos cruéis. As surras, abolidas por lei de 1874, continuavam. A espada

sem corte apenas foi substituída pela vara de marmelo no Exército e pela chibata na Marinha.

É por isso que o protesto contra os castigos fazia parte das duas revoltas de subalternos da Marinha que explodiram no início do governo Floriano Peixoto (1891-1894). A Revolta do Encouraçado 1º de Março, ocorrida em 13 de dezembro de 1891, teve como motivo declarado a exigência de substituição de alguns oficiais por causa de seu “excessivo rigor”. Em 19 de janeiro de 1892, o sargento Silvino Honório de Macedo lidera outra rebelião, que leva à tomada da Fortaleza de Santa Cruz, prisão militar onde estavam 60 marinheiros presos na revolta anterior. A Fortaleza de Lage aderiu à revolta, mas navios de guerra e tropas do Exército cercaram as fortalezas e, depois de choques armados, os amotinados se renderam.

João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata.

A Marinha brasileira, nos primeiros anos do século 20, contava com embarcações que exigiam técnicas sofisticadas de navegação. Mas nos modernos encouraçados, comprados aos ingleses, ainda reinava a chibata. Em 22 de novembro de 1910, depois de assistirem à aplicação de um castigo particularmente cruel, os marinheiros do encouraçado Minas Gerais (um dos maiores do mundo), comandados pelo marinheiro negro João Cândido (80% dos tripulantes da Armada eram negros e mulatos), rebelaram-se e tomaram a embarcação. Aderiram mais dois encouraçados (São Paulo e Deodoro) e um cruzador (Bahia), todos na baia da Guanabara.

Devido ao poder de fogo dos navios rebelados, o governo resolveu negociar e prometeu uma anistia. Mais tarde, porém, depois que os marinheiros entregaram os navios e depam as armas, o governo prendeu os líderes do levante. Muitos morreram nas prisões ou na Amazônia, para onde foram enviados. João Cândido foi um dos sobreviventes. Ele trabalhou até os 70 anos na estiva do Rio de Janeiro, morrendo em 1969, na miséria.

A Rebelião dos Sargentos de 1915 foi a primeira que apresentou reivindicações específicas do grupo, pretendiam acabar com as diferentes classes de sargentos no quadro do Exército para unificar os vencimentos e a estabilidade nos postos. Duas novas tentativas de rebelião de sargentos foram reprimidas em janeiro e março de 1916.

O Movimento de 1935 Marcou a Vida do País

Nesse mesmo ano, depois de intensa campanha, entrou em vigor uma lei de 1908 estabelecendo o recrutamento universal. Como consequência, foi extinta a Guarda Nacional, até então reservada às classes altas, e encerrada a dualidade de serviço militar. Mas, no interior das Forças Armadas, continuava a haver duas carreiras distintas. Entre oficiais e praças há um ponto de ruptura na linha hierárquica vertical, não podendo os sargentos e praças ascender ao campo dos oficiais.

Notícia da rebelião dos srgentos, de 1915.

Esse é o limite da carreira profissional para aqueles que vêm de baixo. E são os sargentos que estão no ponto de quebra. Para eles ficava claro o caráter ilusório da retórica que falava na igualdade e em um destino comum. A modernização do Exército, que se seguiu à Revolução de 1930, ava pela profissionalização dos oficiais, mas mantinha a exclusão dos sargentos da carreira superior. Assim, não é de surpreender que as revoltas se multiplicassem de Norte a Sul. As pesquisadoras Lúcia Lahmeyer e Vanda Maria Ribeiro da Costa estudaram 88 movimentos militares entre outubro de 1930 e 1939. Destes, 33 tiveram participação principal de praças.

Em todo o País, aqueles foram anos de intensa agitação política e social, que se refletia nos quartéis. Tanto a Ação Integralista Brasileira (AIB) quanto a Aliança Nacional Libertadora (ANL), organizada pelo Partido Comunista do Brasil, encontravam neles fértil campo de atuação. A primeira conseguiu seus adeptos principalmente entre a oficialidade. As praças eram atraídas pela esquerda,

que a elas se dirigiam denunciando suas condições de vida e prometendo um novo Exército, mais democrático.

Intentona Comunista de Natal de 23 de novembro de 1935 foi notícia em todo mundo, como neste material publicado em um jornal dos Estados Unidos.

De todos os movimentos, foram os que eclodiram em Natal, Recife e Rio de Janeiro, em novembro de 1935, que marcaram mais profundamente a história do País. Liderados pela ANL, constituíram uma tentativa insurrecional e, depois de derrotados, serviram de pretexto para o golpe de Estado que gerou o Estado Novo (1937) e para destilar um anticomunismo doentio nas Forças Armadas. Neles, além de tenentes e capitães, tiveram participação destacada o cabo Giocondo Dias, em Natal, o sargento Gregório Bezerra, em Recife, e o cabo David Capistrano, no Rio de Janeiro.

Como consequência da repressão que se seguiu, o Exército terminou a década de 1930 sólido e coeso como nunca estivera. Entre 1940 e 1945 ocorreram apenas seis movimentos militares e só um de praças. Mas, nas novas condições políticas surgidas com o fim do Estado Novo, em 1945, o movimento dos sargentos renasceu e sua organização aumentou, espalhando-se pelos quartéis de todo o País. Datam dessa época os clubes de sargentos, formados em vários Estados.

Na luta pela posse do vice-presidente João Goulart, em agosto de 1961, chegaram a tomar duas bases aéreas (Belém e Porto Alegre), prendendo os oficiais e imobilizando os aviões.

Setores Mais Radicalizados Fundam o MNR

No clima de polarização política e de conflito social aberto que marcou o governo Goulart, ocorreram vários movimentos de praças, mas dois se destacaram. Em 12 de setembro de 1963, cerca de 600 sargentos das três Armas cercaram os principais edifícios do governo, em Brasília, protestando contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal que mantinha a inelegibilidade dos sargentos e cassava os eleitos em 1962.

Blindado do Exército diante do prédio do extinto Ministério da Marinha, durante a rebelião dos sargentos. Brasília, setembro de 1963.

O segundo iniciou-se em 25 de março de 1964, quando, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, reuniu-se uma assembleia comemorativa do segundo aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, que lutava por reivindicações tais como o direito de casar, a permissão para vestir roupas civis fora do serviço e melhoria dos soldos. O almirante Sílvio Mota, ministro da Marinha mandou prender os marinheiros e dissolver a assembleia. Mas os fuzileiros navais enviados aderiram ao movimento. A crise provocou a queda do ministro e Goulart não puniu os revoltosos.

Os dois episódios foram utilizados pelos militares golpistas para convencer oficiais legalistas da necessidade de derrubar um governo que, segundo eles, ameaçava destruir a hierarquia das Forças Armadas. Depois do golpe, os setores mais radicalizados do movimento de sargentos e marinheiros, excluídos das Forças Armadas, deram origem ao MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), a primeira organização a tentar a luta armada contra o Regime Militar.

Para os que permaneceram nas corporações, os problemas continuavam, mas só quando a sociedade reconquistou um espaço mais livre para manifestar seu descontentamento os movimentos reivindicatórios dos soldados puderam aflorar.

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Militares da Polícia Militar da Bahia, na saída de uma missa em Salvador, ocorrida para honrar um colega morto durante a greve de outubro de 1981.

A greve da Polícia Militar de Salvador, Bahia, em março de 1981, envolvendo 10.500 oficiais e soldados que exigiam equiparação salarial com o Exército, e diversas manifestações ocorridas depois da posse dos governadores da oposição, em 1983, foram definidos naquela época como os sinais de uma nova fase de movimentação e organização dos sargentos, soldados e marinheiros de nossas Forças Armadas.

FONTE – Retratos do Brasil (Da Monarquia ao Regime Militar), 1985, Editora Três / Editora Política.  

A GUERRA DA LAGOSTA – O QUE FOI, COMO ACONTECEU, A ATUAÇÃO E OS PROBLEMAS DA MARINHA DO BRASIL

Essa Esquecida Crise Entre o Brasil e a França, Que se Prolongou de 1961 a 1963 e Cujo Palco Foi Próximo ao Litoral Nordestino, É Mais um Exemplo, Dentre Vários Existentes na História Brasileira, de Como o Nosso País é Dependente de Suas Forças Armadas Para Garantir Sua Soberania e Defender os Seus Interesses. Isto Era Uma Verdade Naquela Época. No Mundo Atual é Mais do Que a Garantia da Sobrevivência.

Fontes – Artigo publicado originalmente na revista impressa Forças de Defesa número oito e dos sítios https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/ https://www.fotosdefatos.com/2019/12/a-guerra-da-lagosta.html

O navio de guerra da Marinha sa Tartu é sobrevoado por um obsoleto RB-17G da FAB – Fonte – Wikipedia

O céu, meio encoberto, tornava aquela noite ainda mais escura. Com a brisa que soprava sobre a superestrutura, graças ao vento relativo, a temperatura era agradável para os atentos vigias noturnos. Contrastando com a plácida noite, o “clima” esquentava no interior do Centro de Informações de Combate (CIC) do contratorpedeiro Paraná da Marinha do Brasil (MB), com muita tensão. Focados nas telas repetidoras dos radares, os operadores acompanhavam cada irradiação das antenas com o propósito de identificar um alvo em específico: escorteur d’escadre anti-aerien (escolta de esquadra antiaéreo) Tartu (D636), da Marine Nationale, a Marinha sa, também conhecida como “La Royale”.

O indesejado navio rumava para a costa do Nordeste do Brasil para defender pescadores ses que atuavam ilegalmente na plataforma continental brasileira. Ei vinham por ordem direta do presidente francês da época, o mítico general Charles de Gaulle, o herói máximo da França na Segunda Guerra.

O mítico general Charles de Gaulle, o herói máximo da França na Segunda Guerra – Fonte – BN..

Sozinho, o Tartu não era uma grande ameaça, mas bastava uma atitude precipitada que toda uma frota de navios de combate ses, que estava na Costa Oeste da África com o poderoso porta-aviões Clemenceau, que, atingiria o litoral do Nordeste brasileiro em aproximadamente três dias.

Às quatro horas da madrugada o pessoal do “quarto d’alva” assumiu o serviço e aqueles que estavam em seus postos, desde a meia noite, foram descansar. Ou pelo menos tentaram. Todos a bordo do Paraná tinham ciência de suas limitações, tanto materiais como de adestramento. Mas o que mais tirava o sono dos homens era a quantidade de munição a bordo, suficiente para apenas meia hora de combate. Mesmo com todas essas dificuldades, eles procurariam defender um recurso natural de propriedade nacional – a lagosta da plataforma continental.

Era o prenúncio do que ficaria conhecido como a Guerra da Lagosta. Naquele momento a diplomacia falhou e a situação teve que ser decidida por uma exibição de força naval.

Surge o interesse pela lagosta

Pescadores de Lagosta do Rio Grande do Norte – Fonte – BN.

Foi no início da década de 1960 que surgiu um maior interesse de armadores e pescadores do porto pesqueiro de Camaret, na costa sa da Bretanha, pela lagosta existente na costa do Nordeste brasileiro. Uma delegação foi enviada a Recife para negociar a vinda de barcos de pesca com o intuito de realizar pesquisas sobre viveiros de lagosta. A autorização de pesquisa foi emitida em março 1961, válida por 180 dias. Esta licença contemplava apenas três embarcações, conforme solicitação sa.

No entanto, autoridades brasileiras já estavam preocupadas quanto à real intenção daqueles pescadores. Foi decidido que representantes da Marinha do Brasil embarcariam nos pesqueiros para atuar como fiscais. Após alguns embarques, os militares constataram que os navios estavam realmente capturando lagosta em larga escala e realizando pesca predatória com arrasto. Além disso, a licença de pesquisa emitida limitava-se a três barcos e foram enviados quatro. A partir do relatório dos militares embarcados, decidiu-se pelo cancelamento da licença e o último pesqueiro partiu de volta à França no final de abril de 1961.

Em novembro, foi solicitada uma nova licença para pesquisas e experiências no litoral nordestino. Desta vez foi argumentado que esse trabalho seria realizado na plataforma continental, fora das águas territoriais brasileiras. Assim, uma nova leva de pesqueiros ses chegou ao litoral nordestino no final de 1961.

O “inimigo” – Pescadores ses da Bretanha – Fonte – BN.

A Captura, Ou Apresamento, de Navios ses Realizados Pela Marinha do Brasil


Os desentendimentos começaram logo no início de 1962. No dia 2 de janeiro a corveta Ipiranga da apresou o pesqueiro Cassiopée, a cerca de dez milhas da costa, por estar capturando lagosta sem autorização do Governo Brasileiro. Pouco tempo depois, a corveta Purus avistou dois pesqueiros (Françoise Christine e Lonk Ael) próximos à costa do Rio Grande do Norte, mas por determinação do Estado Maior da Armada (EMA), os navios não foram apresados.

Com o apresamento do Cassiopée, a questão antes mais restrita aos interesses de pescadores ses ou a envolver mais o próprio Governo Francês, gerando uma batalha diplomática com o Governo Brasileiro que se estendeu por todo o ano de 1962. O Brasil sustentava a tese de que a lagosta era recurso econômico de sua plataforma continental, cabendo somente aos brasileiros a emissão de autorização de captura do crustáceo. A França, por seu lado, contestava o posicionamento brasileiro baseando-se na Convenção de Genebra de 1958, que estabelecia as bases para pesca em alto mar. É importante destacar que nenhum dos dois países tinha assinado tal convenção.

Navio de guerra próximo a barco de pesca – Fonte – BN

Durante as negociações para se estabelecer uma forma de “modus vivendi” sobre o crustáceo, a França argumentava que a lagosta se deslocava de um lado para o outro dando saltos e, portanto, deveria ser considerada como peixe e não um recurso da plataforma continental. Segundo o comandante Paulo de Castro Moreira da Silva da Marinha do Brasil a argumentação era fraca e, ironicamente, ele disse: “por analogia, se lagosta é peixe porque se desloca dando saltos então o canguru é uma ave.”

A batalha diplomática não intimidou os pesqueiros ses, e muito menos reduziu a ação dos navios da nossa Marinha. O contratorpedeiro Babitonga apresou o pesqueiro Plomarch no dia 14 de junho e o Lonk Ael no dia 10 de julho ao longo do litoral do Rio Grande do Norte e a corveta Ipiranga os pesqueiros Folgor e Françoise Christine em agosto do mesmo ano no litoral cearense. Os capitães dos barcos eram orientados quanto à irregularidade cometida e “convidados” a um termo de compromisso para não mais voltar à costa brasileira (embora muitos retornassem).

As corvetas da classe “Imperial Marinheiro” tiveram papel de destaque durante as capturas ocorridas em 1962. Na foto a Ipiranga (V17), responsável pelo primeiro apresamento em 2 de janeiro de 1962 – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

No início de 1963, uma missão sa chegou ao Brasil com o intuito de negociar a questão da pesca da lagosta, bem como estabelecer as bases comerciais de um possível acordo binacional. Esta mesma missão informou que dois barcos de pesca já se dirigiam para o litoral brasileiro. Por meio do Ministério das Relações Exteriores, o Brasil respondeu que a permissão não seria dada aos barcos, solicitando que o Governo Francês não permitisse a vinda destes para não prejudicar as negociações em curso. A França não só confirmou a vinda dos dois barcos, como também anunciou a partida de outros, independentemente da ameaça de serem apresados.

Sabendo da vinda de pesqueiros ses para o litoral nordestino (sem a devida autorização), a Marinha do Brasil colocou em alerta os seus navios que executavam patrulha na área. No dia 30 de janeiro, a corveta Forte de Coimbra detectou a presença de três pesqueiros estrangeiros e solicitou que os comandantes dos mesmos rumassem para Natal. Após a resposta negativa, a corveta recebeu instruções de terra para usar a “força na medida do necessário”. Possivelmente os ses não entendiam português, mas o soar do alarme de “postos de combate” e a visão da tripulação da corveta guarnecendo as peças de artilharia fez os comandantes mudarem de ideia.

Navio de pesca de lagosta francês no litoral nordestino – Fonte – BN

No dia 5 de fevereiro os barcos e suas respectivas cargas foram liberados e, por intervenção do presidente do Brasil, João Goulart, uma autorização para captura da lagosta foi emitida para os pesqueiros no dia 8. Porém, por força da opinião pública e de pressões políticas (principalmente vindas no Nordeste), o Governo Brasileiro teve que voltar atrás e cancelar a autorização. Essa mudança de atitude despertou a ira de Charles de Gaulle. Alguns atribuem a este episódio a origem da frase:

“LE BRÉSIL N’EST PAS UN PAYS SERIEUX” (O BRASIL NÃO É UM PAÍS SÉRIO)

Já numa outra versão dessa história o embaixador brasileiro em Paris, Carlos Alves de Souza Filho, afirmou em seu livro de memórias que a frase foi dita por ele numa entrevista a um repórter brasileiro.

De qualquer forma, as relações com o Governo Francês, que já não eram boas, degradaram-se rapidamente após a notícia da suspensão da autorização. A reação foi enérgica e desproporcional à situação. Por ordem do presidente de Gaulle, um navio de guerra francês seria enviado para proteger os barcos pesqueiros. A diplomacia estava em xeque e uma escalada militar começava a tomar forma.

A Força Naval sa

A força naval sa envolvida nessa crise. Dessas naves apenas duas efetivamente se aproximaram da costa nordestina e o resto ficou na costa ocidental africana, pronta para intervir se fosse necessário – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

No dia 11 de fevereiro de 1963, partiu de Toulon (França) uma Força-Tarefa capitaneada pelo porta-aviões Clemenceau. Juntamente com ele estavam o cruzador De Grasse, os contratorpedeiros Cassard, Jaureguiberry e Tartu, as corvetas Le Picard, Le Gascon, L’Agenais, Le Béarnais, Le Vendéen, o navio-tanque La Baise e o Aviso Paul Goffeny. A princípio, deveria ser somente mais uma missão pela Costa Oeste da África para mostrar a bandeira tricolor e realizar exercícios de rotina.

A bordo do Clemenceau estavam aeronaves Alizé da esquadrilha 4F, jatos Aquilon da 16F e alguns helicópteros S58. Naquela época a força aérea da Marinha da França, a chamada “Aeronavale”, ainda não tinha adquirido os caças F-8 Crusader, embora testes com uma aeronave proveniente do porta-aviões norte-americano USS Saratoga tivessem ocorrido no primeiro semestre de 1962. O papel de caça da frota era exercido pelos velhos Aquilon (versão do Sea Venom fabricada sob licença na França), num de seus últimos embarques operacionais com a “Aeronavale”. Os Etendard IV não estavam plenamente operacionais nas atividades embarcadas e o primeiro exercício com estes jatos estava programado para maio daquele ano.

O De Grasse era o primeiro de uma classe homônima de três cruzadores. Esta classe era formada por escoltas antiaéreas que deslocavam pouco mais de 9.000 toneladas. Possuíam oito reparos duplos de canhões de 127 mm e 10 reparos duplos de canhões de 57 mm. Já os contratorpedeiros eram da classe T47/T53, também com ênfase na defesa antiaérea. As cinco escoltas menores eram compostas por fragatas leves (denominadas “escorteur rapide” na Marinha sa) da classe E52 especializadas em ações antissubmarino.

Do outro lado do Oceano Atlântico, a Força-Tarefa sa realizava exercícios navais. No seu comando estava o porta-aviões Clemenceau (irmão do Foch, que décadas depois seria adquirido pelo Brasil e renomeado São Paulo) equipado com jatos Sud-Est Aquilon 202/203 (versão sa do De Havilland Sea Venom) – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Em 21 de fevereiro, estes navios chegaram a cidade de Dakar, no Senegal e, posteriormente, seguiram para a cidade de Abidjan, na Costa do Marfim. Ambos os países africanos eram ex-colônias sas. Porém, uma das escoltas do Clemenceau tomou rumo diferente. Era o Tartu, que solitariamente seguiu para a costa brasileira conforme instruções do Governo Francês.

Essas instruções eram: Controlar o movimento dos pesqueiros a fim de que não se aproximassem do limite de 12 milhas e assegurar aos mesmos pesqueiros a continuação da pesca de lagosta além daquele limite.

Estas informações foram transmitidas ao embaixador brasileiro em Paris no próprio dia 21, quinta-feira. Outra informação, sem confirmação, indicava também o deslocamento do cruzador De Grasse na companhia do Tartu. De qualquer forma, as demais unidades sas na costa ocidental da África estavam tão perto do local da crise, que não seria necessário mais do que três dias de navegação para chegarem à Natal. No caso das aeronaves embarcadas, apenas algumas horas de voo.

O Tartu – Fonte – Marine Nationale

Do outro lado do Oceano Atlântico, a Força-Tarefa sa realizava exercícios navais. No seu comando estava o porta-aviões Clemenceau (irmão do Foch, que décadas depois seria adquirido pelo Brasil e renomeado São Paulo) equipado com jatos Sud-Est Aquilon 202/203 (versão sa do De Havilland Sea Venom)

Começa a Mobilização

Na noite de 21 de fevereiro (quinta-feira), o presidente João Goulart reuniu-se com os ministros da Marinha do Brasil e da Força Aérea Brasileira (FAB) em Brasília. Naquela época, as duas forças militares não possuíam um bom relacionamento, pois a disputa pela operação de aeronaves a bordo do porta aviões Minas Gerais ainda existia. Posta de lado, esta questão não atrapalhou a elaboração de um plano que visava o reforço das unidades militares do Nordeste com o envio de pessoal e equipamento a partir de bases do Rio de Janeiro. Esquadrões da FAB e unidades de superfície da Marinha deveriam ser deslocadas para a região o mais breve possível.

A mobilização efetiva ocorreu no dia 22, uma sexta-feira, véspera de Carnaval. O ministro da Marinha determinou a preparação de um Grupo-Tarefa (GT) composto por um cruzador e quatro contratorpedeiros. Este GT deveria seguir imediatamente para Recife. Outro grupo composto por um cruzador, alguns contratorpedeiros e submarinos, deveria seguir viagem para o Nordeste também, assim que os navios estivessem preparados. Para Salvador, deveriam partir o navio-oficina Belmonte e o dique flutuante Ceará. A mobilização seguiria em frente sob sigilo máximo. No caso de indagações, a resposta deveria ser “exercício programado”.

No dia 23 (sábado de Carnaval) o Conselho de Segurança Nacional reuniu-se no Palácio do Itamaraty. O ministro das Relações Exteriores presidiu a reunião na ausência do presidente (então em São Borja/RS). Após tomarem conhecimento dos últimos movimentos diplomáticos, os participantes aram a discutir as medidas a implementar. Dentre elas, a divulgação de declarações à imprensa com o intuito de mobilizar a opinião nacional para a grave situação enfrentada.

Desde a primeira hora em que o Estado Maior da Armada (EMA) soube do deslocamento de um navio de guerra francês para a costa brasileira, as Estações Radiogoniométricas de Alta Frequência (ERGAF) do Pina (Recife) e de Salinas da Margarida (Bahia) aram a rastrear as emissões eletromagnéticas de todos os navios ses navegando no Atlântico.

Essa crise aconteceu em pleno Carnaval de 1963 e, como não poderia deixar de ser, houve muita ironia nos bailes de carnaval em todo o país com esse tema – Fonte – BN

Os preparativos da Marinha

Inicialmente foi necessário convocar, o mais breve possível, oficiais e praças para guarnecerem os navios, pois a maioria estava de férias. Havia também necessidade de adquirir sobressalentes e até material de uso comum. Para piorar a logística, um tanque arrendado junto à companhia Esso em Recife tinha capacidade para apenas 6.000 toneladas de combustível, quantidade insuficiente para atender todo o GT que se deslocaria para lá. Como se não bastasse, a Esquadra naquela época não contava com um navio-tanque e foi necessário arrendar às pressas um da Petrobras (o Navio Tanque Mato Grosso, com capacidade de 7.000 toneladas).

Em relação ao material flutuante, quanto aos contratorpedeiros (CT), os navios em melhores condições eram os quatro da classe “Pará” (exceção feita ao Paraíba, cujas caldeiras estavam em manutenção), originariamente da classe “Fletcher” norte-americana da II Guerra Mundial, recebidos poucos anos antes por acordo militar com os Estados Unidos. Estes poderiam iniciar a viagem de imediato, assim como um dos três classe “M” construídos no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (AMRJ) vinte anos antes, o Greenhalgh.

Os quatro contratorpedeiros da classe Fletcher, como o Pará (D27), eram os melhores navios da MB em 1963. Eles foram adquiridos por empréstimo junto aos Estados Unidos e o contrato proibia o uso desses navios contra aliados dos Estados Unidos – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Alguns dos seis contratorpedeiros da classe “A” (construídos no AMRJ e incorporados entre 1949 e 1960) também poderiam ser usados, caso fosse necessário. Porém, a situação era crítica para os oito contratorpedeiros de escolta da classe “Bertioga” (construídos nos Estados unidos na Segunda Guerra e recebidos pelo Brasil durante o conflito). Três dessas naves, o Bracuí, Beberibe e Bocaina, estavam docados, ou seja, sofrendo reparos fora da água, em docas secas. Enquanto outros dois, o Babitonga e o Bauru, preparavam-se para entrar no Período Normal de Reparos (PNR). Dos restantes, o Benevente e o Bertioga tinham problemas nos eixos e o Baependi possuía restrições de velocidade.

A situação dos submarinos não era muito melhor. O Humaitá foi descartado de imediato, pois não tinha condições de se mover. Já o Riachuelo necessitava de substituição total da sua rede de pressão, mas era possível colocá-lo em movimento em dez dias (de acordo com as primeiras análises). Ambos eram veteranos da Marinha dos Estados Unidos, ainda da época da Segunda Guerra Mundial e transferidos em 1957 para o Brasil.

O estado dos dois cruzadores, também de origem norte-americana e veteranos da Segunda Guerra, era preocupante. Os principais problemas com o Tamandaré estavam associados aos grupos destilatórios, para utilização de água doce. Estimava-se que o mesmo não poderia ser reparado em menos de 15 dias. O Barroso poderia navegar, mas somente com quatro das suas oito caldeiras (o mínimo necessário para colocá-lo em movimento eram três.

Dois contratorpedeiros brasileiros envolvidos na crise – Fonte – BN

O quadro operativo dos navios da esquadra, bem como do armamento e munição, foram expostos na reunião do Almirantado realizada a portas fechadas na tarde do dia 22.

A situação era a seguinte: Munição – Situação dramática. A dotação dos navios da Esquadra (dotação de paz) poderia ser consumida em menos de trinta minutos durante um engajamento. Nos depósitos do Centro de Munição da Marinha não existia munição suficiente para recomplementar a dotação de paz de todos os navios (exceção feita aos projéteis de 20 mm). Para completar todos os navios com dotação de guerra, seria necessário o dispêndio de aproximadamente um milhão de dólares. Mesmo que a munição estivesse disponível, os barcos utilizados para a sua distribuição, conhecidos como “batelões”, estavam em péssimo estado e não existiam em número suficiente para um atendimento de urgência.

Equipamentos de abandono de navios em caso de afundamento e salvamento – Eram itens extremamente críticos, geralmente com período de validade, e que deviam ser repostos periodicamente. Em função da crônica falta de verbas, muitos itens não atendiam ao número mínimo estipulado em acordos internacionais ou já estavam fora do período de validade. Foram liberadas, em caráter emergencial, verbas para a aquisição de 800 coletes salva-vidas, 49 balsas e 1.200 conjuntos de alimentação de sobrevivência, o que atenuou o problema.

Lanchas dos navios – Situação lastimável. Dos oito contratorpedeiros de escolta (uma lancha por navio), só a lancha do Babitonga funcionava. Das dezesseis lanchas existentes nos outros treze contratorpedeiros, apenas sete estavam em condições operacionais. Somando as lanchas dos dois cruzadores, somente três das dez estavam em bom estado. O recém-adquirido porta aviões Minas Gerais possuía duas lanchas operando de um total de seis.

Os P-15 Neptune ainda eram bons aviões de esclarecimento marítimo em 1963. Eles eram operados pelo 1º/7º GAV, baseado em Salvador – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Controle de Avarias de combate e estanqueidade de compartimentos – Somente os navios da classe “Pará” resistiriam a uma inspeção ligeira por possuírem equipamento completo e em bom estado. Os demais, principalmente os de construção nacional (classes “M” e “A”), seriam condenados operativamente e impedidos de se movimentar por não possuírem condições de segurança para navegar.

Esquadrões da FAB em alerta

Coube à FAB realizar missões de patrulha naval (esclarecimento marítimo) com aeronaves de longo alcance P-15 Neptune do 1º/7º Grupo de Aviação (1º/7º GAv). A unidade ou a realizar missões de patrulha com alcance de 500 milhas náuticas (cerca de 900km) a leste do arquipélago de Fernando de Noronha.

No Nordeste, a FAB ainda contava com os veteranos aviões B-17. Eram quadrimotores de fabricação norte-americana da época da Segunda Guerra, construídos originalmente como bombardeiros estratégicos de longo alcance e modificados para aviões de busca e salvamento nas versões SB-17G e RB-17G. A função dos B-17 era auxiliar as tarefas dos P-15 Neptune. Tinha base em Recife, Pernambuco e pertenciam ao 6º Grupo de Aviação (6º GAv). Não dispunham de equipamento especial para patrulhas marítimas, sendo o reconhecimento realizado visualmente. Por serem aviões ultraados, sua aposentadoria na FAB não demoraria muito.

O grande reforço viria da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, onde estava baseado o 1º Esquadrão do 1º Grupo de Aviação Embarcada (1º/1º GAE) e seus treze P-16 Tracker, aeronaves bimotoras recentemente incorporados. O Tracker entrou em atividade na Marinha dos Estados Unidos em 1954 e, no início da década de 1960, ainda era a aeronave de guerra antissubmarino embarcada mais moderna do mundo. Os aviões contavam com uma aparelhagem eletrônica bastante complexa para a época, incluindo radar de busca, radar do tipo Doppler, radar-altímetro de baixa altitude, sensor de detectação de anomalias magnéticas e sistema de contramedidas eletrônicas.

P-16 Tracker da FAB, do 1º Esquadrão do 1º Grupo de Aviação Embarcada (1º/1º GAE) – Fonte AE

A formação do Grupo-Tarefa

Sob a denominação “Operação Lagosta”, um GT deveria ser formado e enviado o mais breve possível para Recife. A ideia inicial de constituir o GT Vermelho 12.2 com o cruzador Tamandaré, quatro contratorpedeiros e, posteriormente, enviar outro cruzador e mais escoltas tão logo estivessem prontos, começou a se desfazer quando o estado dos navios foi apresentado.

Com diversos problemas nas caldeiras e nos grupos destilatórios, o Tamandaré foi descartado de imediato. O Pará, com problemas na bomba de alimentação principal e falta de pessoal para guarnecer o navio, teve sua saída adiada para a tarde do dia 24. Já o Greenhalgh, com avarias na maquinaria, só deixou o Rio de Janeiro na noite do dia seguinte (chegando a Recife na tarde do dia 28). Desta forma, o GT 12.2 partiu para a cidade de Recife às 3h27 da madrugada do dia 24 somente com os contratorpedeiros Paraná (onde seguia o Comandante do GT, contra-almirante Norton Demaria Boiteux) e Pernambuco.

Enquanto a Marinha do Brasil se mobilizava em pleno feriado, na embaixada dos Estados Unidos a movimentação era atípica para uma noite de Carnaval. Durante a madrugada, o adido naval dos Estados Unidos telefonou ao Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), solicitando uma audiência urgente. A contragosto e em companhia do seu ajudantes-de-ordens, o CEMA recebeu o militar norte-americano numa audiência curta e pouco amistosa.

Cruzador Tamandaré escoltado por quatro contratorpedeiros da classe “Pará” – Fonte Wikipedia

O adido naval foi logo indagado sobre o real motivo de uma audiência no meio da madrugada. O adido trazia uma mensagem do embaixador dos Estados Unidos. Este recebeu ordens diretas do Departamento de Estado para que os dois contratorpedeiros que partiram do Rio de Janeiro com destino ao Nordeste regressassem imediatamente. Segundo ele, a lei do Senado norte-americano que concedeu o empréstimo desses navios proibia o uso dos mesmos contra qualquer aliado dos Estados Unidos como a França.

Realmente, não só o Pernambuco e o Paraná, mas os outros dois contratorpedeiros da classe “Fletcher” (Pará e Paraíba) foram transferidos por empréstimo de cinco anos e, naquela época, ainda constavam na lista de unidades pertencentes à Marinha dos Estados Unidos. Esta era uma das facetas negativas dos acordos de transferência de material bélico daquele país para as Forças Armadas brasileiras.

Esquadra brasileira a caminho do Nordeste em 1963 – Fonte – BN

A resposta do CEMA foi a seguinte:

Peço ao ‘capitain’ para solicitar ao Exmo. Sr. Embaixador dos Estados Unidos que comunique ao seu Governo, em Washington, que, inspirado nos fundamentos do pan-americanismo, que tem como uma das principais fontes a Doutrina Monroe, formulada por um presidente dos Estados Unidos há 140 anos, o Brasil cortou relações diplomáticas, e depois, manteve o estado de beligerância com o Japão, em virtude da agressão ao território americano sofrido com o ataque a Pearl Harbor. O Brasil honrou o seu compromisso assumido por ocasião da Conferência de Havana em 1940, onde se declarou que um ataque por um Estado não americano contra qualquer Estado americano é considerado como ataque contra todos os Estados americanos. Sabemos que os Estados Unidos têm compromissos políticos e militares com a França em virtude do Tratado do Atlântico Norte, firmado em 1949. Entretanto, antes desse Tratado, os Estados Unidos em 1947, nesta cidade do Rio de Janeiro, lideraram a do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que teve como propósito prevenir e reprimir as ameaças e os atos de agressão a qualquer dos países da América, baseado nos princípios de solidariedade e cooperação interamericanas. Assim sendo, configurando a agressão sa, como anunciado em Paris, o Brasil espera que os Estados Unidos honrem os seus compromissos na defesa coletiva do continente americano declarando guerra contra a França, como o Brasil honrou seus compromissos declarando guerra contra os japoneses na II Guerra Mundial, sem nunca ter sido agredido por eles. E está dispensado … e pode se retirar.

O Tartu é localizado e acompanhado pela FAB

Enquanto o GT 12.2 seguia para Recife, os aviões da FAB procuravam pelos navios ses. Quando quatro P-16 chegaram a Recife no dia 24, os P-15 já realizavam missões de patrulha a partir de Salvador. Conforme planejado, os aviões do 1º GAE aram então a realizar voos de patrulha armado em rotas paralelas. Logo na manhã do dia 25, dois pesqueiros foram localizados próximos a Macau, Rio Grande do Norte. Com esta descoberta os P-16 deslocaram-se de Recife para Natal.

A cerca de 250 milhas náuticas (aproximadamente 450 km) a Noroeste de Natal, foi localizado um “grande navio escuro” que atuava como frigorífico, onde os pesqueiros desovavam sua pesca. Ao seu lado encontrava-se um navio tender para serviços de manutenção. Mas a grande descoberta ocorreu no dia 26 de janeiro. Patrulhando distante da costa, um P-15 detectou no radar um navio rumando para Fernando de Noronha. No dia seguinte, um B-17 do 6º GAv fez o reconhecimento fotográfico do navio Tartu da Marinha sa.

O navio de guerra francês ou a receber vigilância aérea constante e uma das missões foi a primeira de caráter noturno para os P-16 da FAB. Duas aeronaves voaram em formação aberta e a baixa altitude com todas as luzes apagadas e silêncio total no rádio. Para a aproximação do alvo, utilizaram seus equipamentos ivos de guerra eletrônica, que detectavam as emissões do radar de busca aérea do Tartu. Próximos ao navio, os aviões cerraram formação e baixaram para 100 pés de altitude (cerca de 30 metros) até que, praticamente sobre o navio francês, acionaram tudo que pudesse iluminá-lo. Foi uma surpresa total, e homens puderam ser vistos correndo pelo convés, como se estivessem assumindo postos de combate.

Dois P-16 da FAB sobre navios, durante a crise de 1963 – Fonte BN

Porém, normalmente a cobertura aérea era realizada a uma altura média de 1.000 pés (3.000 metros). Algumas vezes a tripulação do navio francês realizava exercícios de tiro, possivelmente tentando inibir as aeronaves brasileiras. Como resposta, os P-16 deixavam a área voando baixo e ando ao lado do Tartu, exibindo claramente seus foguetes.

Ainda no dia 26, o Pará juntou-se ao GT 12.2 e os contratorpedeiros atracaram no porto do Recife. Durante a travessia Rio a Recife as tripulações dos navios realizaram diversos exercícios com o propósito de aprimorar o treinamento. Também no mesmo dia, a estação radiogoniométrica de Pina interceptou uma mensagem do Tartu para os lagosteiros ses, marcando um ponto de encontro na manhã do dia 28. O ponto ficava a aproximadamente 100 milhas de distância de Recife. Em função da possível antecipação do Tartu, um avião da FAB sobrevoou o local já no dia 27. O navio foi localizado às 22h55 entre o litoral brasileiro e o arquipélago de Fernando de Noronha e a situação ficou tensa com o ar das horas.

A informação da aeronave da FAB antecipou a saída do GT 12.2. ava da meia-noite quando os contratorpedeiros Paraná e Pará deixaram o porto do Recife rumo ao ponto de encontro marcado pelo Tartu. O Pernambuco, com problemas, ficou no porto. A missão do GT era “vigiar os navios ses, informando os seus movimentos através do acompanhamento radar, fora do alcance visual”.

Foi uma madrugada de muitas expectativas. Na sede da 2ª Zona Aérea o movimento de oficiais superiores era intenso e, logo na manhã do dia 28, as emissoras de rádio já divulgavam os acontecimentos das últimas horas para a população apreensiva. O governo também acompanhava os acontecimentos de perto. Pairavam muitas dúvidas sobre a atitude do navio francês quando encontrasse os navios da Marinha do Brasil.

Outra fotografia do Tartu feita pela FAB – Fonte – BN

Encontro em alto-mar

As atenções estavam voltadas para o possível encontro do Paraná com o Tartu, que em muitos aspectos eram equivalentes. Os armamentos possuíam similaridades, a força propulsora (duas turbinas a vapor, quatro caldeiras e dois eixos), as potências desenvolvidas e a velocidade máxima eram semelhantes. Em relação aos sensores, o radar de busca combinada DRBV22A francês era equivalente ao SPS-6 dos classe “Pará”, mas o grande diferencial do navio francês era a combinação deste último com o radar DRBI, fornecendo um quadro tridimensional das ameaças aéreas.

A bordo do Paraná a tensão era grande. O navio navegava às escuras. Os operadores dos radares mantinham atenção total às telas repetidoras e os vigias noturnos redobravam a vigilância.

O contratorpedeiro Paraná (D29) foi o primeiro navio da Marinha do Brasil a fazer contato com o navio de guerra francês Tartu. O encontro ocorreu no dia 28 de fevereiro de 1963. – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

O dia raiou com forte neblina. ava das dez da manhã quando o Paraná estabeleceu contato radar com um alvo na superfície, a 36.000 jardas, marcação 330º. Tinha que ser o Tartu. As condições climáticas não permitiram identificação visual à distância. O Paraná, que navegava no rumo 000º, manobrou 20º para bombordo e aproximou-se do alvo. Antes de atingir a distância de 30.000 jardas (cerca de 27.500 metros), o navio ou a se comunicar por holofote. Depois dos cerimoniais marítimos, o Paraná aproximou-se a 27 nós (o Pará vinha logo atrás em velocidade reduzida) e, à distância de 14.400 jardas (cerca de 13 quilômetros), identificou o contato como o D636 Tartu, além de seis lagosteiros praticamente parados. Os contratorpedeiros brasileiros acompanharam os navios ses por algum tempo e monitoraram as frequências de rádio, depois se afastaram. Do alto, um P-15 da FAB também acompanhava os movimentos.

Deste dia em diante, foi estabelecida uma escala de patrulha com o propósito de manter sempre um navio próximo dos pesqueiros e outro à distância, podendo intervir quando necessário.

O cruzador Barroso (C11) era uma unidade de respeito numa época em que os mísseis navais ainda estavam em desenvolvimento. Embora seus quinze canhões de 6 polegadas representassem grande ameaça a outras unidades navais, durante a crise de 1963 o navio não dispunha de munição deste calibre. Além disso, ele sofria problemas de propulsão, geração de energia elétrica, racionamento de água potável e entupimento da rede de esgoto – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

A Marinha do Brasil envia mais navios

Antes do Paraná detectar o Tartu, o contratorpedeiro Araguari havia partido do Rio de Janeiro na madrugada do dia 27, rumo a Recife. Às 9h45 sofreu uma avaria no leme e um problema nas máquinas na altura de Cabo Frio, Rio de Janeiro, o que só foi resolvido às 14h. O navio chegou a Recife em 1º de março.

O cruzador Barroso partiu do AMRJ no Rio de Janeiro em 28 de fevereiro, após alguns reparos emergenciais, mas não estava preparado para uma missão como a que se impunha. A viagem começou com as caldeiras nº1, 2, 3 e 4 em funcionamento, permitindo 15 nós de velocidade (quase 28 km/h). Porém, a caldeira nº4, que tinha sido emergencialmente reparada no dia 26, apresentou um tubo perfurado e a velocidade foi reduzida para pouco mais de 10 nós (18,5 km/h). Técnicos do AMRJ estavam a bordo para auxiliar no reparo das demais caldeiras, mas ainda assim o navio participou de toda a comissão com apenas três em pleno funcionamento, o mínimo necessário para o navio se “arrastar” sobre o mar.

A situação dos armamentos e munições não era mais animadora. O Barroso não dispunha de munição para seus canhões principais (quinze armas de 6 polegadas, em cinco torres triplas) e, ainda que tivesse, a torre nº3 estava inoperante desde 1958, e as outras duas estavam sem o controle automático. Somente duas das seis diretoras de tiro funcionavam (que realizavam a mira dos canhões) e os canhões de 5 polegadas da bateria secundária estavam sem o controle automático da diretora.

Outro navio da Marinha do Brasil seguindo para a área da crise de 1963 – Fonte – BN

Para completar, outros problemas se acumulavam e tornavam a vida difícil no interior do navio. Um tanque de óleo combustível não era utilizado por apresentar vazamentos, dois tanques de água potável também estavam com furos para o mar, o que obrigou a tripulação a economizar água. O turbo gerador nº4 estava no AMRJ sofrendo reparos, o que reduzia a capacidade de geração de energia elétrica a bordo em 25%. Com todos estes problemas, incluindo o entupimento frequente das redes de esgoto e de combate a incêndio, o Barroso só foi capaz de chegar a Recife em 6 de março, após quase uma semana de viagem!

Na noite de 1º de março, o submarino Riachuelo, em companhia da corveta Imperial Marinheiro, transformada em navio de socorro e salvamento, zarparam para Recife e Natal respectivamente. Embora o Riachuelo estivesse equipado com torpedos Mk.23, nenhum deles possuía cabeça de combate, ou material para detonação. Coube à FTM (Fábrica de Torpedos da Marinha) encher nove cabeças de exercício com trotil (um tipo de explosivo), para que o submarino as recebesse em Recife, e rezar para que as mesmas funcionassem em combate.

Em 1963 a Flotilha de Submarinos resumia-se a dois navios (Humaitá e Riachuelo) empregados como unidades auxiliares de adestramento das unidades de superfície. A Marinha do Brasil não possuía torpedos com cabeça de combate e teve que improvisar durante a crise da lagosta. Mas após o episódio a Flotilha foi completamente remodelada – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Antes mesmo do submarino Riachuelo fazer-se ao mar, o contratorpedeiro Marcílio Dias desatracou do AMRJ, levando uma carga preciosa de torpedos Mk.15 para os navios classe “Pará”. Sua viagem a Recife foi cheia de percalços. No cair da noite de 2 de março teve uma avaria de máquinas, que foi reparada. Em 3 de março, o navio “apagou” e ficou sem propulsão por cinco horas. Reparos de emergência permitiram rumar para Ilhéus a fim de aguardar reboque. O Barroso veio ao seu socorro e decidiu-se aguardar a chegada da corveta Imperial Marinheiro para rebocá-lo.

No dia seguinte, 2 de março, foi a vez do cruzador Tamandaré partir do Rio de Janeiro. Mesmo com as caldeiras nº1, 2 e 4 necessitando de retubulação e as demais com vazamentos, o navio seguiu rumo ao Nordeste. No dia 3, suspenderam os contratorpedeiros Apa e Acre que, juntamente com o Marcílio Dias e o cruzador Tamandaré, constituíram o GT 12.4. Os navios ficaram provisoriamente baseados em Salvador devido ao congestionamento do porto do Recife e ao pequeno calado e a pouca infraestrutura dos portos de Natal e Cabedelo, na Paraíba.

Ponte de comando do contratorpedeiro Greenhalgh – Fonte – AN

Por ordem do EMA, a Força de Minagem e Varredura, composta pelos navios Javari, Juruá, Juruena e Jutaí, também foi deslocada para o Nordeste, chegando a Recife em 1º de março. Os contratorpedeiros de escolta Bertioga e Baependi, então executando pesquisas oceanográficas no Maranhão (Operação Equalant) para a Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN), também foram solicitados para apoiar a Operação Lagosta. Como pode se ver, tudo que flutuasse e atirasse estava se deslocando para o Nordeste.

O Tartu é substituído

A França resolveu enviar o Tartu de forma solitária. Mais cedo ou mais tarde, um navio-tanque teria que abastecê-lo ou outra unidade de combate seria enviada para substituí-lo. Caso o navio-tanque Baise deixasse o grupo do Clemenceau, este e os outros nove navios que o acompanhavam ficariam sem apoio. Sobrava então a opção de substituir o Tartu por outro navio equivalente, mas o substituto surpreendeu os brasileiros e até mesmo muitos ses: foi enviado o aviso Paul Goffeny, reconhecidamente um navio muito menos capaz em termos militares que o Tartu.

As estações radiogoniométricas aram a rastrear as emissões eletromagnéticas do Paul Goffeny e descobriu-se que o encontro entre o Tartu e o aviso francês ocorreria em 2 de março. O comandante do GT 12.2 ordenou que o contratorpedeiro Pará se dirigisse ao local provável do encontro. Às 9h15 um avião da FAB comunicou ao Pará que já orbitava sobre os navios ses e reou a posição. O contato visual do contratorpedeiro da Marinha do Brasil com os navios ses, que incluíam seis pesqueiros, ocorreu às 10h34. O Pará ou a acompanhá-los de longe e, às 12h59, o Tartu adotou o rumo 032º, em direção à África. Mesmo assim, o Pará permaneceu na região acompanhando a movimentação dos navios. No dia seguinte foi substituído pelo contratorpedeiro Pernambuco.

Uma mensagem do Tartu para Dakar solicitando o seu reabastecimento foi interceptada, indicando que o mesmo realmente se retirava da área. Para confirmar a informação, os P-15 acompanharam a viagem de retorno do Tartu por um longo tempo.

O contratorpedeiro Acre (D10) sendo reabastecido em alto mar pelo porta aviões Minas Gerais. A situação de alguns navios da classe “A” em 1963 era crítica. À época, a Marinha do Brasil privilegiava a manutenção da classe “Pará”, mais capaz que as classes “A” e “M” construídas no Brasil nas décadas anteriores.

A troca do Tartu pelo Paul Goffeny foi um grande alívio para os brasileiros, indicando que o Governo Francês havia recuado, mas não capitulado. O assunto perdeu destaque na imprensa, diminuindo de interesse para o povo francês. Somente entre os armadores e pescadores de Camaret houve uma revolta contra a atitude de seu governo.

Chegada dos reforços

O contratorpedeiro Marcílio Dias, rebocado pela corveta Imperial Marinheiro, fundeou em Salvador na noite de 5 de março, quando também atracaram em Salvador os contratorpedeiros Acre e Apa. Ambos deveriam receber os torpedos transportados pelo Marcílio Dias e levá-los a Recife, com o propósito de reá-los aos navios da classe “Pará”.

Após uma longa e tumultuada viagem, o cruzador Tamandaré chegou ao porto de Salvador no dia 7. O cruzador trazia a bordo ferramental necessário para o reparo das caldeiras do Barroso, então atracado em Recife. No entanto, os itens só foram encaminhados para Recife (via aérea) uma semana depois!

Barco de pesca francês fotografado pela FAB – Fonte – BN

Também no dia 7 o Acre e o Apa partiram para Recife com a carga de torpedos. Os dois contratorpedeiros chegaram ao porto de destino no dia seguinte, mas o Apa entrou em emergência. Além de estar com seus geradores elétricos (a diesel) inoperantes, também possuía pouca água de reserva, pois o maquinário utilizado para destilar água salgada não funcionou corretamente. Atracou ao lado do Pernambuco e teve início a transferência dos torpedos.

O complicado e difícil trabalho ocorreu durante a noite e sob o olhar de uma multidão de civis aglomerados numa praça em frente ao cais. Num certo momento, um dos torpedos caiu na água, atrasando a conclusão da operação. Em outro, a válvula de segurança da caldeira do Paraná liberou vapor, com um forte ruído que assustou a “plateia”.

Quadro geral da chamada Guerra da Lagosta – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Enquanto parte dos navios da Marinha na zona de operação sofria reparos de emergência, as unidades do GT 12.2 continuavam monitorando os pesqueiros ses e o Paul Goffeny.

Ainda em 7 de março um dos seis pesqueiros retirou-se da área. O que parecia ser mais um alívio, transformou-se em tensão quando surgiram notícias desencontradas sobre o navio de guerra Jaureguiberry (da mesma classe do Tartu) estar navegando rumo à costa brasileira. Porém, o navio tomou o rumo de Dakar e, no dia 8, mais um lagosteiro afastou-se do litoral brasileiro.

Prosseguia o revezamento dos navios brasileiros que monitoravam a área: no final da tarde do dia 9 o Araguari rendeu o Pará, que retornou a Recife. Na manhã do dia 10, o Paul Goffeny e os quatro lagosteiros restantes afastaram-se do Atol das Rocas, no rumo de Dakar. A informação foi confirmada por uma aeronave da FAB. Parecia ser o fim de um período de muita tensão.

Marinheiros brasileiros sinalizando opticamente – Fonte – BN

Posteriormente, soube-se que a decisão sa de deixar a área foi mais econômica do que política. Por ficarem fora da plataforma continental, os navios de pesca ficaram sem pescar por mais de um mês, acarretando grande prejuízo aos armadores.

Difícil Retorno

Na noite de 9 de março o EMA encaminhou ordem ao Comando-em-Chefe da Esquadra (ComenCh) para manter na área apenas um GT composto pelo cruzador Barroso e os contratorpedeiros Pará, Paraná, Greenhalgh e Marcílio Dias. O Baependi e o Bertioga seriam devolvidos à DHN para dar continuidade à Operação Equalant. Os demais navios deveriam retornar ao Rio de Janeiro.

Na manhã de 13 de março, partiram o Pernambuco (como nau capitânia, ou navio de comando da flotilha), o Apa, o Acre e o Araguari. No final da tarde o Acre, com sérios problemas, desincorporou-se do grupo com destino ao porto de Maceió, Alagoas.

E a Lagosta ficou – Fonte – BN

O Tamandaré e o Riachuelo partiram de Salvador e se juntaram ao grupo no final da tarde do dia 14. Na madrugada do dia seguinte, ao sul do Arquipélago de Abrolhos, o Apa apagou – antes de partir para o Nordeste, o navio havia sido retirado com urgência do dique Ceará e o reparo de solda nas costuras da chapa do tanque de reserva não foi bem executado, permitindo a entrada de água do mar. O Pernambuco foi prestar socorro, enquanto o Araguari e o Tamandaré seguiram viagem. A corveta Imperial Marinheiro, que partiu de Natal no dia 13, foi chamada para rebocar o Apa, mas este conseguiu restabelecer a propulsão e rumar para o porto de Vitória, Espirito Santo, antes da chegada da corveta.

No dia 16 de março, já próximo de Cabo Frio, foi a vez do Araguari apagar. O navio ficou sem propulsão por três horas, ao sabor da maré e envolto por denso nevoeiro. O problema foi posteriormente resolvido e o contratorpedeiro seguiu para o AMRJ, onde chegou no início daquela tarde. Naquele mesmo dia partiram do Recife os navios Barroso, Paraná e Pará, constituindo o GT 21.1.

Realmente era uma competição muito desigual entre os pescadores de lagosta da Bretanha e os das praias nordestinas, como esses da praia de Rio do Fogo, Rio Grande do Norte – Fonte – BN

Os últimos navios a deixar o Nordeste foram o Greenhalgh e o Marcílio Dias, que constituíram o GT 12.5, no dia 28 de março. Novamente a viagem teve percalços: ambos aportaram em Salvador no dia 29 por problemas de “água de alimentação”.

Em relação às aeronaves, o destacamento de sete P-16 do 1º GAE foi desmobilizado em 12 de março, permanecendo apenas dois exemplares em Natal. O retorno do último P-16 ocorreu no dia 18. Ao final da mobilização, o grupo realizou um total de quarenta missões, oito delas de caráter noturno, com um total de 254 horas e 20 minutos de voo.

Considerações finais

A Operação Lagosta foi mais um exemplo, dentre vários existentes na história brasileira, de como o Brasil é dependente de suas Forças Armadas para garantir sua soberania e defender os seus interesses. Pode-se, e deve-se, trabalhar com hipóteses de conflitos mais prováveis e enumerar potenciais agressores, mas as Forças Armadas devem sempre estar prontas para o pior e para o improvável, independentemente de como e de onde venha a ameaça. Isto já era uma verdade naquela época. No mundo atual é mais do que a garantia da sobrevivência.

Pesca artesanal de lagosta no Nordeste do Brasil – Fonte – BN

Pode-se dizer que foi um caso esporádico ou mesmo um evento solitário dentro de um amplo histórico de amizade entre Brasil e França, numa situação que dificilmente se repetiria. Para o desencanto dos defensores desta ideia, a situação praticamente se repetiu. No final de 1978, na chamada “Guerra do Camarão”, ambos os países chegaram a posicionar unidades militares nas proximidades do Cabo Orange, junto à fronteira entre o Amapá e a Guiana sa. Naquela ocasião a mobilização foi menor e somente o contratorpedeiro Rio Grande do Norte foi deslocado do Rio de Janeiro. No referido evento, quatro pesqueiros de bandeira norte-americana foram metralhados por navios da Marinha do Brasil e posteriormente apreendidos. Um deles, na época denominado Night Hawk, foi incorporado à nossa Armada.

Se a atitude belicosa da França foi uma surpresa, o que dizer da reação do Governo dos Estados Unidos em relação aos contratorpedeiros arrendados à época da Operação Lagosta?

Países aliados, e até mesmo parceiros em acordos de defesa mútua, podem assumir posições, se não neutras, diametralmente contrárias. Foi uma dura lição (e a história está cheia delas) de que não existem países amigos, mas sim países com interesses comuns. Quando estes interesses perdem o sentido ou são suplantados por outros maiores, os países “amigos” afastam-se. A propósito, durante toda a crise nenhum país, formal ou informalmente, apoiou ou sustentou a tese brasileira (da lagosta como recurso econômico de sua plataforma continental).

Quando irrompeu a crise da lagosta o contratorpedeiro de escolta Babitonga (D17) preparava-se para entrar em período de reparos. Dois anos depois ele foi convertido em aviso oceânico e seu armamento antissubmarino foi removido. Na foto, o Babitonga sendo reabastecido pelo porta aviões Minas Gerais – Fonte – https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/

Aprendeu-se muito com o episódio. A mobilização tempestuosa das unidades mostrou que uma marinha precisa estar devidamente equipada e seus homens perfeitamente adestrados durante o período de paz, para garantir um mínimo de unidades sempre prontas para situações emergenciais. Depender de verbas contingenciadas e ficar no aguardo de promessas de novas alocações orçamentárias, que vagam ao sabor de congressistas desinformados, não é a forma mais correta de se ter uma marinha digna.

Uma avaliação posterior mostrou que a mobilização e o envio de um grande número de navios de combate foram desnecessários. Porém, naquele momento, era difícil saber se a reação sa ficaria limitada a um contratorpedeiro (depois substituído por um aviso), pois na costa africana havia uma Força-Tarefa tão ou mais poderosa que toda a Marinha do Brasil. Um ponto positivo deve ser bastante destacado: a movimentação dos navios brasileiros mostrou a determinação do Brasil em manter a sua posição e ou a impressão de que todos os meios estavam plenamente operantes e em estado de alerta. Na dúvida, o oponente resolveu não apostar no pior. Esse aspecto positivo não ameniza os problemas levantados. Pelo contrário, os realça. Determinação é fundamental, mas quando combinada a meios realmente efetivos, o resultado é muito melhor.

Pescadores nordestinos de lagosta na época da crise – Fonte – BN

O episódio mostrou também a importância de aeronaves de esclarecimento marítimo com grande raio de ação e dotadas de equipamentos modernos e sofisticados. Melhor ainda teria sido empregá-las (no caso dos P-16A) a partir do porta aviões Minas Gerais. Por um breve período o EMA não teve certeza de quantas e quais unidades estavam a caminho da costa nordestina, e com um grupamento aéreo embarcado seria possível monitorar todos os os da Força-Tarefa sa antes mesmo que esta deixasse a costa africana, revelando com antecipação a movimentação, número, tipo de unidades navais e estado de prontidão.

O fato é que, durante a crise, o único porta aviões da nossa Marinha esteve incapaz de navegar e assim permaneceu, atracado ao AMRJ. Possuir navio-aeródromo é uma capacidade para poucas marinhas no mundo, mas contar com apenas uma unidade desse tipo é jogar com a sorte, pois o navio pode não estar disponível quando necessário.

Em relação ao acompanhamento dos navios ses, merece destaque o excelente trabalho realizado pelas estações ERGAF no monitoramento das emissões eletromagnéticas, de grande utilidade para o serviço de inteligência da Marinha. Utilizando apenas duas estações e uma infraestrutura modesta, o EMA permaneceu atualizado constantemente sobre as trocas de mensagens entre os navios ses.

Fonte – BN

Relegada praticamente ao papel de uma unidade auxiliar de adestramento, a Flotilha de Submarinos pouco poderia fazer naquela ação.

Eram apenas duas embarcações, com tecnologia da II Guerra Mundial. Além de serem unidades “pré-snorquel” numa era onde já navegavam submarinos nucleares, não possuíam armamento para um engajamento (torpedos com cabeça de combate), pois na nossa Marinha cumpriam mais o papel de ameaças submarinas para exercícios das unidades de superfície. Deve-se ressaltar o louvável esforço da Fábrica de Torpedos da Marinha em encher nove cabeças de exercício com trotil e transformá-las em cabeças de combate.

Depois da Operação Lagosta, a Marinha do Brasil começou a remodelar a Flotilha de Submarinos nos aspectos doutrinário e material. Em maio de 1963, ou seja, alguns meses após os acontecimentos narrados aqui, a designação foi modificada para Força de Submarinos (ForS).

Preparação da lagosta após sua captura – Fonte – BN

Naquele mesmo ano foi criada a Escola de Submarinos e outras duas unidades de versão um pouco aperfeiçoada, provenientes dos Estados Unidos (Bahia e Rio Grande do Sul) foram incorporadas. Ambos ajudaram no adestramento das tripulações, numa época em que a Marinha do Brasil ou a estudar a aquisição de um tipo de submarino moderno. Foi quando surgiram os primeiros estudos que depois definiram a aquisição de três submarinos novos, de origem britânica, da classe “Oberon” (aprovados no Programa de Construção Naval de 1968).

Um caso histórico como este, obviamente, merece uma reflexão mais profunda. Porém, o episódio é um bom exemplo da importância de manter em boas condições as Forças Armadas, em especial a Marinha. Não se improvisa uma esquadra do dia para a noite. Construir uma marinha efetiva custa dinheiro e leva tempo, mas é fundamental para países como o Brasil, cujas interações com as demais nações do mundo, das mais modestas às mais poderosas, se dão predominantemente pelo mar.

Fontes consultadas e recomendações de leitura:

SILVA, Oscar Moreira da. A Guerra da Lagosta vista por um tenente 40 anos após. Revista Marítima Brasileira, Rio de Janeiro, v.124, n. 1-3, p. 97-107, jan-mar. 2004.

BRAGA, Cláudio da Costa. A Guerra da Lagosta. Rio de Janeiro: SDM, 2004.

BECKER, Laércio. O P-16 Tracker e a Aviação Embarcada. Rio de Janeiro: INCAER, 2009.

LESSA, Antonio Carlos. “É o Brasil um país sério? A história da mais longeva anedota da política exterior do Brasil”. In: MARTINS, Estevão Chaves de Rezende (org) Relações Internacionais: visão do Brasil e da América Latina. Brasília: IBRI, 2003. p. 187 – 222.

LESSA, Antonio Carlos. A Parceria Bloqueada. As relações entre França e Brasil 1945-2000. Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília, 2000.

QUANDO KIRK DOUGLAS BRINCOU O CARNAVAL COM UM CHAPÉU DE VAQUEIRO E DORMIU EM UMA REDE POTIGUAR

Durante o Carnaval de 1963, Kirk Douglas, Um dos Maiores Astros de Hollywood, Conheceu e Descansou em Uma Típica Rede de Dormir Feita no Rio Grande do Norte, Usou um Chapéu de Couro e Conheceu a Cultura Nordestina Através do Natalense Sylvio Piza Pedroza, Ex-Prefeito de Natal e Ex-Governador Potiguar, Um Político Que Muito Valorizou a História da Sua Terra.

Rostand Medeiros – IHGRN

No início do ano de 1963 o Brasil era um país que vivia sob o signo da intranquilidade, principalmente no campo político. O gaúcho João Goulart, o Jango, era o Presidente do Brasil e ele ocupava o Palácio do Planalto há um ano e cinco meses, depois da nação ficar assombrada com a intempestiva renúncia do paulista Jânio Quadros.

Já a maioria da população brasileira ainda não possuía em suas residências os serviços básicos necessários para uma boa qualidade de vida, havia uma pesada crise econômica e a insatisfação de setores da sociedade com os rumos do governo Goulart fazia com que nuvens negras surgissem no horizonte político de Brasília.

Brasília, a nova capital brasileira – Fonte – https://conhecimentocientifico.r7.com/

Se dentro do país a situação se tornava complicada e seu povo vivia em meio a muitos problemas, a visão do Brasil no exterior até que não era das piores. No ano anterior a nossa seleção havia conquistado o bicampeonato de futebol no Chile, a Bossa Nova era cantada e elogiada em várias partes do mundo, o Cinema Novo começava a chamar atenção fora do país e Brasília encantava os estrangeiros com o arrojo de sua construção e sua bela arquitetura.

É nesse cenário que desembarcaram em Brasília o ator de cinema norte-americano Kirk Douglas e sua esposa Anne, que nascera na Bélgica e era produtora cinematográfica. 

Carnaval Em Brasília e Com Um Chapéu De Vaqueiro Nordestino

Esse astro de Hollywood, nessa época vivendo o auge de sua carreira, havia sido convidado para conhecer o nosso país e aproveitar os principais bailes de carnaval da novíssima capital federal e do Rio de Janeiro. O casal desembarcou na madrugada de sexta para o sábado de carnaval, dia 22 de fevereiro de 1963, no avião da Pan American Airways. Entre as figuras que aguardavam Kirk Douglas estava Luiz Severiano Ribeiro Junior, dono da maior rede de salas de cinema do país, e José Tjurs, proprietário do Hotel Nacional de Brasília. 

Kirk Douglas no Palácio do Planalto – Fonte – http://www.memoriascinematografictokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com.br

Na tarde de sábado o casal se encontrou com o prefeito Ivo de Magalhães e earam por Brasília na companhia de Israel Pinheiro da Silva, o primeiro prefeito da cidade. Foram até mesmo ao Palácio do Planalto, mas o presidente João Goulart havia viajado para o Rio Grande do Sul (Correio Braziliense, 23/09/1963, págs. 3 e 8). Kirk Douglas se impressionou com a capital brasileira e comentou que “Para fazer isto tem que ter peito”. Vale ressaltar que o cargo de prefeito em Brasília foi extinto em outubro de 1969, ando os governadores do Distrito Federal a atuarem na prática como dirigentes da capital.

Capa da revista O Cruzeiro (Ed. 23/03/1963)

À noite o casal Douglas foi para o II Baile da Cidade, no Hotel Nacional, onde o carnaval rolou solto. O astro hollywoodiano, talvez por se encontrar na capital do país, foi vestido para o baile de maneira muito formal, envergando um bem talhado smoking. Mas na cabeça estava com um típico chapéu de couro do vaqueiro nordestino. Inclusive o astro foi fotografado com a indumentária sertaneja, beijando sua mulher Anne e a foto foi capa da revista O Cruzeiro (Ed. 23/03/1963), uma das principais do Brasil naquela época.

Dormindo Em Uma Tradicional Rede Potiguar, Mais Macia Que Sua Cama em Beverly Hills

No outro dia Kirk Douglas e Anne foram para uma casa alpendrada, feita de tábuas de madeira, as margens do Lago Paranoá, onde o ator de Hollywood foi fotografado tranquilamente dormindo em uma tradicional rede confeccionada no Rio Grande do Norte.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

Em outras fotos ele aparece sorrindo e abraçado a sua esposa Anne. Algumas pessoas estão sentadas em cadeiras e observam o casal. Na época essas fotos foram creditadas a Henri Ballot, mas na edição seguinte da revista houve uma retificação e o crédito ou ao jovem paraibano Roberto Franca Stuckert, então com 19 anos.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

A casa, pelo menos nas fotos, parece bem simples e rústica e segundo o crítico de cinema Ely Azeredo, que assinou o pequeno texto existente na revista O Cruzeiro (Ed. 16/03/1963, págs. 108 a 111), Kirk Douglas “experimentou pela primeira vez as delícias de uma rede no alpendre da casa de campo do Comodoro do Iate Clube Silvio Pedroso”. 

Mas o texto de Ely Azeredo possui um pequeno erro, pois o então Comodoro do Iate Clube de Brasília não era “Silvio Pedroso”, mas o ex-prefeito de Natal e ex-governador do Rio Grande do Norte Sylvio Piza Pedroza.

O PresiPresidente Juscdente Juscelino visitando o Iate Clube de Brasília em 1961, próximo ao final do seu mandato. Sylvio Pedroza está a sua esquerda – Fonte – www6.iateclubedebrasilia.com.br

Sylvio tinha então 45 anos de idade, era subchefe da Casa Civil da Presidência da República, cargo que assumiu ainda no governo Juscelino Kubitschek (1956 a 1961), ou pelo curto período de Jânio Quadros (1961) e continuava na função no governo João Goulart.

Provavelmente pela natureza do seu cargo e, quem sabe, pela sua fluência no idioma inglês foi que Sylvio Pedrosa se aproximou de Kirk Douglas e eles acabaram nas margens do Lago Paranoá.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

Talvez essa proximidade explique o chapéu de vaqueiro usado pelo astro de Hollywood no baile de carnaval no Hotel Nacional. Isso é bem possível, já que Sylvio Pedroza ficou conhecido no Rio Grande do Norte por sempre valorizar suas tradições e principalmente a história de sua terra.

E Kirk Douglas parecia bem à vontade naquela tradicional rede potiguar e naquela casa de aparência rústica e simples. O que não seria nenhuma novidade para um filho de imigrantes pobres nos Estados Unidos, que fugiram das perseguições e dos pogroms contra os judeus no Império Russo.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

O ator nasceu na cidade de Amsterdam, no estado de Nova York, em 9 de dezembro de 1916 e foi batizado como Issur Danielovitch. Aprendeu iídiche antes do inglês e conviveu com um pai alcoólatra e fisicamente abusivo, que bebia o pouco dinheiro que ganhava recolhendo lixo e deixava sua mãe e suas seis irmãs na miséria. Mesmo assim Douglas avançou nos estudos e conseguiu entrar na universidade, onde se formou em Direito em 1939. Durante a Segunda Guerra Mundial foi tenente a bordo de um pequeno caça submarinos no Pacífico, um tipo de barco que ficou conhecido na Marinha do Brasil como “Caça ferro”. Após ser dispensado devido a um acidente na sua embarcação, Kirk Douglas voltou para Nova York e começou a trabalhar no rádio, teatro e comerciais. Em 1946, fez sua estreia nas telas em The Strange Love of Martha Ivers e teve uma carreira de enorme sucesso no cinema, ganhando três indicações ao Oscar e um Oscar pelo conjunto de sua obra. Em 1960 atuou no papel principal do elogiado filme Spartacus, dirigido por Stanley Kubrick e ganhador de quatro Oscars, E foi pelo seu papel em Spartacus que Kirk Douglas foi bastante referenciado nessa visita ao Brasil.

Revista O Cruzeiro, Ed. 16/03/1963 – Foto – Roberto Stuckert

Antes que esqueça!

Kirk Douglas gostou tanto da rede de dormir fabricada em terras potiguares, que em um texto que escreveu para a revista O Cruzeiro (Ed. 23/03/1963, pág. 9) comentou…

“Pela primeira vez experimentei uma rede brasileira, mais confortável e macia do que minha cama em Beverly Hills”.

Tradição Potiguar

Para Sylvio Pedroza também não houve nenhum problema em oferecer ao astro de Hollywood uma típica rede potiguar, um hábito comum no Rio Grande do Norte, principalmente nos alpendres das casas existentes nas nossas belas praias.

Sylvio Pedroza, quando Prefeito de Natal, em uma solenidade na Escola Doméstica em homenagem ao Presidente da República João Café Filho, p único potiguar a chegar a esse cargo.

Nascido em Natal no dia 18 de março de 1918, Sylvio Piza Pedroza era filho de Fernando Gomes Pedroza e Dona Branca Toledo Piza Pedroza. Seu pai foi um agropecuarista e tido como um dos mais abastados comerciantes do Rio Grande do Norte. Sylvio estudou na Inglaterra e no Rio de Janeiro, onde se formou em Direito e ali morou por vários anos. Durante a Segunda Guerra retornou para Natal e em abril de 1945 foi nomeado membro do Conselho istrativo do Estado do Rio Grande do Norte. No ano seguinte, quando tinha apenas 26 anos, foi indicado prefeito de Natal e foi sendo empossado pelo interventor federal Ubaldo Bezerra de Melo em abril de 1946. Ficou no cargo até fevereiro de 1950.

Posse de Sylvio Pedroza na Prefeitura de Natal

Durante as eleições de outubro de 1950 elegeu-se vice-governador do Rio Grande do Norte, assumindo a chefia do governo quando o então mandatário potiguar Jerônimo Dix-Sept Rosado Maia faleceu em um trágico acidente aéreo em Sergipe. Ficou no cargo até 1956, quando assumiu funções no Banco do Nordeste e depois tentou uma vaga ao Senado Federal, mas não se elegeu.

Ouvi de velhos políticos que Sylvio Pedroza atuou com simplicidade, sem pedantismo e que sabia ouvir os mais simples de sua terra. Além disso, incentivou o desenvolvimento de obras que trataram sobre a história potiguar, principalmente através de uma parceria com Câmara Cascudo.

Em 7 de março de 1947 Cascudo entregava ao jovem prefeito os primeiros exemplares do livro História da Cidade do Natal, até hoje uma referência sobre o tema (A Ordem, o9/03/1947, pág. 3). A parceria seria repetida em 1955, quando Sylvio Pedroza era governador potiguar e conseguiu com o Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura a impressão dos exemplares do livro História do Rio Grande do Norte. Uma obra com 524 páginas e cujos primeiros exemplares foram entregues ao governador em abril de 1956 (O Poti, 17/04/1956, pág. 16).

Para seus críticos Sylvio Pedroza utilizou esse apoio a Cascudo apenas como um estratagema para consolidar seu nome e torná-lo mais conhecido no Estado. Pelo fato dele ser considerado como alguém “de fora”, por apenas ter nascido em Natal e morado por muitos anos distante da terra potiguar, Pedroza não era conhecido da população local e nem do meio político e por isso a aproximação. Ouvi de velhos políticos que, se isso realmente aconteceu quem ganhou foi o povo potiguar com a qualidade do material produzido por Cascudo. Para esses homens Sylvio Pedroza atuou politicamente com simplicidade, sem pedantismo e que sabia ouvir os mais simples de sua terra.

Sylvio Pedroza e Getúlio Vargas em 1954

Câmara Cascudo, em seu livro Rede de Dormir: Uma pesquisa etnográfica (MEC, 1957, 1ª Ed. págs. 31 e 32), comentou que essa relação dos políticos do Rio Grande do Norte com as redes de dormir é coisa bem antiga.

“Muita rede foi enviada de presente aos companheiros do Sul. E era lembrança local apreciada, ”souvenir” dos deputados gerais e senadores do Império aos seus colegas meridionais. O Visconde de Mauá possuiu uma grande e confortável rede, dada pelo deputado pelo Rio Grande do Norte, Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti, Amaro Bezerra, o “Tintureira” bonachão e violento nas últimas décadas imperiais. Na República, o deputado Augusto Severo, que morreu na explosão do dirigível Pax em Paris (12 de maio de 1902), voltava do Natal para a Câmara levando um carregamento de redes de dormir e queijos de manteiga do Seridó, ofertas disputadas pelos seus amigos do Parlamento. O senador Pedro Velho obrigava a instalação de sua rede inseparável nos hotéis onde morava no Rio de Janeiro, rede em que Rui Barbosa se deitou, sorridente, e Pinheiro Machado balançava-se, enrolando palha de milho com fumo negro de Goiás.”

Sylvio Pedroza

E De Que Cidade Veio a Rede?

No início desse texto imaginava que essas redes que existiam na “casa de campo” de Sylvio Pedroza as margens do Lago Paranoá eram oriundas de Caicó. Pois na minha meninice dormi em ótimas redes vindas dessa cidade seridoense e ouvia falar da fama que esses materiais produzidas por lá tinham em relação a qualidade.

Mas recorrendo aos conhecimentos e a experiência do meu amigo Adauto Guerra Filho, para mim o maior historiador vivo do Seridó Potiguar e morador de Caicó, na época do episódio em Brasília realmente existiam boas redes, com ótima qualidade e sendo produzidas na Capital do Seridó. Mas eram em pequeno número e a produção estava em crise.

Mestre Adauto Guerra Filho, o maior historiador vivo do Seridó Potiguar, autor de quinze livros, grande conhecedor da história de sua região. É um homem humilde, solicito e amigo. Faz tempo que é merecedor de reconhecimento maior.

A informação de Mestre Adauto encontra respaldo em Câmara Cascudo, no livro Rede de Dormir: Uma pesquisa etnográfica, de 1957.

Cascudo informou que através do apoio do seu amigo Aderbal de França, que trabalhava na Inspetoria Regional de Estatística Municipal no Rio Grande do Norte, em 1950 existiam por aqui 42 fábricas de redes e em 1956 o número se reduziu a somente 4, sendo três em Mossoró e apenas uma em Currais Novos. No último período uma das fábricas mossoroenses produziu 20.000 e outra 6.304 redes.   

Dos tempos áureos da produção de redes no Rio Grande do Norte, segundo descobri pesquisando no site da Biblioteca Nacional, as indústrias nessa área que mais se destacaram no Rio Grande do Norte foram a Fábrica de Redes Potiguar, de J. Oliveira & Cia., de Natal e localizada no bairro da Ribeira, próximo ao Teatro Alberto Maranhão (A Ordem, 29/10/1938, pág. 1). Já em Mossoró se destacou a Fábrica de Redes São Vicente, de Osmídio & Cia. Ltda., que ficava na Rua Coronel Saboia (Almanak Laemmert, edição 1937, pág. 1.606). No final da década de 1940 mereceu registro a Fábrica de Redes e Tecidos Santa Maria, de José Dhalia da Silveira, com sede na Rua dos Pajeús, 1.713, bairro do Alecrim, em Natal (A Ordem, 21/06/1948, pág. 3).

Kirk “Spartacus” Douglas sendo “atacado” no Baile do Municipal do carnaval de 1963 no Rio de Janeiro

Independente da cidade potiguar que fabricou a rede que Kirk Douglas dormiu em Brasília, aparentemente ele descansou bastante. Aliás, ele precisou descansar, pois no domingo de carnaval partiu com na sua esposa para o Rio de Janeiro, onde participou, juntamente com mais de 5.000 foliões, no famoso Baile do Municipal. O ator foi fantasiado de Spartacus e caiu na farra. Apesar do “ataque” das cariocas ao astro de Hollywood, ele não desgrudou de Anne e chamou atenção no Rio pelo comportamento positivo e atencioso ao lado da esposa.

Kirk e Anne Douglas – Fonte – G1

Caso raro em Hollywood, o casal Douglas mantiveram-se unidos até a morte de Kirk, que ocorreu em fevereiro de 2020, quando ele estava com a idade de 103 anos. Já sua esposa Anne faleceu em sua casa em Beverly Hills, dias após seu 102º aniversário, em abril de 2020.  

JÂNIO QUADROS NA PRESIDÊNCIA DO BRASIL – DA ESPERANÇA EM UM SALVADOR DA PÁTRIA, ATÉ A RENÚNCIA NO DIA DO SOLDADO

Jânio da Silva Quadros nasceu no dia 25 de janeiro de 1917, na cidade de Campo Grande, no então estado de Mato Grosso e atual capital do Mato Grosso do Sul. Era filho de Gabriel Quadros e de Leonor da Silva Quadros e foi criado em Curitiba, no Paraná, onde estudou em colégios estaduais. Tempos depois sua família mudou para São Paulo, onde Jânio estudou no Colégio Marista Arquidiocesano e em 1935 ingressou na prestigiada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ou Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma academia que formou nada menos que treze presidentes da república brasileira.

Após a formatura Jânio Quadros montou um pequeno escritório de advocacia no centro da capital em 1943 e depois começou a lecionar em dois colégios. Foi também professor de direito processual penal na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Jânio da Silva Quadros.

Político de Ascenção Meteórica

Em 7 de maio de 1947, por determinação geral do então Presidente da República Eurico Gaspar Dutra, ocorreu a cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Por isso muitas cadeiras na Câmara Municipal de São Paulo ficaram vagas. Jânio então teria sido um dos suplentes chamados a preencher esses lugares em 1948. Essa versão é contestada por alguns, que afirmam ter sido Jânio Quadros um dos três vereadores efetivamente eleitos pelo PDC.

Independente dessa questão, o certo foi que a ação de Jânio como vereador foi decisivo para projetá-lo na vida política paulista. Ele ficou conhecido como o vereador de todas as casas legislativas do país no período a apresentar a maior quantidade de proposições e projetos de lei, além de discursos. Jânio foi igualmente considerado o vereador que assinou a grande maioria das propostas e projetos considerados favoráveis à classe trabalhadora.

Quadro de votação na época da campanha de Jânio Quadros para preidente.

Com esse currículo logo foi consagrado como o deputado estadual mais votado em São Paulo, com mandato a ser exercido entre 1951 e 1953. Jânio percorreu todo o interior do estado de São Paulo, sempre insistindo na bandeira da moralização do serviço público e pedindo sugestões ao povo para resolver os problemas de cada região.

No início de 1953 a capital paulista assistiu à primeira campanha eleitoral para a prefeitura em 23 anos, desde a Revolução de 1930. Jânio foi lançado candidato do PDC em coligação com o Partido Socialista Brasileiro – PSB, vencendo por larga margem as principais máquinas partidárias locais. Essa vitória foi tida como uma grande façanha, pois Jânio enfrentou bloco formado por oito partidos políticos e um adversário, o professor Francisco Antônio Cardoso, que tinha uma campanha milionária, com uma enxurrada de material de propaganda e com apoio ostensivo das máquinas municipal e estadual. 

Assumiu a prefeitura de São Paulo aos 36 anos e um dos seus primeiros atos foi promover demissões em massa de funcionários, iniciando uma cruzada moralizadora que marcou sua gestão.

De Governador a “Salvador da Pátria”

Ademar de Barros, de chapéu.

Em 1954 Jânio Quadros desincompatibilizou-se do cargo de prefeito para candidatar-se a governador do estado de São Paulo e filiou-se ao Partido Trabalhista Nacional – PTN. Ganhou por uma pequena margem de votos, de cerca de 1%, do grande rival Ademar Pereira de Barros, um político popularmente conhecido pelo bordão “Rouba, mas faz”.

Jânio foi empossado governador em 31 de janeiro de 1955 e durante o seu mandato procurou executar ações que transmitisse uma imagem de moralização da istração pública e de combate à corrupção, aliadas a um empreendedorismo que buscava destaque e projeção.

Uma prática comum do governador Jânio era a das visitas surpresa às repartições públicas, a fim de verificar a qualidade dos serviços oferecidos à população. Outra foi a criação de novos serviços e órgãos estaduais, ou a construção de grandes obras.

Desde o início do seu governo Jânio procurou ampliar seu espaço político no nível nacional, estabelecendo positivos contatos com o potiguar João Café Filho, então Presidente da República. A aproximação entre ambos criou condições mais propícias para o governo paulista realizar um trabalho de recuperação financeira do estado. Tudo isso angariou grande popularidade e consagrou Jânio como um líder entre os paulistas.

Com a chegada do mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira, o JK,  a Presidência da República, houve um foco muito intenso na criação de uma política desenvolvimentista, que foi realizada através da aplicação do chamado “Plano de Metas” e provocou um grande crescimento em diversas áreas e setores no país. São Paulo foi um dos estados mais beneficiados com a implantação de novas indústrias e a concentração de crédito e essa expansão econômica se refletiu no aumento da receita tributária do estado e na criação de condições favoráveis à diminuição do déficit financeiro herdado dos governos anteriores. Apesar de todas as vantagens que São Paulo usufruiu no governo JK, matreiramente Jânio permaneceu alinhado com a oposição em relação a importantes aspectos da política econômica vigente. E isso foi muito útil ao governador paulista, pois apesar do impulso desenvolvimentista, o governo JK gerou um panorama de forte inflação e crise econômica.

Diante do difícil quadro nacional, o nome de Jânio Quadros começou a surgir como alguém que poderia solucionar os problemas e colocar o Brasil em um bom rumo. Um novo “Salvador da Pátria”.

Jânio em campanha.

No dia 20 de abril de 1959, um grupo reuniu-se na Associação Brasileira de Imprensa – ABI no Rio de Janeiro e fundou o Movimento Popular Jânio Quadros – MPJQ, lançando nessa ocasião a candidatura do ex-governador de São Paulo à presidência da República.

Nove Meses de Campanha: A Vassoura Janista na Caça ao Voto.

O homem do “tostão contra o milhão” chegava ao topo da escalada que o conduziria ao Palácio da Alvorada.

Não que fosse um caminho fácil. O líder que granjeara sua popularidade junto às massas operárias de São Paulo, que quando prefeito da capital paulista chegou mesmo a apoiar a greve de 1953 e, como governador, não adotou atitudes repressivas contra os trabalhadores, via-se agora na contingência de conquistar a simpatia de todos os brasileiros — ricos, pobres, remediados, urbanos, rurais, ignorantes ou letrados.

As vassouras de Jânio em suas campanhas.

O povo delirou quando Jânio deixou bem claro a todos os partidos que o apoiavam a sua posição extremamente personalista e autoritária, alheia as agremiações partidárias, as quais ele ignorava até o desprezo. Conter a inflação e governar acima dos partidos era seu propósito. Sobretudo porque, percebendo a fragilidade das plataformas partidárias do momento, ele podia agir dessa maneira.

O “justiceiro” prometeu um governo de austeridade, onde aglutinou setores militares e da classe média (com promessas de “limpeza” na istração e estabilização da economia), das elites empresariais (com afirmação de fé na livre iniciativa) e dos trabalhadores (com promessas de uma ordem social mais justa). Descontentes com a carestia, a maioria dos brasileiros preferiu ir beber nas águas populistas de Jânio Quadros. 

Em 30 de setembro de 1960 era encerrada a tumultuada campanha eleitoral de Jânio Quadros à presidência da República. Em meio a cartazes, animação de bandas de música, fogos de artifício, papéis picados, vassouras, além da marchinha antológica que tinha esses versos – “Varre, varre, varre, varre, vassourinha./ Varre, varre a bandalheira./ Que o povo já está cansado/ De sofrer desta maneira./ Jânio Quadros é a esperança deste povo abandonado”.

Marechal Teixeira Lott, derrotado por Jânio Quadros.

Nas eleições de 3 de outubro de 1960 quase seis milhões de eleitores fazem Jânio o 22º Presidente do Brasil, sendo até então a maior votação da história no país. O marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, o segundo colocado, foi vencido de forma arrasadora com mais de dois milhões de votos de vantagem.

Mas nem tudo foi positivo para Jânio. Como naquela época votava-se separadamente para presidente e vice, apesar de todo prestígio Jânio não conseguiu eleger Milton Soares Campos, o candidato a vice-presidente de sua chapa. O escolhido foi o gaúcho João Belchior Marques Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB.

Governo de Altos e Baixos

Após a vitória sem precedentes, o presidente eleito partiu para Europa, em uma viagem de “concentração e retiro”. Somente três meses após as eleições, em 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros e João Goulart foram empossados. Contrariando a expectativa geral, o discurso de posse do presidente foi discreto e gentil, chegando a tecer elogios ao governo anterior. Porém, na noite desse mesmo dia, Jânio atacou violentamente o governo Juscelino Kubitschek em cadeia nacional de rádio, atribuindo ao ex-presidente a prática de nepotismo, ineficiência istrativa, responsabilidade pelos altos índices de inflação e pela dívida externa de dois bilhões de dólares.

Não demorou e o novo presidente decepcionou pela primeira vez seus correligionários, ao desfazer a expectativa dos que previam que ele realizasse um governo de composição ou união nacional, ou que tentasse obter, através da nomeação ministerial, a maioria parlamentar de que não dispunha.

Jânio compôs seu Ministério contemplando uma mistura de elementos da União Democrática Nacional – UDN e representantes de partidos menos expressivos. Surpreendeu a todos ao nomear cinco ministros do Norte e Nordeste e disse que isso foi feito para honrar compromissos de sua campanha. O Ministério da Fazenda foi confiado a Clemente Mariani Bittencourt, líder da UDN baiana, que fora presidente do Banco do Brasil em 1954 e 55. Afonso Arinos de Melo Franco, da UDN mineira ficou com a pasta das Relações Exteriores. O Ministério era formado ainda por Clóvis Pestana, do Rio de Janeiro (Viação e Obras Públicas), Oscar Pedroso d’Horta, do Ceará (Justiça e Negócios Interiores); Romero Cabral da Costa, de Pernambuco (Agricultura); Brígido Fernandes Tinoco, do Rio de Janeiro (Educação e Cultura); Francisco Carlos de Castro Neves, de São Paulo (Trabalho); Edward Cattete Pinheiro, do Pará (Saúde); João Agripino Vasconcelos Maia Filho, da Paraíba (Minas e Energia) e Artur da Silva Bernardes Filho, de Minas Gerais (Indústria e Comércio). Já os ministérios militares foram preenchidos pelo marechal Odílio Denys (Ministério da Guerra, que teria sua denominação alterada durante o governo do general Costa e Silva  para Ministério do Exército), o brigadeiro Gabriel Grüm Moss (Aeronáutica) e o vice-almirante Sílvio de Azevedo Heck (Marinha), os três do Rio de Janeiro.

Reunião ministerial do governo Jânio Quadros.

No início do seu governo Jânio tomou uma série de pequenas medidas que ficaram famosas, destinadas a criar uma imagem de inovação dos costumes e saneamento moral. Também investiu fortemente contra alguns direitos e regalias do funcionalismo público. Reduziu as vantagens até então asseguradas ao pessoal militar ou do Ministério da Fazenda em missão no exterior e extinguiu os cargos de adidos aeronáuticos junto às representações diplomáticas brasileiras.

Tal como aconteceu quando era governador paulista, Jânio Quadros pretendia prescindir da maioria parlamentar, mas duas reações foram imediatas: a dos que o acusavam de veleidades ditatoriais e desprezo pelo Poder Legislativo, e a dos setores nacionalistas, que viam na composição do novo governo uma prova de submissão ao FMI – Fundo Monetário Internacional, pela nomeação do banqueiro Clemente Mariani para o Ministério da Fazenda.

Seguindo um amplo programa anti-inflacionário, em 13 de março de 1961 o Presidente Jânio decretou uma reforma cambial, cuja consequência imediata foi a desvalorização do cruzeiro (a moeda brasileira da época) em 100% e o corte dos subsídios na importação de trigo e gasolina. Disso decorreu um galopante aumento do custo de vida, coincidindo com o congelamento dos salários e restrição ao crédito, o que gerou imediatos protestos sindicais.

Embora contasse com o apoio tácito do Congresso Nacional para sua política de austeridade, Jânio encontrou sérias resistências, mesmo entre seus correligionários, em relação a outros projetos em andamento, como o da reforma da lei antitruste, o da remessa de lucros, o do imposto de renda e o da reforma bancária.

Segundo o seu ministro das Minas e Energia, o paraibano João Agripino, “Jânio atraía contra seu governo todos os grupos econômicos deste país e ao mesmo tempo impunha aos humildes sacrifícios quase ináveis”.

Na tentativa de agradar o FMI pela austeridade, a classe média pela sindicância moralizadora dos escândalos financeiros e as camadas populares pelas reformas, Jânio conseguiu, em poucos meses, multiplicar as oposições.

Os Famosos “Bilhetinhos”

Jânio Quadros na capa da revista americana Times.

Alpargatas, blusões folgados, os famosos slacks com jaquetas tipo safari (também conhecidos como pijânios) — era a imagem tropical de um novo estilo de presidente.

Parte dessa performance foram os não menos famosos “bilhetinhos” que Jânio enviava diariamente a funcionários dos mais diversos escalões, como parte de sua estratégia moralizadora da istração pública.

Esperados muitas vezes com humor pela imprensa, esses pequenos recados causavam frequentemente irritação e até desespero nos que os recebiam. Prova é que, dos 1.534 bilhetes ditados durante a presidência, apenas onze foram de elogios ou homenagens.

O ministro da Fazenda, Clemente Mariani, por exemplo, foi vítima de cerca de 600 deles, o que contribuiu sensivelmente para o desgaste de suas relações com o presidente. Certa feita, o Ministério da Agricultura foi contemplado com um bilhetinho que dizia literalmente: “O objetivo da próxima safra de amendoim deve ser o do atendimento do mercado interno, com largas sobras para exportação, dobrando-se, pelo menos, essa cultura em relação à safra de 1959/60”.

Jânio Quadros e Carlos Lacerda.

Na prática, essas pequenas notas funcionavam, sobretudo como decretos oficiosos, transformando em “lei” várias das pequenas decisões quase legendárias de Jânio.

O funcionalismo público foi o alvo predileto dos “bilhetinhos”: sindicâncias, horário de dois turnos com aumento da jornada de trabalho, cortes de gastos de representação e até ordem para à devolução de carros luxuosos. Muitas vezes justos, a maioria desses bilhetes tratava de assuntos que, sem dúvida, não competiam ao presidente da República.

Jânio também proibiu o biquíni na transmissão televisada dos concursos de miss, acabou com as corridas de cavalo em dias úteis, com as rinhas de galo, com o lança-perfume em bailes de carnaval e regulamentou o jogo de carteado. Por mais hilárias que possam ter parecido essas medidas na ocasião, 60 anos depois todas essas leis editadas por Jânio ainda continuam em vigor.

Política Externa Radical

Enquanto aplicava uma política interna de austeridade, submissa às orientações do Fundo Monetário Internacional, Jânio Quadros radicalizava progressivamente na chamada Política Externa Independente – PEI.

Essa diretriz introduziu grandes mudanças na política internacional do Brasil, transformando as bases da sua ação diplomática e representou um ponto de inflexão na história contemporânea da política internacional brasileira, que ou a procurar estabelecer relações comerciais e diplomáticas com todas as nações do mundo que manifestassem interesse num intercâmbio pacífico. Essa modalidade de fazer política externa foi firmemente conduzida pelo chanceler Afonso Arinos de Melo Franco.

Jânio levou adiante seu projeto de estabelecer relações com as recém-independentes nações africanas e do bloco socialista. Nomeou Raimundo Sousa Dantas embaixador do Brasil em Gana, sendo este o primeiro embaixador negro brasileiro. Por meio de um sem-número de bilhetes recomendava o reatamento diplomático com os países do Leste, alegando objetivos econômicos. Pronunciou-se contrário à tradição brasileira de apoio às potências colonialistas, sobretudo na África portuguesa, e favorável à issão da China nas Nações Unidas. Em maio de 1961 recebeu no palácio do Planalto a primeira missão comercial da República Popular da China enviada ao Brasil.

O cosmonauta soviético Yuri Gagarin (a direita), o primeiro homem a ir ao espaço, recebe a Ordem do Mérito Aeronáutico de Jânio Quadros e do brigadeiro Gabriel Grüm Moss, Ministro da Aeronáutica. 

O mesmo fato se repetiu em julho com a missão soviética de boa vontade, que pretendia incrementar o intercâmbio comercial e cultural entre o Brasil e a União Soviética. As primeiras providências para o reatamento diplomático entre os dois países começaram a ser tomadas em 25 de julho, mas o processo só seria concluído durante o governo Goulart. Antes disso, em julho de 1961, Jânio Quadros condecorou com a Ordem do Mérito Aeronáutico o cosmonauta soviético Yuri Alexeievitch Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço e que visitava o Brasil. 

Essa radical mudança na política exterior do Brasil não foi bem vista pelos Estados Unidos, nem por vários grupos econômicos que se beneficiavam da política anterior e nem pela direita nacional, em especial por alguns políticos da UDN, que apoiaram Jânio Quadros na eleição.

Uma Medalha para o Che

Entre os dias 5 e 17 de agosto de 1961 ocorreu em Punta del Este, Uruguai, a reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social da Organização dos Estados Americanos – OEA. Nela estiveram reunidos ministros e dirigentes das economias dos países latino-americanos, incluindo Ernesto Rafael Guevara de la Serna, mais conhecido como Che Guevara, revolucionário marxista e então ministro da Economia de Cuba. A finalidade desta reunião foi discutir o então novo programa da política externa dos Estados Unidos para a América Latina, a Aliança para o Progresso, cujo intuito era desenvolver economicamente e socialmente os países latino-americanos.

Ernesto Che Guevara sendo condecorado por Jânio Quadros.

Ao fim da reunião Che Guevara viajou para a Argentina e na sequência para o Brasil. Jânio aproveitou a agem de Guevara para pedir, com êxito, a libertação de 20 padres espanhóis presos em Cuba, que estavam condenados ao fuzilamento, exilando-os na Espanha. Aproveitaram e discutiram as possibilidades de intercâmbio comercial por meio dos países do Leste europeu. Finalmente, em 18 de agosto o presidente condecorou o ministro cubano com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, o que provocou a indignação dos setores civis e militares mais conservadores.

As possíveis consequências desse ato foram mal calculadas por Jânio. Sua repercussão foi a pior possível e os problemas já começaram na véspera, com a insubordinação da oficialidade do Batalhão de Guarda que, amotinada, se recusava a acatar as ordens de formar as tropas defronte ao Palácio do Planalto, para a execução dos hinos nacionais dos dois países e a revista dos militares. Só a poucas horas da cerimônia, já na manhã do dia 19, conseguiram os oficiais superiores convencer os comandantes da guarda a se enquadrarem e participarem da cerimônia.

O Fim no Dia do Soldado

Uma verdadeira cruzada ou a ser desencadeada contra a Política Externa Independente de Jânio. Para seus críticos essa política nada mais era do que declarações e ações com fins publicitários e vista por muitos como uma tentativa de atenuar a tensão provocada pelas decepções com sua política interna. O certo é que a condecoração de Che Guevara foi o bastante para o jornalista Carlos Lacerda, então governador do Rio de Janeiro, da UDN, romper publicamente com Jânio Quadros. O presidente perdia assim a sua frágil base parlamentar no Congresso.

Em várias oportunidades, o ministro da Guerra, Odílio Denys, também chegou a adverti-lo sobre a insatisfação da alta hierarquia militar. No plano internacional, a situação não melhorou para o governo.

Jânio parecia ter conseguido com suas ações desagradar a gregos e troianos.

Fotograma da película que mostra a cerimônia do Dia do Soldado em 25 de agosto de 1961, o último ato que Jânio Quadros participou como presidente do Brasil.

Em 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado, o presidente Jânio Quadros apresentou à nação sua carta de renúncia. O seu último ato presidencial foi um terrível equívoco, uma tentativa de golpe mal arquitetada. O objetivo de Jânio Quadros era criar um clima de comoção nacional de tal modo que os ministros militares, o Congresso e a população pedissem para que ele ficasse. Seu objetivo era negociar sua permanência na presidência da República com poderes excepcionais.

O Congresso, segundo a Constituição, não tinha poderes para negociar uma renúncia, que era um ato unilateral do presidente. A única obrigação do Congresso era investir os poderes ao vice.

Jânio Quadros, ao receber a notícia de que sua renúncia foi acolhida, chorou copiosamente. Seu mandato presidencial de 206 dias (quase sete meses) foi um dos mais breves na história da presidência do país.

A população, frustrada com as medidas econômicas rígidas e com os decretos moralistas, não reagiu como o Presidente esperava. Os ministros militares se limitaram a publicar um manifesto atestando que o vice-presidente, João Goulart, que se encontrava em visita oficial à China comunista, não deveria assumir a Presidência da República por representar um perigo aos quadros democráticos e constitucionais, pois Jango seria apoiado por elementos do clandestino Partido Comunista.

O país estava à beira de uma grave crise por conta da obsessão anticomunista de parcela significativa das Forças Armadas brasileiras. O conflito, entretanto, foi evitado graças a uma solução política negociada: a criação da Emenda Parlamentarista.

O sistema parlamentarista era um paliativo, pois garantia a posse de Goulart, ao mesmo tempo em que retirava os poderes políticos do Executivo federal e o transmitia para o Congresso Nacional, que indicaria um Primeiro-Ministro. Desta forma, Goulart poderia voltar ao Brasil e tomar posse. Foi escolhido como Primeiro-Ministro o político mineiro Tancredo de Almeida Neves. Para Juscelino Kubitschek, que na época era senador, declarou que “a Emenda Parlamentarista foi aprovada por pressão militar”.

O sistema parlamentar, entretanto, teve vida curta. Em 6 de janeiro de 1963, um plebiscito aprovou o retorno ao regime presidencial e, segundo os próprios militares, aquilo foi o início da contagem regressiva para o golpe contra Jango.

O resultado está estampado na manchete abaixo…

GETÚLIO: DO AUGE AO SUICÍDIO

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Getúlio Dornelles Vargas – Fonte – http://www.diariodoscampos.com.br

Morrer ou ar a maior humilhação de sua vida. Entenda como o presidente mais adorado de nossa história chegou a esse ime dramático em reportagem do biógrafo Lira Neto

Fonte – http://tokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com/noticias/acervo/getulio-auge-ao-suicidio-435272.phtml#.WF_NW_krLIW

Getúlio Vargas chegou ao poder em 1930, depois de liderar uma revolução. Foi eleito em 1934. Em 1937, fechou o Congresso e se transformou em ditador. Mesmo assim, era adorado pelas massas, que acompanhavam, empolgadas, a transformação do Brasil em um país com grandes indústrias e leis trabalhistas justas – foi ele quem criou o salário mínimo, por exemplo. Ao final da Segunda Guerra, em 1945, quando a ditadura dos alemães e dos italianos foi derrotada pelas democracias da Europa e dos Estados Unidos, não fazia mais sentido ter um ditador no poder.

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Vargas no início de sua carreira – Fonte – https://www.resumoescolar.com.br/historia-do-brasil/getulio-vargas-e-o-estado-de-compromisso/

Getúlio convocou eleições e voltou para São Borja, no Rio Grande do Sul. Mas em 1951 ele voltou à capital, o Rio de Janeiro, reeleito, em grande estilo. Em 1954, Getúlio foi pressionado a deixar o poder. Parecia que ele não tinha escolha, a não ser renunciar. Mas ele tinha, sim. Às 8h30 da manhã do dia 24 de agosto, pegou seu Colt calibre 32 com cabo de madrepérola e, sentado na cama, de pijamas, apontou contra o próprio peito e atirou. Como é possível que um ditador tão popular que consegue se eleger de novo termine desse jeito?

A frase mais famosa da carta-testamento explica: “Saio da vida para entrar para a história”. Era isso mesmo. Se vivesse, Getúlio e sua família teriam que enfrentar uma humilhação pública tão grande que acabaria com a imagem que ele demorou a vida toda para construir. Ao se matar, escapou de tudo isso e virou um grande mito. Para entender por que ele estava tão perto da humilhação, basta pensar na madrugada de 5 de agosto, 20 dias antes de ter se matado. Era pouco depois da meia-noite, e o maior inimigo de Getúlio, o empresário e político Carlos Lacerda, entrava em sua casa, na rua Toneleros, em Copacabana. Alguém atirou contra ele, e dois disparos mataram o homem que o acompanhava, o major da Aeronáutica Rubens Vaz. Um projétil acertou o pé de Lacerda.

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Vargas na Revolução de 1930 – Fonte – http://sensoincomum.org/2016/08/31/por-que-esquerdista-getulio-vargas/

Muita gente não estava satisfeita com Getúlio. Um grupo de militares e empresários dizia que, com suas medidas populistas, o presidente queria levar o país para o comunismo. Aliás, essas mesmas pessoas disseram a mesma coisa quando, em 1964, derrubaram o presidente João Goulart. Nenhum adversário pegava tão pesado quanto Carlos Lacerda. Todas as evidências apontavam para o envolvimento de Getúlio e sua turma no atentado.

Evidências concretas

Parecia difícil provar a participação do governo nos tiros que mataram o major Vaz. Mas não era. Assim que as investigações começaram, no dia 6, um motorista de táxi apareceu na polícia dizendo que tinha levado um membro da guarda presidencial, Climério de Almeida, para o local do crime. Em vez de se explicar, Climério desapareceu. No dia 13, o pistoleiro Alcino do Nascimento foi preso e confessou ter atirado em Lacerda por ordem de Climério.

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Fonte – http://nossapolitica.net/2015/12/impeachment-contra-getulio-vargas/

O caldo engrossou de vez quando Alcino disse à polícia que Climério estava agindo sob o comando de Lutero Vargas, filho de Getúlio. No dia 18, Climério foi preso. Com ele estavam 35 mil cruzeiros, e as notas eram da mesma série que já tinham sido encontradas com Alcino e com Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do presidente. No dia 21, o vice-presidente, Café Filho, sugeriu que os dois renunciassem. No dia 22, um grupo de brigadeiros do Exército publicou um manifesto pedindo a mesma coisa. Getúlio disse que jamais faria isso.

À meia-noite do dia 24 de agosto, os comandantes militares mandaram avisar o presidente que não havia mais volta. Se ele não deixasse o cargo por bem, seria deposto pela força. Exausto, Getúlio disse que marcaria uma reunião ministerial no dia seguinte. O general Mascarenhas de Morais, que ainda se mantinha ao lado do presidente, insistiu em fazer o encontro imediatamente. Às 4 da manhã, enquanto os ministros discutiam sem chegar a nenhuma conclusão, Getúlio abriu a agenda pessoal e rabiscou assim: “Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com um pedido de licença”.

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Fonte – Museu Joaquim José Felizardo / Fototeca Sioma Breitman – http://forum.outerspace.com.br/index.php?threads/get%C3%BAlio-vargas-3-raz%C3%B5es-para-amar-ou-odiar-o-que-ele-fez-com-o-brasil-que-voc%C3%AA-vive-hoje.429631/

O fim

Depois da reunião, sozinho em seu quarto no Palácio do Catete, Getúlio não conseguiu pregar o olho. Foi procurado pela mulher e os filhos pelo menos três vezes entre o final da madrugada e o começo da manhã. O ministro da Justiça, Tancredo Neves, mandou para ele uma nota oficial em que o presidente se licenciava até que as investigações terminassem. Era só , mas Getúlio nem quis ler. Quando soube que seu filho mais novo, Benjamin, seria preso por participar do atentado, ele se trancou em seu quarto. Às 8h30, um tiro ecoou pelo palácio.

“Getúlio tinha consciência de seu significado histórico. Seu último gesto precisa ser entendido dentro dessa dimensão”, afirma o historiador Jaime Pinsky, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre renunciar e encarar um longo processo na Justiça, ele preferiu virar mártir. Sua última artimanha política deu certo. Menos de um mês depois de sua morte, o caso do atentado foi encerrado e seus dois filhos suspeitos, Benjamin e Lutero, acabaram inocentados..

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Manifestação comemorativa do Dia do Trabalho no estádio São Januário, Rio de Janeiro,1940 (Acervo DOC FGV) – Fonte – http://forum.outerspace.com.br/index.php?threads/get%C3%BAlio-vargas-3-raz%C3%B5es-para-amar-ou-odiar-o-que-ele-fez-com-o-brasil-que-voc%C3%AA-vive-hoje.429631/

E assim Getúlio salvou sua imagem para sempre. Assim que souberam da morte, multidões saíram às ruas em todo o país. Enfurecidos, manifestantes destruíram a Tribuna da Imprensa, o jornal de Carlos Lacerda. Uma massa humana de 100 mil pessoas, a maioria chorando compulsivamente, acompanhou o caixão do presidente. Cerca de 3 mil pessoas sofreram desmaios, mal-estares e crises nervosas. Velado no palácio onde vivia, o presidente cumpria, assim, a promessa feita dias antes: “Só morto sairei do Catete”. 

Dia 24 – As últimas horas do presidente

0h – O minidtro da Guerra, general Zenóbio da Costa, chega ao Palácio do Catete. Traz um ultimato assinado por 27 generais, exigindo a renúncia

0h30 – Da sala de despachos, Getúlio manda chamar os ministros. Pega em uma gaveta uma folha datilografada, assina-a a aguarda no bolso. Os demais não sabiam, mas era a carta-testamento. O presidente sobe ao quarto

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1h – Ao redor do Catete, barricadas e soldados armados a postos para evitar uma invasão. Getúlio, fumando seu indefectível charuto, desce à sala de despachos, pega a caneta-tinteiro que estava sobre sua mesa de trabalho e a entrega ao ministro da Justiça, Tancredo Neves, pedindo que ele a guarde como lembrança daqueles dias

3h – Getúlio reúne o ministério. (Dos 12 ministros, um – Vicente Rao, das Relações Exteriores – não compareceu.) Além deles, estavam presentes a filha do presidente, Alzira, a esposa Darcy e os filhos Lureto e Manuel Antônio. Lá fora, aviões da Aeronáutica davam rasantes sobre o Catete

4h – Os ministros não chegam a um consenso. Getúlio anota em sua agenda: “Já que o ministério não chegou em uma conclusão, eu vou decidir: (…) entrarei com um pedido de licença

4h20 – Zenóbio sai com pressa para anunciar a decisão de Getúlio aos militares. O presidente sobe ao quarto para dormir, enquanto Tancredo escreve uma nota para a população.

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4h45 – O ministro Oswaldo Aranha, Alzira e o próprio Tancredo sobem ao quarto para mostrar a nota a Getúlio. O presidente os recebe de pijama de mangas compridas, na ante-sala de seu quarto. O país é comunicado, pelo rádio, da decisão presidencial.

6h – Dois oficiais chegam ao Catete, com uma intimação para Benjamin Vargas, irmão de Getúlio. Ele é acusado de planejar o atentado contra Lacerda. Ele se recusa e deixar o palácio. Sobe ao quarto do irmão, o acorda e conta o que aconteceu.

7h – O telefone toca. É o general Armando de Morais Âncora, que diz a Benjamin que o pedido de licença não era suficiente. Os militares querem o afastamento imediato do presidente.

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Fonte – http://forum.outerspace.com.br/index.php?threads/get%C3%BAlio-vargas-3-raz%C3%B5es-para-amar-ou-odiar-o-que-ele-fez-com-o-brasil-que-voc%C3%AA-vive-hoje.429631/

7h30 – Benjamin vai ao quarto e comunica a reação dos militares. Getúlio diz que a situação é grave.

8h05 – Contra seu costume, o presidente sai do quarto de pijama e desce até o gabinete de trabalho. Um assistente percebe que ele volta com algo volumoso no bolso: é um revólver Colt calibre 32.

8h15 – Como fazia todas as manhãs, o barbeiro Barbosa entra no quarto. O presidente o dispensa. O filho Lutero descansa em um sofá da ante-sala do quarto.

8h30 – O presidente senta na cama, põe o revólver na altura do peito e puxa o gatilho. O tiro acorda Lutero, que é o primeiro a entrar no quarto. Depois entram dona Darcy e o médico Flávio Miguez de Mello. Getúlio tem meio corpo para fora da cama e está morrendo.

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Fonte – http://forum.outerspace.com.br/index.php?threads/get%C3%BAlio-vargas-3-raz%C3%B5es-para-amar-ou-odiar-o-que-ele-fez-com-o-brasil-que-voc%C3%AA-vive-hoje.429631/

8h35 – A arma ficou sobre a cama. Na mesinha de cabeceira, a carta-testamento. Ele morreria deitado, minutos depois. 

Um baixinho vaidoso

Quando o gaúcho Getúlio Vargas nasceu, em 1882, dom Pedro II ainda governava o país. Quando morreu, em 1954, o Brasil era uma república industrializada. Em seus 72 anos de vida, Getúlio ainda foi deputado e governador do Rio Grande do Sul. Ninguém ficou tanto tempo na presidência quanto ele, 28 anos. Carismático, ele cuidada muito bem de sua imagem. Os fotógrafos tinham ordem de retratá-lo sempre de baixo para cima, para disfarçar sua altura. Ele só tinha 1,60 m, tinha um rosto redondo e era barrigudo. Mas era vaidoso. Nunca viajava sem uma maleta com cremes, loção de barba e meias de seda. Seu charuto virou marca registrada. Além disso, Getúlio era um grande conquistador. Sua amante mais famosa foi a vedete Virginia Lane, que era conhecida por ter as pernas mais bonitas do Brasil.

Saiba mais

  • O Segundo Governo Vargas: 1951-1954, Maria Celina Soares de Araújo, Zahar, 1982. Ajuda a entender a crise de agosto de 1954.
  • A Era Vargas, José Augusto Ribeiro, Casa Jorge Editorial, 2001. São três volumes que contam a vida do presidente, da chegada ao poder ao suicídio.——————————————————————-

    Lira Neto nasceu em Fortaleza (CE) em 1963. Jornalista e escritor ganhou o prêmio Jabuti em 2007, na categoria melhor biografia, por O Inimigo do Rei: Uma biografia de José de Alencar, publicado pela Editora Globo. É autor também de Maysa: Só numa multidão de amores (Globo, 2007) e Castello: A marcha para a ditadura (Contexto, 2004).

MORREU DOM PAULO EVARISTO ARNS

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Celebração eucarística dos 65 anos de Ordenação Sacerdotal de Dom Paulo Evaristo Arns, Arcebispo Emérito de São Paulo realizado na Catedral da Sé região central da capital paulista. Na foto Dom Paulo Evaristo Arns – 27/11/2010 (Werther Santana/Estadão Conteúdo) – Fonte – http://tokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com/brasil/como-arcebispo-dom-paulo-fez-a-opcao-pelos-mais-pobres/

Igreja e Ditadura: do apoio ao combate – Como D. Paulo Evaristo Arns e outros religiosos encabeçaram a luta contra o regime militar

Autor – Igor Natusch

Fonte – http://tokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com/noticias/terra-brasilis/igreja-e-ditadura-do-apoio-ao-combate.phtml#.WFKxjOArKhcsiva

O golpe que lançou o Brasil em 21 anos de regime militar em 1964 encheu de euforia o coração de um presbítero de Petrópolis (RJ). Reconhecendo na “revolução” a chance de um novo país, livre do comunismo ateu que ameaçava a cristandade, o padre deslocou-se até o Rio de Janeiro com um só objetivo: dar a bênção às tropas do general Olímpio Mourão Filho, que tinham vindo desde a mineira Juiz de Fora para ocupar a Guanabara.

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Dom Paulo em 1967 – Fonte – http://tokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com/brasil/como-arcebispo-dom-paulo-fez-a-opcao-pelos-mais-pobres/

Dois anos depois, esse religioso, chamado Paulo Evaristo Arns, foi ordenado bispo; em 1970, assumiu como arcebispo de São Paulo. Desde então, o outrora entusiasta da ascensão dos militares assumiu posição decisiva na contestação e denúncia dos crimes da ditadura. Lutou contra a tortura, liderou o histórico ato na Catedral da Sé em memória do jornalista Vladimir Herzog, criou a Comissão Justiça e Paz e abraçou o projeto Brasil: Nunca Mais, que evitou o sumiço de milhares de documentos fundamentais para contar a história daqueles dias. Até o fim da vida, foi considerado, com justiça, um herói da resistência aos generais – um contraste e tanto com o apoio prestado ao então recém-nascido regime.

As posturas de Dom Paulo são representativas da trajetória da Igreja Católica durante a ditadura no Brasil. Um caminho acidentado no qual, após a euforia pela queda de João Goulart, posições conservadoras e atos de reação conviveram durante muito tempo, até que a ilusão de um governo redentor desabasse e a redemocratização se tornasse inevitável. Em um país de forte base católica, os movimentos da Igreja desenham a própria postura da sociedade civil diante do estado de exceção que a muitos pareceu promissor, mas que com o tempo se revelou intolerável.

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Dom Paulo Evaristo Arns (Foto: Roberto Stuckert Filho/PR / Divulgação) – Fonte – http://vejasp.abril.com.br/materia/morre-dom-paulo-evaristo-arns-arcebispo-emerito-sao-paulo

O apoio

“Em maio de 1964”, diz o historiador Paulo César Gomes Bezerra, “um manifesto assinado por 26 bispos da CNBB agradecia aos militares por ‘salvarem’ o país do perigo iminente do comunismo”. A declaração dos bispos manifestava gratidão aos novos governantes por terem “acudido a tempo” e impedido a consumação de um “regime bolchevista” no Brasil. “Ao rendermos graças a Deus”, dizia o documento, “agradecemos aos militares que, com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da nação.”

As palavras refletem um sentimento que animou boa parte das ações da Igreja naqueles dias: o temor diante do comunismo, destruidor da família, que vinha para esmagar os preceitos cristãos. Mas demonstra também uma proximidade com o poder, o que, no caso brasileiro, não era novidade. No país, até o final do século 19, a Igreja nem sequer existia como entidade autônoma. No sistema do padroado, eram os governantes que nomeavam bispos e padres, além de financiarem e istrarem grande parte da estrutura eclesiástica. Mesmo com a República e a institucionalização do Estado laico, a ligação estreita se manteve – e os dirigentes entendiam bem a importância do apoio religioso às suas decisões.

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Paulo Evaristo Arns visita o general Canavarro Pereira em 1970, em São Paulo – Fonte – http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2016/12/14/dom-paulo-evaristo-arns-e-seu-coracao-corintiano/

A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, decisiva como e ideológico e popular ao movimento militar, evidenciava tais laços, uma vez que a Igreja atuou fortemente na organização das manifestações. Em São Paulo, Leonor Mendes de Barros, esposa do governador Ademar de Barros, ao fim da marcha, assistiu à missa do padre irlandês Patrick Peyton, que estava no Brasil a convite do cardeal Jaime de Barros Câmara, da Arquidiocese do Rio.

Manifestações semelhantes ocorreram no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Curitiba. O padre Antônio Abreu, ligado há mais de 40 anos ao Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (Ibrades), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), descreve outros aspectos que influenciaram a posição da instituição. Segundo ele, além de proteger a Igreja e a cristandade, havia entre alguns simpatia por um nacionalismo popular de base militar, a exemplo do que Gamal Abdel Nasser promovia no Egito. “No momento do golpe, a identificação da Igreja era com as elites em geral, em uma postura política antiliberal e antidemocrática”, afirma Abreu. “Entre os que realmente queriam políticas públicas de caráter social, parcela razoável acreditava ser mais provável os militares realizarem aquilo que na democracia não era viável. Julgavam ditaduras esclarecidas mais eficazes para o bem público.”

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Fonte – http://memorialdademocracia.com.br/card/vladimir-herzog-e-assassinado-no-doi-codi

Fundada em 1952, a CNBB elegeu em 1964 uma direção conservadora. A presidência ficou com dom Agnelo Rossi, que logo em seguida seria nomeado pelo papa Paulo VI arcebispo de São Paulo. O então secretário-geral da entidade, dom Hélder Câmara, opositor de primeira hora do regime, foi deslocado do Rio de Janeiro para a arquidiocese de Olinda e Recife, sendo substituído por dom José Gonçalves, mais simpático aos novos tempos. Com uma elite católica pronta a dar seu aval, os militares estavam legitimados para agir.

Apesar do conservadorismo da cúpula, vivia-se um período de renovação na Igreja Católica. Entre 1962 e 1965, ocorreu o Concílio Vaticano II, uma das mais amplas reformas da história do catolicismo. A partir dele, a Igreja tentou transformar sua relação com a sociedade, colocando em primeiro plano a justiça social, a defesa dos direitos humanos e o auxílio aos necessitados de todos os tipos. Era momento de repensar a relação da fé católica com o ambiente político e social que a cercava – um sopro de mudança que demorou um pouco a arejar o alto comando da Igreja brasileira, ainda que tenha sido percebido em outros lugares.

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Dom Paulo Evaristo Arns e o presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter – Fonte – http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2016/12/14/dom-paulo-evaristo-arns-e-seu-coracao-corintiano/

A contestação

O apoio da Igreja Católica ao golpe pode ter sido majoritário, mas não foi unânime. O bispo de Volta Redonda, Dom Waldyr Calheiros, foi quase um pioneiro: já na noite do 31 de março de 1964, leu um sermão cheio de comentários desabonadores à derrubada de Jango. Sem contar a oposição férrea de dom Hélder Câmara – um homem tão combativo que logo ou a ser monitorado de perto pelos militares. Pelo menos desde 1966, o Centro de Informações da Polícia Federal abastecia um dossiê sobre o bispo, e a divisão de segurança e informações do Itamaraty fazia de tudo para impedir suas viagens ao exterior – nas quais ele invariavelmente denunciava a violência da ditadura brasileira. A partir de 1970, a imprensa não podia nem ao menos citar o nome de dom Hélder, para o bem ou para o mal; era como se o religioso, mesmo vivo e atuante, não existisse.

Os mandatários religiosos seguiam alinhados aos militares, mas outras esferas adotavam uma postura crescente de resistência e contestação. “A Igreja, em todos os tempos e lugares, sempre refletiu a luta de classes, como todas as instituições”, afirma Frei Betto, da ala mais radical da oposição à ditadura. Ele tomou parte direta na mais explícita atuação de setores da Igreja junto à guerrilha: o alinhamento com a Aliança Libertadora Nacional, de Carlos Marighella. E ainda hoje apoia explicitamente o regime cubano.

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Dom Paulo e sua irmã, a médica Zilda Arns Neumann. Médica pediatra e sanitarista, fundadora da Pastoral da Criança e da Pastoral da Pessoa Idosa, organismos de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Zilda Arns faleceu na cidade de Porto Príncipe – Haiti, no terremoto que vitimou mais de 200 mil pessoas. Dom Paulo, ao saber da morte da irmã, disse: “Não é hora de perder a esperança. Ela morreu de uma maneira muito bonita, morreu na causa que sempre acreditou” – Fonte – http://a12.com/blogs/paginasanimadas/120115-za/

Enquanto os dominicanos como Frei Betto auxiliavam pessoas a fugir do Brasil, o arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales, oferecia ajuda a indivíduos perseguidos por outras ditaduras da América do Sul. Iniciado em 1976, o processo ganhou tal volume que, a partir de 1979, o bispo chegou a hospedá-los em sua própria residência, na Rua da Glória. Ao todo, com o apoio da Cáritas brasileira e do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), dom Eugênio teria socorrido, até 1982, mais de 4 mil pessoas. Alguns chegavam por iniciativa do então padre da Companhia de Jesus argentina Jorge Mario Bergoglio, hoje papa Francisco. Tanto dom Eugênio quanto dom Paulo Evaristo Arns teriam recebido pessoas enviadas por Bergoglio ao Brasil – uma das muitas histórias que evidenciam a colaboração entre religiosos no continente.

A ditadura não estava alheia a esses movimentos e começou a agir de forma cada vez mais dura. Em 1966 o padre Henrique Pereira Neto, auxiliar de dom Hélder Câmara, foi assassinado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), um grupo paramilitar. A partir daí, o porão do regime perdeu o constrangimento e se voltou contra a Igreja. A reação dos órgãos eclesiásticos, em princípio, foi tímida: apenas em maio de 1970 viria o primeiro documento da CNBB denunciando a prática de tortura no país, ainda assim com o cuidado de criticar também ações atribuídas à esquerda, como assaltos e sequestros. Em outubro daquele ano, porém, a prisão do secretário-geral da CNBB, dom Aloísio Lorscheider, durante uma ação do Departamento de Ordem Pública e Social (Dops) na sede do Ibrades, azedou totalmente o diálogo. Foi a primeira vez que um alto dirigente da CNBB viu-se nas mãos dos militares.

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Lorscheider ficou preso durante cerca de quatro horas. Tempo suficiente para o alto clero atacar o regime com ousadia inédita. Os cardeais chegaram a enviar carta diretamente ao então presidente, o general Emílio Garrastazu Médici, lamentando a “deterioração” de seus vínculos. O impacto internacional também foi péssimo: a imprensa do Vaticano noticiou o fato e até o papa Paulo VI manifestou publicamente apoio aos bispos brasileiros. “Foi quando se resolveu criar a Comissão Bipartite, que funcionou entre 1970 e 1974, com o intuito de promover diálogos entre a Igreja e o Estado e evitar a ruptura”, afirma o historiador Paulo César Gomes Bezerra. O efeito da medida, contudo, foi limitado: as relações entre as instituições jamais voltariam a ser as mesmas.

Dominicanos no cárcere

Nenhum setor da Igreja brasileira foi tão fundo na oposição ao regime quanto os dominicanos adeptos da ainda hoje, dentro e fora da Igreja, controversa Teologia da Libertação. 

Os frades aram a apoiar perseguidos políticos que precisavam esconder-se ou fugir do país. Foi essa ação que os aproximou de Carlos Marighella e da Aliança Libertadora Nacional. Em 1968, com o advento do AI-5, a repressão chegou ao momento mais duro – e Frei Betto, morando no Rio Grande do Sul, ajudou dezenas de pessoas a atravessar a fronteira do Uruguai.

A ligação dos dominicanos com questões sociais e políticas vem desde os anos 1940, a partir da Ação Católica (AC), movimento que buscava maior inserção da Igreja junto aos movimentos da sociedade civil. Como forma de recrutar estudantes, surgiram dentro da AC grupos como a Juventude Estudantil Católica (JEC) e a Juventude Universitária Católica (JUC). A partir deles, nasceu a Ação Popular (AP), segundo Frei Betto “um movimento de esquerda, laico, independente da Igreja”, com forte presença dos dominicanos e forte inserção no meio universitário. Depois do golpe, a organização ou à clandestinidade.

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Dom Paulo e general Dilermando Monteiro – Fonte – http://tokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com/brasil/como-arcebispo-dom-paulo-fez-a-opcao-pelos-mais-pobres/

Com o endurecimento do regime, os serviços de inteligência aram a prestar especial atenção nos dominicanos, levando a uma série de prisões, como a dos frades Fernando, Ivo e Tito, todos alvo de torturas e expostos como terroristas. O caso de frei Tito tornou-se tristemente célebre: incapaz de conciliar-se com as memórias dos padecimentos, ele se suicidou nos arredores de um convento francês em 1974, aos 28 anos. No exílio ou na cadeia, os dominicanos continuavam incomodando o poder.

“Nós, religiosos presos, éramos a principal fonte de denúncia no exterior dos crimes praticados pela ditadura. E o papa Paulo VI nos deu ouvidos e apoio”, diz Frei Betto. “Na tentativa de nos neutralizar, nos obrigaram a partilhar do mesmo regime carcerário dos presos comuns. Nem assim cessamos as denúncias, pois as informações sempre nos chegavam.” A voz dos dominicanos ecoou em todo o mundo e levou a uma rejeição cada vez maior à ditadura no exterior.

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Dom Paulo Evaristo Arns (Foto – PEDRO MARTINELLI/Dedoc) – http://tokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com/brasil/como-arcebispo-dom-paulo-fez-a-opcao-pelos-mais-pobres/

A denúncia

Em 1970, a mudança de comando na Arquidiocese de São Paulo aumentou o fosso entre Igreja e militares. Frei Betto afirma que, mesmo após visitar dominicanos no Dops e ouvir seus relatos, o então arcebispo, dom Agnelo Rossi, seguia negando que houvesse tortura nas prisões. O Vaticano, então, resolveu transferir dom Agnelo a Roma – uma espécie de promoção às avessas, já que abriu espaço para seu auxiliar, dom Paulo Evaristo Arns, assumir a arquidiocese.

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Fonte – http://tokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com/brasil/como-arcebispo-dom-paulo-fez-a-opcao-pelos-mais-pobres/

A essa altura, a simpatia de dom Paulo pelo golpe já tinha virado fumaça. Ele se tornou firme opositor da ditadura no Brasil, tanto no discurso quanto na prática: fundou a Comissão Justiça e Paz, o grupo Clamor (uma rede de solidariedade a fugitivos das ditaduras sul-americanas) e o projeto Brasil: Nunca Mais, que reunia em segredo documentos relativos aos porões da ditadura militar. Além disso, promoveu a criação de várias pastorais (como a da Moradia, a da Criança e a Operária), de valioso papel na consolidação dos movimentos sociais na reta final do período dos militares no comando do país.

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Fonte – https://www.catarse.me/dom_paulo_evaristo_arns_coragem_resistencia_e_esperanca_nos_tempos_da_ditadura_militar_no_brasil_8b59

Durante os anos de chumbo, surgiram também as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Incentivadas por seguidores da Teologia da Libertação, como Leonardo Boff e o próprio Frei Betto, as CEBs tentavam suprir a falta de sacerdotes nas áreas de baixa renda, em especial no Nordeste. “Por serem movimento de Igreja, a repressão não deu muita importância a elas, que se tornaram incubadoras de movimentos populares”, diz Frei Betto.

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Dom Paulo Evaristo Arns sendo entrevistado ao lado de Ulysses Guimarâes – Fonte – http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2016/12/14/dom-paulo-evaristo-arns-e-seu-coracao-corintiano/

Em 1975, o caso do jornalista Vladimir Herzog, torturado até a morte no quartel-general do II Exército, em São Paulo (veja ao lado), abalou os alicerces do regime. A partir do episódio, ficou impossível negar o que acontecia nos porões. No ano seguinte, o metalúrgico Manuel Fiel Filho foi outra vítima fatal da tortura nas prisões do Doi-Codi. A repercussão do assassinato – mais um suicídio por enforcamento, na versão dos militares – foi tão expressiva que o general Ednardo d’Ávila Mello, advertido pelo presidente Ernesto Geisel no caso Herzog, foi exonerado do comando do II Exército. Para o jornalista Elio Gaspari, autor da maior obra sobre a ditadura militar brasileira, o enquadramento de Geisel aos militares do porão no episódio marcou o fim da bagunça na tropa.

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Fonte – https://www.catarse.me/dom_paulo_evaristo_arns_coragem_resistencia_e_esperanca_nos_tempos_da_ditadura_militar_no_brasil_8b59

A essa altura, a Igreja tinha assumido uma postura de clara oposição. No final dos anos 1970, as Forças Armadas tentaram sem sucesso deportar dom Pedro Casaldáliga, bispo de origem catalã que atuava na região de São Félix do Araguaia (MT). Próximo de dom Pedro, o padre João Bosco foi morto em 1976 com um tiro dentro de uma delegacia onde tinha ido denunciar abusos contra camponeses. A sequência da queda de braço com os religiosos incluiu investigação a outros bispos, como dom Fernando Gomes e dom Waldyr Calheiros, e o monitoramento de perto do jornal O São Paulo, da Arquidiocese da cidade – o último veículo brasileiro a livrar-se da censura prévia, já em 1978.

O ato ecumênico por Herzog na Sé

“A morte do Vlado evidenciou muitas ações dos bispos. Antes, o registro do que diziam ficava no canto de página dos jornais. Isso quando saía”, diz o jornalista Audálio Dantas, autor de As Duas Guerras de Vlado Herzog, livro-reportagem que recebeu o Prêmio Jabuti em 2013. A versão de suicídio apresentada pelos militares foi contestada não apenas pelos colegas do jornalista morto, mas também por líderes religiosos. Herzog era judeu. Segundo o rito judaico, os suicidas devem ser enterrados perto dos muros dos cemitérios. Mas ao ver o corpo, o rabino Henri Sobel tomou uma decisão que teve o peso de denúncia: ordenou que Herzog fosse enterrado na área comum do Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo, um claro desmentido à versão dos militares.

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Fonte – https://www.catarse.me/dom_paulo_evaristo_arns_coragem_resistencia_e_esperanca_nos_tempos_da_ditadura_militar_no_brasil_8b59

Foi o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, do qual Audálio fazia parte, que teve a ideia de um culto ecumênico em memória de Herzog. No dia 28 de outubro, mesma data em que dom Paulo concordou em ceder a Catedral da Sé para o ato, dom Eugênio Salles recusou no Rio de Janeiro pedido da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para uma missa com o mesmo objetivo. A recusa não era inexplicável: o clima era de tensão, com constantes ameaças. Pouco antes do ato na Sé, dom Paulo Evaristo Arns foi visitado por dois secretários do governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins. Segundo os emissários, centenas de policiais tinham ordens de atirar ao menor sinal de confusão. Usando uma inauguração como pretexto, o presidente Geisel abalou-se de Brasília para a capital paulista para acompanhar os desdobramentos. “Só foi embora quando o culto terminou”, diz Audálio.

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Dom Helder Câmara ao lado de Dom Paulo Evaristo Arns – Fonte – http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2016/12/14/dom-paulo-evaristo-arns-e-seu-coracao-corintiano/

O culto ecumênico aconteceu no dia 31 de outubro de 1975, presidido por dom Paulo e com a presença do rabino Henri Sobel e do pastor protestante James Wright. Mesmo proibida qualquer menção a seu nome em veículos de imprensa, dom Hélder Câmara também compareceu, sem pronunciar palavra. Mais de 300 barreiras policiais impediam o o da população à catedral; ainda assim, 8 mil pessoas lotaram o lugar.

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Fonte – https://www.catarse.me/dom_paulo_evaristo_arns_coragem_resistencia_e_esperanca_nos_tempos_da_ditadura_militar_no_brasil_8b59

A memória

Da segunda metade dos anos 1970 em diante, a Igreja brasileira acertou o o com a sociedade civil na caminhada de retorno à democracia. Entre 1976 e 1977, a CNBB lançou documentos denunciando de forma explícita casos como o que vitimou o padre João Bosco e o operário Fiel Filho. “A segurança, como bem da Nação, é incompatível com uma permanente insegurança do povo”, dizia uma dessas notas, condenando as “medidas arbitrárias”, os “desaparecimentos inexplicáveis” e “inquéritos aviltantes” promovidos pelos militares. Ainda assim, alguns bispos – entre eles dom Antônio Castro Mayer e dom Geraldo Sigaud – teriam, segundo o historiador Paulo César Bezerra, permanecido fiéis ao regime militar até o fim.

Com a consolidação da abertura política, a tensão entre religiosos e militares diminuiu. Entretanto, o lado da fé continuou somando vítimas, como o líder metalúrgico Santo Dias da Silva, militante da Pastoral Operária, morto pela Polícia Militar em outubro de 1979 enquanto participava de uma greve em São Paulo. A violência representou mais um abalo nas já frágeis estruturas do regime: o velório, novamente na Catedral da Sé, reuniu mais de 15 mil pessoas e o cenário forçou uma mudança de postura do governo com relação às entidades sindicais.

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Velório de Dom Paulo. Foto Evaristo Dantas, Agência O Globo – Fonte – http://oglobo.globo.com/brasil/veja-as-imagens-do-velorio-de-paulo-evaristo-arns-20656677

A CNBB assumiu no final da década papel ativo na campanha pela anistia e depois contribuiu na articulação do movimento Diretas Já. Além disso, seguiam os esforços para preservar a memória do período. A Editora Vozes, vinculada à Igreja Católica, editou o livro Brasil: Nunca Mais em 1985, meses depois da retomada da democracia. Se tinham sido fundamentais na sustentação do regime militar quando este se iniciou, no apagar das luzes da ditadura os religiosos abriam caminho para que não fossem esquecidos os duros anos de repressão.

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Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo (Foto: Divulgação) – Fonte – Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo (Foto: Divulgação)

O projeto Brasil: Nunca Mais resultou em cerca de 900 mil páginas, referentes a centenas de processos. O material foi microfilmado e enviado ao Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, na Suíça, para evitar que fosse apreendido e destruído pelos militares. Foram necessários 25 anos até que esse pedaço da história brasileira fosse repatriado. Em 2011, os microfilmes voltaram ao país, e em agosto de 2013 foi lançado o BNM Digital, site que disponibiliza a consulta a toda essa documentação.

Hoje, com a Comissão Nacional da Verdade e suas ramificações estaduais, o país busca iluminar os cantos escuros do período gerado pelo golpe e, a partir deles, enxergar melhor a si mesmo. A ditadura talvez não tivesse se consolidado sem a bênção inicial da Igreja Católica ao novo regime, mas as denúncias e a combatividade dos religiosos foram igualmente fundamentais na retomada da democracia.

SAIBA MAIS

Livros

Brasil Nunca Mais, dom Paulo Evaristo Arns, Editora Vozes, 1996

Os Bispos Católicos e a Ditadura Militar Brasileira: A Visão da Espionagem, Paulo César Gomes Bezerra, Editora Multifoco, 2013

A Ditadura Derrotada, Elio Gaspari, Cia. Das Letras, 2003

UM MILITAR EXEMPLAR

Tenente-brigadeiro Rui Moreira Lima
Tenente-brigadeiro Rui Moreira Lima

Herói de guerra e democrata, o brigadeiro Rui Moreira Lima soube posicionar-se nos melhores e piores momentos das Forças Armadas

Paulo Ribeiro da Cunha

Fonte – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/um-militar-exemplar

Sê um patriota verdadeiro e não te esqueças de que a força somente deve ser empregada a serviço do Direito”. Boa parte das gerações militares contemporâneas, bem como setores políticos e acadêmicos, parecem desconhecer o real significado destas palavras atualmente.

Rui Moreira Lima em fotografia de 1953, no Rio de Janeiro. O militar ganhou condecorações por sua participação na Segunda Guerra Mundial e foi torturado por se opor ao regime ditatorial de 1964. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)
Rui Moreira Lima em fotografia de 1953, no Rio de Janeiro. O militar ganhou condecorações por sua participação na Segunda Guerra Mundial e foi torturado por se opor ao regime ditatorial de 1964. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)

Escritas em 1939 pelo juiz de direito Bento Moreira Lima numa carta para seu filho, o cadete Rui Moreira Lima, que aos 20 anos ingressava na Força Aérea Brasileira (FAB), elas parecem ter servido como uma declaração de princípios que nortearia a vida do futuro brigadeiro.

Tenentes Rui Moreira Lima, Alberto Martins Torres e Renato Goulart Pereira
Tenentes Rui Moreira Lima, Alberto Martins Torres e Renato Goulart Pereira

Poucos anos depois, Rui Moreira Lima seria um herói de guerra. Com outros jovens aviadores brasileiros, todos voluntários, integrou o grupo de aviação da FAB, o “Senta Púa”, unidade que recebeu uma das mais altas condecorações americanas em reconhecimento pela bravura de seus membros. Ao final da Segunda Guerra, sua folha de serviços computava 94 missões, pelas quais ganhou as mais altas condecorações militares do Brasil, da França e dos Estados Unidos. 

Representação do Republic P-47 Thunderbolt com que o tenente Rui combateu na Itália - Fonte -www.militar.org.ua
Representação do Republic P-47 Thunderbolt com que o tenente Rui combateu na Itália – Fonte -www.militar.org.ua

Sempre que podia, declamava com sabor de poesia a carta recebida de seu pai. Em um dos trechos, ela aconselhava: “Obediência a seus superiores, lealdade aos teus companheiros, dignidade no desempenho do que te for confiado, atitudes justas e nunca arbitrárias”. Nada mais válido nos tempos da Guerra Fria pra lá de quente que se iniciaria em 1947. O debate em que esteve imerso o jovem oficial trazia não somente o desafio de edificar uma nação, mas principalmente o de construir e defender uma democracia. Patriota, democrata e nacionalista, Rui Moreira Lima teve uma discreta empatia à esquerda, e uma identificação sem militância com o PSB (Partido Socialista Brasileiro), agremiação que tinha entre seus membros militares históricos, compromissados com a democracia e a nação, como o almirante Herculino Cascardo (1900-1967) e o general Miguel Costa (1885-1959).

Ao retornar da guerra, como tenente, Moreira Lima foi condecorado pelas missões na 2ª Guerra Mundial pela FAB (Foto: Agência Força Aérea/Arquivo)
Ao retornar da guerra, como tenente, Moreira Lima foi condecorado pelas missões na 2ª Guerra Mundial pela FAB (Foto: Agência Força Aérea/Arquivo)

Nos anos 1950 e 1960, atuou na defesa da legalidade democrática e em causas nacionalistas, como a do Petróleo é Nosso. Na polarização entre grupos políticos e ideológicos dentro da própria FAB, condenou tentativas golpistas – como a de abortar a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek (1956) e as Revoltas de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959) – e apoiou a posse de João Goulart por ocasião da renúncia de Jânio Quadros (1961). “O soldado não conspira contra as instituições a que jurou fidelidade. Se o fizer, trai seus companheiros e pode desgraçar a nação”, escreveu o pai. 

Jango assiste, em 1963, à demonstração da FAB, com a presença de Rui Moreira Lima, à sua esquerda. O militar se pôs em defesa da ordem democrática e da manutenção da legalidade nos momentos de ruptura. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)
Jango assiste, em 1963, à demonstração da FAB, com a presença de Rui Moreira Lima, à sua esquerda. O militar se pôs em defesa da ordem democrática e da manutenção da legalidade nos momentos de ruptura. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)

A chegada de 1964 encontrou o militar no comando da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, a mais poderosa unidade de combate da FAB no período, cuja tradição ele ajudou a forjar como piloto de caça nos campos de batalha italianos.

Rui Moreira Lima acompanhava com preocupação os desdobramentos golpistas e lamentava a imobilidade do governo em reagir naquilo que era o princípio basilar das Forças Armadas: a hierarquia e a disciplina.

Reprimiu com rigor tentativas de envolver os comandados em aventuras, chegando a prender alguns de seus jovens oficiais. Em reação à movimentação das tropas do general Mourão, em março de 1964, sobrevoou em um rasante a coluna golpista já próxima de Areal (RJ), cuja tropa foi tomada por pânico. Na volta à unidade, confabulou com seus superiores que os rebelados poderiam ser dissolvidos em um ataque de precisão, sem maiores baixas. Mas só tomaria essa iniciativa se recebesse ordens para tanto. Diante do posicionamento do presidente João Goulart em não resistir e partir para o exílio, deu-se por encerrada qualquer possibilidade de reação.

1964 - Fonte - www.ocafezinho.com
1964 – Fonte – http://www.ocafezinho.com

Ali estava encerrada sua carreira militar, bruscamente interrompida. Antes, porém, teve ainda um ato de resistência: só aceitou ar  o comando da Base Aérea se fossem cumpridas todas as formalidades, postura que constrangeu seus algozes. “A honra é, para ele [o militar], um imperativo e nunca deve ser mal compreendida”. Pouco depois, Rui Moreira Lima foi preso em casa e teve de responder a três inquéritos policiais militares. Amargou um total de 153 dias no cárcere. Em uma das prisões, nos anos 1970, chegou a ser torturado.

30-12-1964

Diante do quadro de vilania que caracterizou o regime militar, qualificou de infame e covarde a figura do torturador – que, portanto, não deveria ser contemplado com a anistia. Visão compartilhada com o pai: “O soldado nunca deve ser um delator, senão quando isso importar a salvação da pátria. Espionar os companheiros, denunciá-los, visando a interesses próprios, é infâmia, e o soldado deve ser digno”.  

Tanques em frente ao Congresso Nacional patrulham a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, após o golpe militar de 1964 - Fonte - https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-1985)
Tanques em frente ao Congresso Nacional patrulham a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, após o golpe militar de 1964 – Fonte – https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-1985)

Inegavelmente a pátria estava em perigo, e o campo de batalha ou a ser outro para o então coronel. A perseguição foi uma constante para as centenas de cassados, entre oficiais e praças das Forças Armadas e das Polícias Militares. Todos os aviadores, por portarias secretas, foram proibidos de voar.

Rui 1964 (1)Rui 1964 (2)

JORNAIS DE 1964 MOSTRAM O QUE O BRIGADEIRO RUI MOREIRA LIMA SOFREU

Por convicção, não aderiu à opção de resistência armada ao regime militar: decidiu combater a ditadura na ação política. Foi um dos que ergueram a bandeira pela anistia ampla, geral e irrestrita. Ao lado do brigadeiro Francisco Teixeira e de outros oficiais, Rui Moreira Lima foi um dos fundadores da Adnam (Associação Democrática e Nacionalista dos Militares).

O Brigadeiro Rui de novo na cabine de um P-47 - Fonte - http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-mentira-que-insiste-em-sobreviver-8561.html
O Brigadeiro Rui de novo na cabine de um P-47 – Fonte – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-mentira-que-insiste-em-sobreviver-8561.html

A anistia saiu em 1979, mesmo ano em que faleceu seu pai. Mas ela veio restrita em relação aos militares cassados, inclusive o brigadeiro, a despeito de sua folha de serviços. 

À frente da Adnam, continuou intervindo na agenda política com o objetivo de aprofundar a democracia e a construção de um efetivo estado de direito. Buscava não só a ampliação da anistia como a reintegração, mas também a  reincorporação dos militares cassados. Em outra frente de luta, preocupava-se com a memória e a história. Escreveu Senta Púa e Diário de Guerra, e contribuiu com depoimentos em livros, teses e documentários. Por sua intervenção direta, o acervo da Adnam foi entregue para a guarda do Cedem – Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Acima, recebe pedido de desculpas por meio do ministro da Justiça, em 2011. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)
Acima, recebe pedido de desculpas por meio do ministro da Justiça, em 2011. (Foto: Acervo Pedro Luiz Moreira Lima)

Em seus últimos anos, através de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) patrocinada pela Adnam e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), contestou a anistia aos torturadores e apoiou com entusiasmo a formação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012. Segundo ele, a CNV era um instrumento necessário para aproximar os militares e a sociedade civil, e não pode ser considerada expressão de revanchismo, mas sim de justiça e de um necessário resgate da história. Inclusive a sua história. 

Já com mais de 90 anos, não se furtou a outras polêmicas. Em 2012, subscreveu pela Adnam o manifesto “Aos Brasileiros”, confrontando um manifesto de golpistas elaborado por militares da reserva do Clube Militar. No ano seguinte patrocinou a “Carta do Rio de Janeiro”, documento endereçado à Presidência da República com vistas a equacionar em definitivo a questão de uma anistia ampla para os militares cassados e perseguidos após o golpe. 

Rui Moreira Lima * 12/06/1919 + 13/08/2013 - Fonte - revistaaerolatina.blogspot.com
Rui Moreira Lima * 12/06/1919 + 13/08/2013 – Fonte – revistaaerolatina.blogspot.com

Só depois de seu falecimento, em fins de 2013, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa a uma ação reparatória reconhecendo seus direitos. Não viveu, portanto, para ver o epílogo de uma longa trajetória militar e política: a promoção à patente de tenente-brigadeiro, último posto da Força Aérea.

A FAB o dignificara já no enterro, com toque de silêncio e voos rasantes de aviões de caça da unidade Senta a Púa. A homenagem ao oficial cassado seria um o importante para a decisão posterior do STF. 

Reconhecimento ainda mais cheio de significado, particularmente para os cadetes da Academia da Força Aérea, seria se a instituição de ensino reverenciasse Rui Moreira Lima em um dos painéis de sua ampla entrada onde constam pronunciamentos de várias personalidades civis e militares. Como texto, o ensinamento da carta de Bento Moreira Lima, um conselho que retrata a vida do filho ao mesmo tempo em que serve de lição aos militares e cadetes das novas gerações: “O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas. Estas não devem esquecer que é este povo que deve inspirá-las nos momentos graves e decisivos”.   

Paulo Ribeiro da Cunha é professor de Teoria Política na Universidade Estadual Paulista e autor de Militares e militância: uma relação dialeticamente conflituosa (Editora Unesp/Fapesp, 2014).

Saiba Mais

BONALUME NETO, Ricardo. A nossa Segunda Guerra: os brasileiros em combate, 1942 -1945. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1995.

FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.

SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro/ São Paulo: Ed. Civilização Brasileira/ Expressão Popular, 2010 [1965].

Documentários

Senta a Pua! (Erik de Castro, 1999) 

A Cobra Fumou (Erik de Castro, 2003)

O Brasil na Batalha do Atlântico (Erik de Castro, 2012)

Internet

Carta de Bento Moreira Lima a Rui Moreira Lima: http://bit.ly/1I5lKCi