DEUS, O DIABO E O CINEMA DE GLÁUBER ROCHA

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Existem livros inteiros falando de Cinema Novo, e de como Gláuber foi importante para este movimento e para a história do cinema brasileiro. Eu não discordo disso, mas já estava tão acostumado a colocá-lo entre os meus cineastas favoritos, que sou obrigado a questionar-me de vez em quando sobre quanto desta iração é sincera e quanto é acomodação; falar que aprecia porque todo mundo, entre os que se declaram intelectuais, apreciam. Eu acho que este exercício é sempre muito proveitoso, desde que não se torne uma paranoia.

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Acontece que eu, até certo período de minha “vida cinéfila”, acreditei que só o cinema europeu era cinema de verdade, e por isso seria natural que eu intitulasse o Gláuber como meu diretor brasileiro favorito (ele sofreu bastante influência de cinema europeu). Já tinha na ponta da língua a minha lista de diretores favoritos, que incluía nomes como Godard, Bergman, Luchino Visconti, Tarkovsky, Fassbinder e Fellini. Mas de uns dois ou três anos pra cá, tenho estado muito mais próximo do cinema americano, do cinema de gênero, dos filmes policiais dos anos 70, dos exploitations italianos, dos westerns, dos noir, dos melodramas protagonizados por Joan Crawnford, Bette Davis e Barbara Stanwick.

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E quanto ao cinema brasileiro, eu descobri o cinema da Boca do Lixo e o cinema da década de 70 em geral, amparado por alguns blogs que fizeram o resgate destes filmes tão ridicularizados ou simplesmente ignorados no ado, e pelo Canal Brasil, é claro, já que grande parte destes filmes não tem lançamento em DVD. Mas a minha influência maior neste processo foi, sem duvida, o blog de Andrea Ormond, Estranho Encontro. Eu me sentia incentivado a perseguir os filmes que ela comentava, encontrando alguns deles na internet, e aguardando ansiosamente por exibições de alguns deles nas madrugadas do Canal Brasil.

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Depois de descobrir que o cinema ia muito além do que eu imaginava, que o cinema americano não tem interesses apenas comerciais, que o cinema brasileiro  teve na década de 70 seu período de atividade mais intensa, que o cinema de gênero pode ser muito interessante, e que os recursos utilizados pelos diretores vinculados ao cinema de arte não são infalíveis; eu fiquei com uma grande indagação: e agora?

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O que fazer com os Pasolinis, com os Antonionis, com os Bergmans, e com os Tarkovskys? Trocar todos estes por aqueles seria muito óbvio, e muito hipócrita. Idolatrar tudo que é popular e condenar o erudito, é uma atitude tão burra, como idolatrar o erudito e condenar o pop (essa discussão é interminável).  Mas eu aprendi que não existe uma forma certa de fazer cinema. Se existisse não teria graça. Eu me impressionei bastante com algumas produções da Boca, e acho um absurdo que algumas destas não encabecem listas de melhores filmes brasileiros. Contudo já revi filmes do Gláuber mais recentemente e não posso deixar de irá-los.

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Então, depois dessa longa introdução falemos de Gláuber. Eu revi “Deus e O Diabo na Terra no Sol’’ e a primeira coisa que me saltou aos olhos foi que não se pode analisar o diretor apenas em termos de sua contribuição para o Cinema Novo. Os cinemanovistas eram parceiros, intelectuais de esquerda que tinham muitas referências em comum, e que tinham como objetivo principal criar uma forma de expressão legitimamente brasileira, calcado principalmente nas referências ao neorrealismo e à nouvelle vague, e no repudio  às chanchadas da Atlântida, e às imitações  da Vera Cruz das produções hollywoodianas.

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Antes de mais nada, poderíamos questionar esse posicionamento do Cinema Novo, em relação ao cinema que se fazia no nosso  país até então. Acho louvável que eles quisessem implantar suas influências de cinema europeu  em suas produções, e que tenham intencionado criar algo novo, mas é no mínimo estranho que um movimento que pretendia desvendar a cultura brasileira, recusasse, por exemplo, as chanchadas protagonizadas por Grande Otelo e Oscarito. E esse discurso antiamericano é extremamente desgastante. O fato é que Gláuber Rocha compartilhava destes posicionamentos que, como eu já disse, considero questionáveis, mas em sua forma de fazer cinema, não ficava às lições do Cinema Novo.

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 Em “Deus e o Diabo…’’ temos um diretor que, apesar de adotar algumas medidas que se associem facilmente ao neorrealismo, no engajamento social e na denuncia das mazelas de seu país, e à nouvelle vague, no trabalho de câmera ousado, como no belíssimo travelling, já tão famoso, e no uso de câmera na mão; vai muito além disso. Talvez nesse aspecto Glauber seja muito associado à Godard: os dois não conseguiram restringir-se aos movimentos que encabeçaram, pois tinham ideias maiores.

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E isso talvez explique a iração mútua entre os dois cineastas. No filme de 1964 vemos o uso frequente de teatralidade, que não ia de encontro aos ideais neorrealistas, e que salvo engano, não foi utilizado pelos outros cinemanovistas. Temos um rigor estético, que também não foi visto em outros filmes brasileiros da época. Em alguns enquadramentos a posição dos personagens no espaço filmado é muito marcada, e a movimentação é meticulosamente ensaiada, o que o diferenciaria, creio eu, dos filmes da nouvelle vague.

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Eu já li que Gláuber Rocha sofreu influência de Kurosawa, e acho que não seria errado associar esta meticulosidade ao diretor japonês: as atuações que vemos em filmes como Rashomon e Trono Manchado de Sangue são bastante teatrais, e viscerais, com um posicionamento dos personagens muito bem calculado. A identificação da  influência do teatro de Brecht também seria cabível, mas minhas limitações intelectuais impedem-me de aprofundar-me nesta questão.

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A questão é: o segundo longa de Gláuber tem imagens maravilhosas, atuações impressionantes, a música de Villa Lobos no momento que talvez seja o mais emblemático do filme, e diálogos poéticos, muito bem escritos. Mas em relação ao conteúdo do filme? A crítica às alegorias de Gláuber, ao seu excesso de hermetismo, e de discursos políticos e sociais, procede? Essa é uma questão complicada. “Deus e o Diabo…” não é meu filme favorito do Gláuber (eu prefiro Terra em Transe), mas revendo o filme pela quarta ou quinta vez, eu tenho que afirmar: Gláuber é cinema! Eu reconheço que ele andou se confundindo na década de 70, mas se “Deus e o Diabo…’’ e “Terra em Transe” não são cinema, eu realmente não sei o que é cinema.

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Eu já citei em outra postagem uma frase do Kurosawa, em que ele afirma que os grandes filmes tem no máximo uns 5 minutos de puro cinema, e que os filmes dele também tem essa quantidade, e ele se sente satisfeito com isso. E Gláuber consegue no filme de 64 vários momentos de puro cinema: bem mais do que outros diretores consagrados. Um amigo meu, que me acompanhou na exibição me falou que tem a impressão de que o Gláuber está dizendo: “olha só o que sei fazer com a minha câmera”. Eu não vejo problema algum nisso. A arte não está livre do ego do artista. Fazer arte não deixa de ser o ato de se gabar das influências que tenha, ou das influências que se é capaz de superar, criando algo novo. Acho que Gláuber cria, constrói e desconstrói neste filme.

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O roteiro de “Deus e o Diabo…” realmente não chega ao nível de genialidade da direção do cineasta baiano. Os que já estão familiarizados com os romances regionalistas não verão novidades no drama do sertanejo Manoel. Gláuber não optou por uma humanização do personagem , a exemplo do que fez Graciliano Ramos, no clássico da literatura “Vidas Secas”, ao falar da vida no sertão.

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A universalização do sertão de Guimarães Rosa, com o sertanejo questionando o seu mundo, mesmo recluso nos limites de terra delimitados por uma cerca, também não dá as caras por aqui. Manuel é só mais um sertanejo pobre, que poderia ser José, João ou Joaquim. Não há desenvolvimento do personagem; ele é só mais um dentre muitos que são ludibriados pela religião, e que entram para o cangaço por não ter nenhuma perspectiva de vida. A mulher de Manoel, Rosa,  me chamou mais atenção desta vez, do que nas outras vezes em que eu vi no filme.

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Ela é submissa, não tem voz no contexto onde está inserida, e por isso tem pouquíssimas falas ao longo do filme. Mas Gláuber a coloca em  uma posição de observadora e de julgadora das ações do marido. Yoná Magalhães, em interpretação  espetacular, fala com seu olhar inquisidor, o que não tem chance de falar com palavras. Ela tem uma visão muito lúcida e racional, não se deixa ludibriar pelas promessas de um paraíso vindouro feitas por São Sebastião, enquanto seu marido é cegado pela fé.

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O que ocorre, porém, é que essas características não são próprias da personagem; estão muito mais ligadas a uma concepção da mulher como voz da razão da família, que embora não possa seguir o papel de chefe, está sempre apta a aconselhar o marido, com argumentos sensatos. A figura feminina, nestes termos, já foi usada no cinema e na literatura inúmeras vezes, e faz parte do senso comum. Rosa não a, portanto, de uma alegoria. Uma alegoria bem feita, mas ainda assim, uma alegoria. A crítica à religião, visto como um instrumento alienante,  que parece ser o mote do filme, e que  já havia sido tratado no primeiro longa de Gláuber, Barravento, também não é muito aprofundada, embora gere algumas cenas de grande impacto visual e cênico.

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Concluindo, eu digo novamente que eu ainda considero “Deus e o Diabo…’’ uma obra-prima, mas que existem algumas ressalvas que podem ser feitas a respeito do filme, e algumas limitações em seu discurso. A revolução e a fúria da imagem de Gláuber não são acompanhadas por um roteiro muito bem desenvolvido. Já em “Terra em Transe’’ Gláuber encontraria seu lugar. Abraçaria o caos. Em Terra em Transe, além de imagens delirantes, temos os delírios do personagem. Nesse filme, a fúria, a ambição revolucionária e o desespero do personagem, a “fome do absoluto”, do protagonista Paulo Martins, formam um encaixe perfeito com as alucinações do próprio Gláuber e com a revolução cinematográfica que o diretor queria implantar aqui no país.

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Terra em Transe é um filme grande em todos os aspectos, e as limitações de roteiro do filme de 1964, são superadas neste filme de 1967. Aqui os discursos esquerdistas e populistas, que seduziam tão facilmente os intelectuais da época, inclusive os cinemanovistas, dão lugar a uma postura mais crítica e desconfiada. A reprodução de estereótipos da vida sertaneja daria lugar a uma revisão complexa das correntes políticas que surgiram no Brasil a partir da década de 30.

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E o diretor se permitiria usar do humor e do deboche para retratar o conservadorismo e o populismo e as falhas de discurso de ambas as correntes, de uma forma que com certeza ganharia a aprovação de Sganzerla. Terra em Transe ainda é meu filme brasileiro favorito. Nele Gláuber Rocha está em seu ápice de loucura e de criatividade, arriscando como sempre e acertando mais do que jamais fizera em qualquer outro filme seu.

AUTOR  – LUÍS ANTÔNIO DE SÁ 

FONTE DO TEXTO E DAS FOTOS – BLOG MARAVILHAS CONTEMPORÂNEAS – 

http://maravilhascontemporaneas.blogspot.com.br/2013/07/deus-o-diabo-e-o-cinema-de-glauber-rocha.html

O BRASIL ENTRE BEATOS, CANGACEIROS E CORONÉIS

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Em ‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro’ Glauber Rocha capta as fissuras da sociedade brasileira. Retratando a violência e a crueza das relações sociais no sertão nordestino, constrói a ‘estética da fome’

Alexandre Leitão

Eu andei por esse mundo gente, e conheci a desgraça dos outros… e aprendi uma verdade que estava na Sagrada Bíblia: É olho por olho e dente por dente!

Cangaceiro Coirana, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro.

Durante o século XX, amadureceu no seio da intelectualidade brasileira o desejo de identificar os traços mais característicos do ethos nacional. Sociólogos, antropólogos, historiadores e artistas se perguntavam no que, de fato, se constituiria o Brasil, e o que o impediria de transformar-se num país plenamente realizado nos planos socioeconômico e político. Nomes como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda publicariam obras-chave na tentativa de encontrar um significado para a existência nacional. No campo das artes plásticas, Cândido Portinari retrataria a existência sofrida do sertanejo, e na poesia e dramaturgia Oswald de Andrade ergueria a bandeira do antropofagismo cultural, como resposta e atestado do processo de realização artística no país.

Foi unindo diversas dessas teses, além de criando suas próprias, que Glauber Rocha definiu uma narrativa da história brasileira, expressa em obras como Terra em Transe (1967); e plenamente desenvolvida em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969). Neste longa-metragem, continuação de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), acompanhamos o destino melancólico de Antônio das Mortes, personagem vivido por Maurício do Valle, jagunço e matador de cangaceiros, contratado para realizar um último serviço.

Gláuber Rocha
Gláuber Rocha

Logo nos créditos iniciais, o filme apresenta um rápido sumário em francês, que Glauber – além de diretor, também roteirista do filme – julgou necessário para a compreensão dos eventos e do recorte histórico que queria construir (fruto de uma coprodução franco-brasileira, o prefácio quer explicar a um público estrangeiro os eventos históricos que considera mais relevantes para a compreensão do filme): “Chamam-se – ‘Jagunços’ assassinos de aluguel; ‘Coronel’ grandes proprietários de terras; ‘Beatos’ comunidade de camponeses miseráveis e místicos; ‘Santo’ pessoa que dirige espiritualmente essas comunidades”. Junto ao glossário se encontra uma rápida descrição dos cangaceiros enquanto “bandidos místicos que desapareceram do Nordeste do Brasil em 1940”, tendo sido Lampião o “mais célebre de todos”.

A apresentação reforça o sentido de disparidade estilística e narrativa em relação a Deus e o Diabo na Terra do Sol, que se a no final da década de 1930. Ocorrendo em um momento relativamente atemporal, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro retrata um Nordeste em franco processo de modernização capitalista, no qual crescem as cidades, constroem-se estradas e postos de gasolina, e já se considera inevitável o advento da industrialização e da reforma agrária.

O sertão de Glauber

É em meio a esse cenário de abandono forçado de estruturas arcaicas, que um bando de cangaceiros e beatos, liderado pelo bandoleiro Coirana, ataca um pequeno povoado da caatinga, despertando pavor nas pessoas da região, que são forçadas a implorar pela ajuda de Antônio das Mortes – um jagunço aposentado.

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Chegando à cidade, um oficial da lei esclarece ao pistoleiro que, diferente do tempo das intensas volantes (expedições militares que partiam à caça dos bandos de Lampião, Corisco, e tantos outros), ele espera que tudo seja resolvido de forma rápida. Percebe-se que o perigo real de rompimento da ordem mantida pelo Estado no Nordeste simplesmente inexiste no que concerne ao bando de Coirana. Eles representam uma mera surpresa inconveniente, já que as condições para o surgimento dos cangaceiros por aquelas paragens já haviam, há muito, desaparecido.

O fato pode ser observado quando ocorre a segunda invasão do povoado pelos cangaceiros, retratada por Glauber em uma interminável panorâmica (como se chama a tomada em que a câmera gira sobre seu próprio eixo), na qual o bando, vestido com roupas tradicionais do sertão nordestino e indumentárias próprias de cultos afro-brasileiros, em vez de disparar suas armas contra o inimigo, dança e canta anarquicamente uma gira de louvor a São Cosme e Damião e ao orixá Xangô. O ataque, neste caso, é alegórico, representando a invasão de todo um legado cultural, popular e mestiço, que as elites brasileiras teriam sempre buscado frear.

E é sob esse aspecto que triunfam as pretensões estilísticas do filme de Glauber Rocha. Ao criar um grupo de cangaceiros extemporâneos, o cineasta retrata uma espécie de vingança histórica, segundo a qual uma segunda vinda do Cangaço tenderia a se justificar pela necessidade de punição simbólica da estrutura agrária brasileira, responsável primeiramente pela opressão secular sofrida pelos sertanejos. O chefe local, coronel Horácio (interpretado por Jofre Soares), longe de representar o perigo dos outrora onipotentes donos de terra do Norte, não a de um velho cego, cuja vida se resume a divagar sobre uma realidade que ele jamais consegue apreender completamente. O velho é também desprovido do respeito do delegado Mattos (personagem de Hugo Carvana) e de sua própria mulher Laura, interpretada por Odete Lara, cujo caso amoroso é conhecido por todos os personagens.

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À ausência da necessidade material de uma rebelião (em vista do processo de modernização do sertão nordestino), corresponderia o imperativo de uma justiça simbólica capaz de punir os poderosos pelos crimes que haveriam cometido em tempos já remotos. É a percepção disso que faz Antônio das Mortes arrepender-se do assassinato de Coirana, a quem fere com uma peixeira, e decidir proteger os beatos. Estes são então chacinados por outro exército de jagunços, convocado pelo coronel Horácio.

Em uma cidade já fantasma, resta a Antônio das Mortes, Antão (comandante negro dos beatos, encarnado pelo ator Mário Gusmão) e ao professor de história do vilarejo, interpretado por Othon Bastos, concluírem a vingança iniciada por Coirana, eliminando o coronel e seus matadores. Ao cabo da trama, porém, não há uma multidão jubilosa tomando as ruas da cidade, ou uma sequência explicativa que mostre a celebração dos sertanejos.

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A justiça histórica retratada por Glauber Rocha é crua e desprovida de consequências práticas: o processo de modernização do Nordeste seguirá inexoravelmente, deixando cair por terra as arcaicas relações de trabalho e poder da região, repostas por outras, mais adequadas a um mundo em contínua transformação. Resta a Antônio das Mortes, o pistoleiro redimido, simplesmente marchar sem rumo por uma rodovia empoeirada, tomada por grandes caminhões de carga e ladeada por um posto de gasolina da Shell, símbolos do novo mundo que invade o Sertão e altera sua paisagem.

A estética da fome

A protoanarrativa histórica de Glauber acaba assim por ecoar aquela delineada por Euclides da Cunha, cuja obra Os Sertões, caracteriza a relação entre o Brasil capitalista e modernizante do litoral, e o interior antigo e isolado, como sendo marcada pelo signo da violência. Violência que permeia os laços entre senhores e camponeses – mediada por jagunços – e a violência dos grandes centros urbanos, que desde o final do século XIX buscam sufocar, progressivamente, qualquer experiência ou modelo social que se interponha à marcha do “progresso”.

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Em 1965, o próprio Glauber ressaltaria o traço brasileiro da violência e a necessidade desta existir como nervo central do projeto artístico do Cinema Novo (representando ainda um relevante instrumento de transformação política) em seu manifesto “Uma estética da fome”, publicado na Revista Civilização Brasileira.

Nele, o cineasta defende que “somente uma cultura da fome, mirando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência. (…) Pelo cinema novo: o comportamento exato de um faminto é a violência e a violência de um faminto não é primitivismo”. Esta se veria traduzida de maneira ritualizada nas alegóricas cenas de assassinato de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, primeiro filme colorido do diretor: a paleta de cores de cada plano e cada sequência remete quase sempre ao vermelho, a tons terrosos, à sujeira e ao sangue.

O imenso impacto estilístico e narrativo do Cinema Novo (com destaque para as obras de Glauber Rocha) rondaria fantasmagoricamente a história do cinema nacional, ecoando até os dias de hoje. Como se pode atestar em produções recentes, caso de O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, escolhido para ser o candidato brasileiro ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2014.

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Na trama, seguimos diversos grupos de personagens, de distintos níveis econômicos, habitantes da mesma rua ocupada por um condomínio de luxo, em Recife. Os prédios, que compõem o conjunto habitacional da narrativa, acabam por se tornar o espaço de realização de tensões sociais e históricas, ecoantes do Brasil colonial, tal qual descrito por Gilberto Freyre em seu livro Casa-Grande & Senzala: “Na zona agrária (brasileira) desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – uma minoria de brancos e brancarões dominando patriarcais, polígamos, do alto das casas-grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palha, vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão”.

Na nova realidade de um Brasil que se urbaniza, o antigo senhor de engenho, representado em O som ao redor pelo personagem Francisco, torna-se investidor imobiliário, não se furtando em considerar a vizinhança em que habita como sua propriedade pessoal. O papel antes reservado aos escravos a a ser exercido pelas empregadas domésticas, que muitas vezes, quando jovens, são “pegas para criar” por seus patrões, os quais afirmam, por vezes, considera-las “da família” – materializando relações profissionais que estão muito distantes do que se esperaria de uma lógica de trabalho livre. As senzalas transformam-se nas famigeradas “áreas de serviço” e “quartos de empregada”, recintos de dimensões reduzidas e altas temperaturas, por vezes dominados pelo mofo e pela umidade – reservados a uma força de trabalho que, no condomínio, considera-se estar apenas de agem.

E quanto aos outrora folclóricos jagunços, estes se transmutam nos sempre presentes vigias de rua – representados no filme pelo personagem Clodoaldo, interpretado por Irandir Santos, e seus comandados. Estes deixam de lado o gibão e o chapéu de couro, a peixeira, e a garrucha, para vestirem o já habitual colete preto, sem mangas, marcado nas costas com palavras como SEGURANÇA ou CONTENÇÃO. Longe de visarem cangaceiros e beatos, buscam agora os chamados intrusos, pivetes e trombadinhas, nos quais preferem aplicar seus “cala-boca” ou “sossega-leão”, do que apelar para a lei de um Estado racionalista, sustentado por instituições, ao menos oficialmente, não-patriarcais. E talvez seja neste aspecto que O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro tenha se tornado, infelizmente, defasado. O Brasil arcaico que tanto Glauber Rocha quanto a época em que viveu consideravam moribundo e superado, parece continuar vivo nas entranhas do Brasil moderno.

FONTE – http://www.revistadehistoria.com.br/secao/cine-historia/o-brasil-entre-beatos-cangaceiros-e-coroneis

A ENTREVISTA DE GLAUBER ROCHA COM ZÉ RUFINO, O MATADOR DE CORISCO

O cangaceiro Corisco

Autor – Rostand Medeiros

Como um grande apreciador da sétima arte e um curioso sobre a história do cangaço, seria inevitável que um dia eu viesse a assistir as obras cinematográficas de Glauber Rocha, onde este baiano utilizou o cangaço como parte de suas temáticas.

Obras como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e o “Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, se não foram os primeiros filmes a mostrar este fenômeno de banditismo, certamente foram películas marcantes, principalmente fora do Brasil.

Jornal “Diário de Notícias”, edição de 21 de fevereiro de 1960

Eu sempre me perguntei de onde veio a inspiração para Glauber Rocha ter criado estas obras. Perguntava-me que tipo de envolvimento ele teve com livros clássicos sobre o assunto? Ou quantas outras películas cinematográficas sobre o cangaço marcaram a sua mente para realizar estes trabalhos?

Um tempo atrás chegou as minhas mãos a edição número 30, da “Revista da USP”, onde nas páginas 290 a 306, a professora Josette Monzani, da Universidade Federal de São Carlos, trás um interessante artigo intitulado “Glauber e a Cultura do Povo” e eu encontrei uma parte da resposta que desejava.

Glauber Jornalista?

A acadêmica aponta que para Glauber Rocha realizar as suas obras ele teria reunido um levantamento da visão popular do cangaço. O cineasta teria utilizado cordéis, recortes de jornal e cantigas para compor personagens marcantes como Corisco, interpretado por Othon Bastos e Antônio das Mortes, conduzido pelo ator Mauricio do Valle.

Glauber Rocha – Fonte – http://www.omni-bus.com

Além do material documental, a autora do artigo apontava que Glauber Rocha utilizou de “entrevistas” para criar seus trabalhos.

Mas que entrevistas eram estas?

Então descobri que em 1960, o irrequieto Glauber Rocha, então com 21 anos de idade, enfrentou os ainda duros trajetos em direção a cidade baiana de Jeremoabo, como repórter do jornal “Diário de Notícias”, de Salvador, onde realizou uma interessante entrevista com um dos mais eficientes caçadores de cangaceiros, o oficial da polícia baiana José Rufino.

Achei que realmente eu precisava ler este material.

Havia no artigo da professora uma reprodução fotográfica da reportagem do jornal “Diário de Notícias”. Mas, infelizmente, como é comum em obras de cunho acadêmico, a foto estava com uma resolução tão ridícula que impossibilitava a visualização. Assim desisti de conhecer momentaneamente um pouco mais daquele trabalho.

José Osório de Farias, o Zé Rufino – Fonte – http://blogdodrlima.blogspot.com

Entretanto, mesmo sem ter o ao material, achei fantástico descobrir que Glauber havia largado o conforto da beira mar de Salvador e encarou poeira, sol, desconfiança e inúmeras dificuldades para entrevistar o próprio José Rufino, ou Zé Rufino, o comandante de volante que matou o cangaceiro Corisco.

Um Início com Muita Desconfiança

Tempos depois fui a Salvador, cidade que adoro, onde tive a oportunidade de procurar com calma o exemplar do jornal “Diário de Notícias” e finalmente foi possível ler e digitalizar a dita reportagem.

Igreja Matriz de São João Batista, em Jeremoabo, Bahia – Fonte – Coleção do autor

Chama logo a atenção no texto que Glauber não seguiu para este trabalho jornalístico com no máximo um fotógrafo, como seria de esperar na função de repórter. Ele foi a Jeremoabo com mais três amigos.

Além do futuro diretor de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, estavam juntos o cineasta Trigueirinho Neto, um paulista radicado na Bahia que naquele ano lançaria seu único longa-metragem, “Bahia de todos os santos”.[1]

O ator baiano Geraldo Del Rey – Fonte – http://www.filmologia.com.br

Outro membro era o ator Geraldo Del Rey, um baiano da cidade de Ilhéus, que em 1960 já tinha participado de dois trabalhos cinematográficos e era considerado um dos mais promissores atores que atuavam no chamado “Ciclo Baiano” de cinema.[2]

Finalmente entre os membros da comitiva de Glauber em Jeremoabo estava o jovem acadêmico Antônio Guerra.[3]

Não é para menos que os quatro amigos fossem inicialmente recebidos com muita reserva e desconfiança por parte de Zé Rufino.

Enfim, depois de tudo que Rufino havia feito na vida de caçador e matador de cangaceiros, receber a visita de um grupo de quatro homens desconhecidos, certamente faria o ex-policial imaginar que aquilo poderia ter mais jeito de ser uma emboscada do que uma entrevista.[4]

A desconfiança foi desfeita quando Glauber falou que tinha como um amigo comum do antigo lutador das caatingas, um membro da família Sá, de forte influência e tradição política na região de Jeremoabo. A partir daí o guerreiro sertanejo “Deu confiança”, nas palavras de Glauber e desandou a contar sua incrível história.

Zé Rufino e a sua esquerda o ex-rastejador ““Bem-te-vi”, na década de 1960 – Fonte – Coleção do autor

Rufino é descrito como sendo “Alto, queimado pelo fogo do sol nordestino, corpo rijo, dobrando a casa dos cinquenta (anos)”.

Foram encontrar a lendária figura na salinha de sua casa, de calça, paletó sem gravata e fumando um cigarro atrás do outro. Afirmou o irrequieto cineasta que Zé Rufino era um homem bem estabelecido em Jeremoabo, “Com boas fazendas e duas mil cabeças de gado”.

O cineasta nascido em Vitória da Conquista afirmou que a patente do pernambucano Zé Rufino era a de major e assim o designou durante toda a entrevista.

E o major foi logo adiantando que;

-Conheço esse mundo com a palma da mão. Tirava 18 léguas na perna e nunca soldado meu se deitou para fazer fogo. A briga era em pé e eu gostava de lutar com o velho – o velho é Lampião, cuja a sombra lendária continua a desfilar pelas serras e campos do Nordeste-

Um Repórter, ou Diretor de Cinema?

Apesar de fazer a função de repórter, Glauber sempre foi um cineasta e nas letras da reportagem ele já qualificava Zé Rufino como um “-Um ator perfeito”.

A conversa fluía aberta e franca e o entrevistador viajava com a mente de cineasta diante da verdadeira lenda viva. Para ele, a narrativa de Zé Rufino foi totalmente realizada na melhor linguagem de um autêntico “Western” e deixaria um John Ford “Suspirando de emoção”.[5]

Esta emoção vinha principalmente da qualidade do narrador. Rufino descrevia os combates com voz vibrante, reando detalhes dos campos de luta, narrando biografias e voltando sem receio a um ado em que muito sangue jorrou no sertão.

Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião – Fonte – http://tokdehistoria-br.noticiasdaparaiba.com

Interessante foi que Zé Rufino descreveu que na sua juventude detestava a polícia e os policiais. Comentou que isso se devia à violência que alguns militares praticavam de forma desenfreada contra os civis. Por conta desta opinião, mesmo tendo vários parentes como membros do aparato de segurança do Estado, Rufino quase chegou a fazer parte do bando de Lampião, cujo nome real era Virgulino Ferreira da Silva.

Para o antigo guerreiro havia uma iração pelo seu maior inimigo, que Rufino descreveu como sendo “-Magro, boa estatura, sempre de óculos, com uma lágrima escorrendo no olho quase cego e usando dois galões de capitão nos ombros”.

Ele narrou que em algumas ocasiões se encontrou com Lampião frente a frente. Em um destes momentos, quando o chefe cangaceiro estava acompanhado com cerca de 80 homens, Lampião chamou Rufino para lhe acompanhar pela terceira vez. O convite foi assim descrito:

-Rufino, já duas vezes lhe chamei para ser meu cabra e você nunca quis. Agora é hora Rufino!

Rufino afirmou que em um primeiro momento recusou, mas viu que Lampião não havia gostado nada de sua decisão. Para sair daquela situação disse que seguiria com o “Rei do Cangaço”, mas não naquele momento. Informou que tinha “Uns negócios” para resolver junto a sua mãe. Por incrível que pareça, a demonstração de responsabilidade de Rufino em relação a sua genitora fez o cangaceiro refrear seu ímpeto e Lampião deixou o jovem seguir seu caminho.

O ex-militar afirmou a Glauber que o grupo partiu devagar, com Lampião transmitindo ordens aos seus chefes de subgrupos para que partissem ordenadamente, tal como uma força militar tradicionalmente organizada.

O próximo encontro entre os dois valentes pernambucanos seria de fuzil na mão e cada um do seu lado mandando bala.

Guerra nas Caatingas

Glauber Rocha recordou (sem referenciar) o paraibano José Lins do Rêgo, que dizia que no Nordeste daqueles tempos “Quem não era cangaceiro, soldado, ou beato, padecia na seca, ou sofria de fome, ou de violência”.

Zé Rufino, o primeiro em pé e a esquerda, junto com os membros de sua volante na época do cangaço – Fonte – Coleção autor

Rufino afirmou que preferiu ser policial a cangaceiro. Pois estes “Faziam miséria com o povo, tendo o fuzil na mão e o nome de Deus na boca”.

Narrou sem desassombro que deu muito prejuízo a Lampião e seus cangaceiros, pois quando pegava um deles “Cortava a cabeça, botava num saco e trazia nas costas para Jeremoabo”.

Atual Delegacia de Polícia Civil de Jeremoabo, o antigo aquartelamento de Zé Rufino – Fonte – Rostand Medeiros

Afirmou que nesta época a cidade baiana tinha cerca de 800 policiais de prontidão. Segundo o ex-militar, Lampião esteve em uma serra próxima, mas não entrou em Jeremoabo.[6]

Zé Rufino, o primeiro a direita, junto a antigos companheiros de lutas – Fonte – Coleção do autor

Quando saía para a luta Rufino afirmou que sempre a frente de sua volante de policiais seguia o rastejador “Bem-te-vi”, que nunca perdia o rastro. Havia longas caminhadas, com os espinhos dilacerando tudo, rasgando roupas, mas logo que a volante topava com os cangaceiros a luta era dura.

Para Rufino seus soldados deveriam de lutar em pé, mesmo que fosse a cinco metros de distância dos oponentes. Tinham de mostrar valentia, pois os inimigos eram fortes, conheciam o terreno e nos confrontos os cangaceiros pareciam fantasmas saltando para fugir das balas, com as suas “Cabeleiras voando”.

Membros do bando do cangaceiro Corisco – Fonte – Coleção do autor

Em uma ocasião, no meio da refrega violenta, um policial gritou e caiu no chão. Os cangaceiros recuaram, o tiroteio diminuiu gradativamente de intensidade e finalmente cessou. Ao retornar para junto dos companheiros Zé Rufino narrou que sentiu alguma coisa mole no rosto e nos braços. Eram os “miolos”, a massa encefálica do soldado caído. O morto era seu primo carnal, que havia levado um balaço de fuzil bem no meio da testa.

O próprio rastejador de Zé Rufino, o veterano “Bem-te-vi” estava presente no encontro com os quatro rapazes vindos da capital baiana. Este demonstrou um enorme respeito pelo feroz adversário. Disse que era mentira em relação a uma versão que afirmava ter sido Lampião um “Matador de crianças”. O rastejador disse que Lampião “Tinha remorso de atirar em arinho, nunca de matar um sujeito ruim”.

Corisco, o primeiro a esquerda, tendo ao seu lado a companheira Dadá e integrantes do seu grupo – Fonte – Coleção do autor

“Bem-te-vi” mostrava um respeito sincero pelos seus adversários. Como só os verdadeiros guerreiros que participaram da boa luta, da luta valente, do combate realizado frente a frente, no campo da honra dos nossos sertões.

Interessante foram as afirmações de Rufino em relação à força da religiosidade entre os cangaceiros e mesmo entre seus camaradas de farda. Todos eles sempre tinham “O nome de Deus na boca”. Reconheceu que “Entre todos aqueles que botaram o fuzil no ombro, não tinha um que não se benzia”. Os lutadores foram em suas declarações “Um povo beato até os fios dos cabelos”.

Mas indubitavelmente para o major Zé Rufino, o seu maior feito na luta contra os cangaceiros foi a morte de Corisco.

A Caçada e Morte do “Diabo Louro”

Zé Rufino começou a sua narrativa afirmando que “Não queria matar Corisco”. Disse que o eliminou porque foi alvejado primeiro. Tanto assim que, mostrando suas intenções, não deixou que seus homens exterminassem Dadá, onde garantiu a sua vida até Salvador, onde ela foi tratada.

Para o antigo caçador de cangaceiros, Corisco e Dadá eram definidos como “Um casal bonito”.

Ele via Corisco, conhecido como “Diabo Louro”, como um homem de fibra e achava que ele “Morreu feliz”, pois era um valente que não aguentaria viver em uma penitenciária. Corisco era uma figura que Zé Rufino nutria um enorme respeito, mesmo ados quase vinte anos do confronto que havia provocado a sua morte e o ferimento que fez Dadá perder parte de sua perna direita.

Dadá era uma “-Mulher linda e valente” aos olhos de Rufino. Em sua opinião a companheira de Lampião era “Pequena” diante de Dadá.

Corisco e Dadá, um “casal bonito” na opinião de Zé Rufino – Fonte – Coleção do autor

Glauber aproveita a fundo a conversa com José Rufino, principalmente a descrição do porte físico do cangaceiro e da indumentária, que muito lhe ajudariam no futuro a compor um dos principais personagens de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Na reportagem Zé Rufino, talvez com exagero,  diz que “Os cabelos de Corisco eram grandes, e quando ele jogava as mechas por cima dos ombros pareciam duas bandeiras amarelas. Quando Corisco cortou os cabelos, cada pedaço dava para fazer uma grande trança”.

Corisco e seus cães – Fonte – Coleção do autor

Se havia respeito e iração a distância, tudo se acabava quando os canos dos fuzis ficavam frente a frente.

Rufino afirmou que deu muito fogo, muito combate, contra Corisco e que este era doido para lhe matar. Aparentemente nos momentos finais do chefe cangaceiro, que gostava de ser tratado como “capitão”, este não reconheceu Zé Rufino e lhe perguntou o nome. Desejava ir para a eternidade sabendo quem o derrubou. O antigo major afirmou a Glauber Rocha que no momento que Corisco soube quem o pegou, este nitidamente demonstrou irritação e deu o último suspiro.

Glauber transcreveu a afirmação do major Rufino contando este fato, e colocou esta parte com destaque no início da reportagem;

Estou ferida meu velho – gritou Dadá pulando no ar, baleada na perna. Mais fortes são os poderes de Deus – respondeu Corisco e fez fogo feroz contra o Major Rufino. O Major continuava correndo e disparava seguidamente no Diabo Louro que fugia para o horizonte. Uma bala rompeu os intestinos, as tripas de Corisco saltaram. O Major se aproximou, viu o homem no chão, calmo, sem medo, sem dores: – Por que você não se entregou Corisco? – Sou homem de morrer, num nasci pra ser preso. Cumé seu nome? – José Rufino. Então o rosto do capitão se contorceu e ele mordeu os lábios com fúria. Eram 5 da tarde em ponto, no mês de maio, 1940-

O que o militar José Osório de Farias, o Zé Rufino se esqueceu de comentar com Glauber Rocha foi que Cristino Gomes da Silva Cleto, o famigerado Corisco, natural de Matinha de Água Branca, nas Alagoas, estava praticamente aleijado de ambos os braços naquele combate. Sua deficiência era fruto de balaços que havia recebido anteriormente.

Fraco e debilitado, ele tentava com sua mulher Dadá, como era conhecida entre os cangaceiros a jovem Sérgia Ribeiro da Silva, alcançar discretamente o sul da Bahia. Seguiam acompanhados do cangaceiro Rio Branco e da jovem mulher deste.

A cangaceira Dadá ferida junto a Zé Rufino – Fonte – Coleção do autor

Mas em um sábado, 25 de maio de 1940, Zé Rufino e seus homens apareceram em um sítio em Brotas de Macaúbas e a história se desenrolou.[7]

Final de Um Grande Encontro

Independente dos fatos reais eu creio que esta parte da narrativa realizada pelo antigo caçador de cangaceiros mexeu de verdade com a cabeça do cineasta baiano. Pois muito do que está descrito nesta reportagem publicada no jornal “Diário de Notícias”, edição de 21 de fevereiro de 1960, um domingo, Glauber Rocha reproduziu magistralmente em suas obras cinematográficas.

Zé Rufino em uma foto feita provavelmente por Glauber Rocha ou algum companheiro de entrevista – Fonte – Coleção do autor

Consta que a entrevista entrou pela noite adentro. Logo a matéria aponta que o Geraldo Del Rey mostrava que havia material suficiente para uma trilogia, só com as memórias de Zé Rufino.

Trigueirinho Neto convida então o antigo combatente das caatingas para ser ator. Logo “Bem-te-vi” também é convidado a fazer parte do elenco do filme. Zé Rufino afirma na sequência, em um diálogo que demonstra camaradagem  e tranquilidade, que vai chamar os antigos perseguidores dos cangaceiros ainda vivos para participarem da película, com a intenção que tudo seja reconstituído “Como reza a verdade e o mito”.

E a entrevista se encerra.

Foto principal do cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha – Fonte – http://www.pop4.com.br

Hoje quem percorre os aproximadamente 380 km que distancia Jeremoabo e Salvador, seguindo pela BR-110, realiza o trajeto uma boa estrada asfaltada e com conforto.

Mas quando Glauber, Trigueirinho, Geraldo Del Rey e Antônio Guerra realizaram esta viagem, aparentemente o caminho que ligava Jeremoabo a Salvador era todo, ou em grande parte, de barro. Talvez já houvesse luz elétrica devido a proximidade com a Usina de Paulo Afonso, mas as notícias eram através dos velhos rádios valvulados. Ou seja, o sertão não era igual ao do tempo de Lampião, mas apenas 20 anos de diferença ainda não havia mudado tanto a triste realidade daquela gente sofrida.

O personagem Antonio das Mortes, interpretado pelo ator Maurício do Valle, baseado em Zé Rufino – Fonte – http://npdorlandovieira-aju.blogspot.com

Em meio a todo este cenário, tão distinto do belo litoral Soteropolitano, Glauber ficou fascinado com aquela narrativa.

O interessante é que apenas no final da reportagem, e em mais nenhuma outra parte da matéria, o cineasta baiano afirma que, além do trabalho jornalístico para o “Diário de Notícias”, aquela viagem seria também para realizar uma avaliação do que havia de interessante, de belo, de produtivo no sertão baiano no sentido de desenvolvimento cinematográfico.

Certamente que ao viajar com amigos que participavam do movimento cinematográfico baiano do início da década de 1960, Glauber já tinha mil ideias funcionando dentro da sua cabeça e logo o vulcão que ele era, seguiria despejando grandes obras de arte cinematográficas, que chamariam atenção principalmente na Europa.

Tudo isso resultaria na criação de um movimento chamado Cinema Novo e alavancaria a carreira de um cineasta que era antes de tudo ousado, determinado e genial nas suas abordagens.

Não sei proporcionalmente o quanto o contato com Zé Rufino e “Bem-te-vi” contribuiu para a realização, quatro anos depois, do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Mas certamente a ida daqueles quatro amigos ao sertão não foi em vão.

NOTAS


 

[1] Este filme apresentava um político e social do país na era do governo Getúlio Vargas, seria intensamente aclamado pela crítica, ficando marcado pela expressiva fotografia Guglielmo Lombardi e estrelado pelo ator Geraldo Del Rey.

[2] Geraldo Del Rey consegue projeção nacional e internacional ao participar ao lado de Leonardo Villar e Glória Menezes no filme de Anselmo Duarte, O Pagador de Promessas (1962), que seria premiado com a Palma de Ouro em Cannes. Mas é sob a direção de Glauber Rocha e sob as lentes do Cinema Novo que o ator de olhos verdes, chamado por alguns de Alain Delon tupiniquim, finca para sempre o seu nome no cinema brasileiro, participando dos antológicos e históricos filmes de Glauber. Geraldo Del Rey integrou o núcleo fundador do Festival de Cinema de Gramado, em 1973, dando muito de seu prestígio e apoio para que o evento ganhasse repercussão nacional. Em 2004, em reconhecimento a essa colaboração o 32º Festival de Cinema de Gramado prestou uma Homenagem Especial pela sua participação e contribuição ao cinema nacional. Faleceu de câncer no dia 25 de abril de 1993. Fonte – http://virtualia.blogs.sapo.pt

[3] Posso estar enganado, mas acredito que o Antônio Guerra relatado pelo diretor de cinema na matéria de 1960, não é outro se não Antônio Guerra Lima, advogado e ex-procurador-geral do Estado da Bahia, mais conhecido como “Guerrinha” e grande amigo de Glauber Rocha e de sua família.

[4] Consta que em muitas publicações sobre o cangaço a patente de Zé Rufino seria a de coronel. Entretanto decidi deixar conforme está no texto de Glauber Rocha.

[5] John Ford (1894-1973) foi um diretor de cinema norte-americano de grande sucesso. Tendo atuado entre as décadas de 1930 a 1960, conhecido principalmente pelos seus westerns. Em 51 anos de carreira Ford dirigiu 133 filmes.

[6] Ao visitar a cidade de Jeremoabo em 2010, esta história do respeito de Lampião pela localidade foi largamente comentada. Já a elevação onde ficaram os cangaceiros foi a Serra da Cruz. Percebe-se igualmente em Jeremoabo um enorme respeito em relação à memória da figura de Zé Rufino.

[7] Rufino transmitiu a Glauber a raiva que sentiu em relação a um jornalista baiano que afirmou que ele “Havia roubado o ouro de Corisco”. O antigo caçador de cangaceiros revidou a este repórter afirmando que Corisco levava “Um quilo” de metal precioso e que entregou tudo a Dadá, que estava viva na época “Para confirmar”. Comentou que sua promoção para major veio “Devagar” e foi a última a ser efetivada na escala hierárquica da Polícia Militar da Bahia daquele período. Talvez este episódio anterior com a imprensa explique a animosidade e desconfiança de Zé Rufino no início da entrevista com Glauber Rocha.

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