MATERIAL DA REVISTA “RN/ECONÔMICO”, Nº 124, JUNHO/JULHO 1981, PÁGS. 12 a 16.
Segundo o pesquisador da história de Caicó, Benedito Alves dos Santos, o povoamento inicial da cidade está íntima e inseparavelmente ligado à de toda a região seridoense e à de alguns municípios do Estado da Paraíba. Entretanto, é de crer-se que os fundamentos iniciais da colonização tenham sido lançados por volta de 1700, pelos batedores paraibanos, que chegaram à região para darem caça aos índios caicós que habitavam nas proximidades da confluência do Rio Barra Nova com o Seridó.
Com a expulsão dos indígenas, vieram os plantadores de fazendas, ajudados pelo negro, continuar a obra de desbravamento, esquadrinhando o território e fazendo surgir os primeiros núcleos demográficos, fundamentalmente ligados à criação de gado bovino. A povoação era conhecida em 1748, conforme é citada através de uma carta dirigida a Dom José Tomáz de Melo, governador de Pernambuco, datada de 1787 e subscrita pelo desembargador Antônio Felipe Soares de Andrade Brederodes, defendendo a elevação da povoação ao predicamento de vila. A região pertencia à freguesia de Piancó, Paraíba.
Catedral de Santana, Caicó, em 1981.
A esse tempo já a povoação era sede de distrito istrativo, criado por alvará de 1748 e também freguesia que fora criada em 15 de abril de 1748. De par com a denominação de Seridó existia também o topónimo Caicó, que vem citado em um documento atinente à instalação da freguesia, de 1748, registrado no Livro de Tombo da Catedral de Caicó e também mencionado em uma concessão de sesmaria feita em 7 de setembro de 1736, ao capitão Inácio Gomes da Câmara.
LENDAS
São várias as lendas que se conta sobre o nascimento do município, todas de uma beleza infinita, mas a mais interessante e a mais bela de todas é a colhida por Manuel Dantas: “Quando o sertão era virgem, a tribo dos Caicós, célebre pela sua ferocidade, julgava-se invencível, porque Tupan vivia ali, incarnado num touro bravio que habitava um intrincado mufumbal, existente num local onde está hoje edificada a cidade de Caicó. Destroçada a tribo, permaneceu intacto o misterioso mufumba, morada de um Deus, mesmo selvagem.
Sertão do Seridó – Foto – Liberanilson Martins da Costa, de São José do Seridó-RN.
Certo dia, um vaqueiro inexperto, penetrando no mufumbal, viu-se de repente, atacado pelo touro sagrado, que iria, indubitavelmente, matá-lo. Rapidamente inspirado, o vaqueiro fez o voto a Nossa Senhora Santana de construir ali uma capela, se o livrasse de tamanho perigo. Como por encanto, o touro desapareceu. O vaqueiro destruiu a mata e iniciou, logo, a construção da capela. O ano era seco e a única aguada existente era a de um poço do rio Seridó. O vaqueiro fez novo voto a Santana para o poço não secar antes de concluída a construção da capela. O poço de Santana, como ficou desde então denominado, nunca mais secou.
Reza a lenda que o espírito do Deus índio, expulso do mufumbal, foi se abrigar no poço, encarnando-se no corpo de uma serpente enorme que destruirá a cidade, ou quando o poço secar, ou quando as águas do rio, numa cheia pavorosa, chegarem até o altar-mor da matriz (hoje catedral) de Caicó onde se venera a imagem da mãe de Nossa Senhora.
ORIGENS
Belezas naturais da região do seridó – Foto – LiberanilsonMartins da Costa, de São José do Seridó-RN.
O conhecimento do território ou município só pôde ser feito após os índios Caicós se dispersarem pelo Seridó. Disso resultou o propósito de colonização por parte dos primeiros desbravadores. Existem algumas crônicas escritas que dão conta da existência de uma fazenda fundada em 1624 por José Francisco Rangel, porém é muito racional que se firme a data da primeira, entrada um pouco antes de 1700, já que os batedores paraibanos conquistaram definitivamente com a expulsão dos índios. Aos primeiros descobridores do Seridó não ou despercebida a riqueza da terra em pastagens e aguadas, surgindo daí a ideia das primeiras fazendas.
Requeridas as primeiras datas e espalhada a notícia da “limpeza” (o índio era empecilho ao domínio dos povoadores) de uma nova paragem propícia à criação, acorrem os caçadores de terras paraibanos, pernambucanos e até mesmo alguns portugueses de nascimento, a fim de situarem seus gados nas novas áreas dominadas. Daí surgem as primeiras fazendas e a multiplicação dos núcleos demográficos por toda a ribeira, registrando-se os nomes do capitão Inácio Gomes da Câmara, Manoel de Souza Forte, tenente José Gomes Pereira como os mais antigos povoadores conhecidos.
O Seridó – Foto – Liberanilson Martins da Costa, de São José do Seridó-RN.
O RECONHECIMENTO
predominância da antiga povoação do Seridó. que se manifestava principalmente pela opulência das fazendas de gado da região seridoense, começou a ser reconhecida pelos poderes políticos e eclesiásticos a partir de 1748, ano em que foi constituída em sede de distrito istrativo e da freguesia. A criação do município veio um pouco depois, por alvará
ou ordem governamental de 28 de abril de 1788. elevando-se a aludida povoação ao predicamento de vila, isso, ao tempo em que o Estado era governado pelo Senado da Câmara de Natal, presidido por João Barbosa de Gouveia. A instalação do município teve lugar a 31 de julho de 1788.
Centro de Caicó em 1981.
Nos primeiros tempos a região do Seridó, Caicó, inclusive, esteve sujeita ou ligada ao Estado da Paraíba, pelo menos no que se relaciona com a vida religiosa, de onde se desligou em 1748. Dentro do Estado do Rio Grande do Norte, deve ter pertencido ao município de Natal. Primitivamente, Caicó esteve ligado à Comarca da Paraíba, até 1818 quando ou a pertencer ao Rio Grande do Norte, da qual se desligou para fazer parte da Comarca de Assu (Princesa), até a criação da Comarca do Seridó, pela Lei Provincial número 365, de 19 de julho de 1858.
A designação da Comarca foi mudada para Caicó, por Decreto número 33, de 7 do julho de 1890. O João Valentino Dantas Pinagé. No tocante à divisão eclesiástica, Caicó pertenceu algum tempo à Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso, de Piancó (PB) de onde foi desmembrada em 15 de abril de 1748, por ato do visitador Manuel Machado Freire, de ordem do reverendíssimo Frei Luiz de Santa Tereza, Bispo de Pernambuco, para constituir-se Paróquia com a invocação de Nossa Senhora de Santana, na qual estavam abrangidos, além da Ribeira do Seridó, Patos e Cuité, na Paraíba. A Freguesia foi instalada pelo padre Francisco Alves Maia. cura da Freguesia, em 26 de julho do mesmo ano de 1748, abrange atualmente, apenas o município de Caicó.
FATOS MARCANTES
Uma pesquisa feita por alunos do CERES, Antônia Figueiredo, Maria Bernadete, Marly Medeiros, Francisca Neuza, Francisca Porfírio e Maria Sueli, mostra os primeiros fatos e acontecimentos importantes para a história do município.
Pórtico defronte a Catedral de Santana – Foto – Rostand Medeiros.
Segundo a pesquisa o movimento do “Quebra Quilo” aco9nteceu em 5 de dezembro de 1874 e foi contra a aceitação da introdução do novo Sistema Métrico Decimal. Caicó foi iluminada pela primeira vez em 1909, com lampiões a querosene, pelo dr. Jose Augusto Monteiro e a 21 de abril de 1925 foi inaugurada a luz elétrica, sendo na época prefeito o senhor Joel Damasceno.
Já o primeiro jornal nascido em Caicó chamou-se “O Povo” e o primeiro número circulou no dia 4 de março de 1889, pertencente a José Renaut. Tinha a direção do dr. Diógenes Santiago da Nóbrega e de Olegário Vale.
O primeiro rádio que chegou a Caicó foi em setembro de 1932 e pertencia a uma sociedade. Já o primeiro telegrama foi recebido pelo senhor Gedeão Delfino, então da Mesa de Rendas. Na época as e encomendas dos Correios e Telégrafos era enviada de Natal a Caicó por meio de burros e cavalos. Mas em 1928, com a inauguração de uma linha rodoviária ligando Natal a Caicó, esse transporte ou a ser feito por ônibus de ageiros, conhecidos como “sopa”, e a agência dos Correios ou a receber a correspondência com maior rapidez e assiduidade.
O primeiro telegrafista foi José Antunes Torres, que exerceu o cargo, ininterruptamente, desde 19 de março de 1917 a 15 de agosto de 1932. O primeiro avião que sobrevoou Caicó era pilotado pelo francês André Depecker e trazia como ageiro o dr. Juvenal Lamartine, Governador do Estado e George Piron. O campo de aviação, situado no sítio “Baixa do Arroz” foi inaugurado em 19 de março de 1917. O primeiro automóvel que chegou à cidade foi durante o carnaval de 1919 e a primeira pessoa a avistar o auto foi Daniel Diniz. O proprietário era Coriolano de Medeiros, natural de Natal.
Interessante texto do historiador Luís da Câmara Cascudo escreve sobre Caicó no jornal natalense “A República” em 26 de março de 1929.
Manuel Batista Pereira foi o construtor do primeiro Mercado Público, mais ou menos em 1860, no local onde hoje está edificada a Praça da Liberdade. Na falta de uma estação de rádio, o primeiro alto-falante a transmitir informações em Caicó pertenceu ao Cel. Celso Dantas tendo sido ouvido pela primeira vez a 8 de julho de 1938. Em 1876 a cidade teve sua primeira banda de música, que foi organizada pelo maestro Tertuliano, mas a primeira retreta, realizada na avenida Seridó, realizou-se a primeiro de janeiro de 1908 e foi organizada pelo professor Manuel Fernandes.
A 24 de dezembro de 1938 chegava à cidade o primeiro “Snooker”(sinuca), trazido pelo cel. Celso Dantas. Em 1906 chegava mais uma diversão à Caicó: era o carrossel de Francisco Azevedo. Na Festa de Santana de 1910, no prédio da Prefeitura Municipal, funcionou a primeira sessão de cinema mudo. Só no dia 27 de dezembro do ano de 1936 o cel. Celso Dantas inaugurava o cinema falado moderno. No dia 22 de janeiro de 1922 acontecia o primeiro jogo oficial de futebol entre as equipes do Caicó Futebol Clube e Brasil Esporte Clube e só três anos mais tarde, a 21 de abril de 1925, jogava pela primeira vez na cidade, um time de fora.
Primeira turma de seminaristas do Seminário Diocesano de Caicó.
O dr. Washington Luiz foi o primeiro presidente a visitar a cidade. Isso aconteceu no dia 6 de agosto de 1926 e o dr. Pedro Velho foi o primeiro governador, exatamente a 5 de julho de 1901.
VILA DO PRÍNCIPE
A sede municipal teve inicialmente o nome de Seridó, ou, quando da criação do município, à denominação de Vila Nova do Príncipe, conservada pela Lei número 612, de 1868, que elevou à categoria de cidade. A velha denominação de Seridó, voltou a ser imposta pelo decreto número 12, de 1 de fevereiro de 1890 e, só em 7 de julho do mesmo ano é que recebeu o nome atual.
Castelo de Engady em foto de 2015 – Foto – Rostand Medeiros.
Caicó está edificada entre os rios Barra Nova e Seridó, que correm bem próximos, sendo caracterizados pelas seguintes coordenadas geográficas: Latitude Sul 6o 27′ 00″; Longitude W. Gr. 37° 02′ 00″. Rumo (em relação a capital) 030. Distância da Capital do Estado, em linha reta,
218 quilômetros e altitude de 157 metros e limita-se com algumas cidades desse Estado e com uma da Paraíba. São seus limites: ao Norte, Jucurutu; a Leste, Florânia, Cruzeta, Jardim do Seridó e Ouro Branco; ao Sul, Santa Luzia (PB), São João do Sabugi, e Serra Negra do Norte; a Oeste com Timbaúba dos Batistas, Jardim de Piranhas e São Fernando.
Antigo jornal de Caicó informando sobre o ataque de Lampião a Mossoró em junho de 1927.
Nenhum plano urbanístico orientou a construção da cidade e, nem tampouco existe qualquer trabalho de sistematização, a não ser o relativo cuidado com que a istração municipal orienta as novas construções. Entretanto o traçado das ruas é mais ou menos regular, apesar do acidentado terreno. As construções são na maioria do tipo colonial e de um meio termo entre colonial e moderno. Nota-se, entretanto, nas construções recentes, uma predominância
de linhas tipicamente modernas.
LIDERANÇAS
A população de Caicó, pelos seus líderes, nunca deixou de tomar parte nos acontecimentos que empolgaram a vida nacional. Em fins de 1831, formou-se em Caicó uma expedição guerreira para dar combate ao coronel de milícias Joaquim Pinto Madeira, que havia se assenhorado da Província da Paraíba.
1955 – Visita a Caicó do candidato a Presidente da República Juscelino Kubitschek.
O comando que foi composto de figuras da maior representação da zona, deu mostras de grande heroísmo, batendo-se valentemente em diversos encontros, sob a chefia do cel. José Teixeira, destacando-se pela bravura de que deram mostras o Alferes Canuto e os soldados Firmeza, Zuza da Cachoeira e Tomaz Cazumba. Quando da “Guerra do Paraguai”, formou-se também em Caicó um corpo de voluntários, a fim de combater em defesa da dignidade nacional, tendo por chefes José Bernardo e Manuel Basílio de Araújo. Esses voluntários, chegando ao Rio de Janeiro, foram dispensados de combater, regressando em seguida a terra natal. Também na Revolução Comunista, em 1935, Caicó armou um contingente de paisanos sob as ordens do senador Dinarte Mariz, Monsenhor Walfredo Gurgel e Eduardo Gurgel de Araújo, a fim de dar combate aos comunistas que haviam ingressado no interior. Esse contingente, no encontro da Serra do Doutor, conseguiu bater valentemente os revoltosos, numa emboscada estratégica, saindo plenamente vitorioso.
Governador Lavoisier Maia descerra uma placa na inauguração do 1º Batalhão de Engenharia e Construção (1º BEC) de Caicó..
Na política, floresceram vários partidos em Caicó, tanto monarquistas como republicanos, sobressaindo-se os chefes políticos locais pela preponderância que sempre exerceram no estado. Entre os grandes chefes políticos históricos, citam-se o padre Francisco Brito Guerra, José Bernardo de Medeiros, Joaquim Martiniano Pereira e Gorgônio Ambrósio da Nóbrega, José Augusto Bezerra de Medeiros e Dinarte de Medeiros Mariz.
Quando a luta pela libertação dos escravos ecoou pelo Brasil inteiro, organizou-se em Caicó uma comissão libertadora, dirigida por José Bernardo de Medeiros, Olegário Gonçalves de Medeiros Vale, Manuel Augusto Bezerra de Araújo, José Batista dos Santos Lula, padre Amaro Castor, Lindolfo Adolfo de Araújo, Salviano Batista de Araújo e outros. Esse comitê, empreendeu festas públicas em prol do movimento libertador e solenizava as cerimônias de alforria. Diz-se que ao ser decretada a Lei da Abolição da escravatura, já existiam poucos escravos em Caicó.
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No Seridó Potiguar, mais precisamente em Acari, a professora Marta Maria de Medeiros, de 24 anos, nascida e morando na Fazenda Rajada, filha do fazendeiro e coronel nomeado da Guarda Nacional Joaquim Paulino de Medeiros e da senhora Maria Florentina de Medeiros (conhecida como Dona Maricota), buscava junto ao Juiz da cidade, João Francisco Dantas Sales, o seu alistamento eleitoral, pois preenchia todas as condições para a inscrição. O Dr. Sales era irmão do também juiz Celso Dantas Sales, pai dos Cadeais Dom Eugênio de Araújo Sales e Dom Heitor Sales. A decisão do juiz Sales, ante o pedido da professora, foi publicada oficialmente no dia 10 de dezembro de 1927, tornando-a a quarta eleitora do Rio Grande do Norte e a primeira da região do Seridó..
“O Seridoense”, edição de 23 de dezembro de 1927
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Desde às suas origens, a microrregião do Seridó caracteriza-se pela fé dos seus pioneiros, a coragem e a disposição de superar muitos obstáculos. A tradição tem sido mantida. Toda a história do Seridó tem essa marca de coragem, que nem as secas mais inclementes conseguiram arrefecer — ou as injustiças. No clima árido e seco, foi forjada a têmpera de grandes homens. A luta áspera com a terra tem resultado numa sobrevivência heroica. Por isso a paisagem humana do Seridó é mais rica do que a física.
Publicado originalmente na Revista RN/ECONÔMICO – Junho/Julho/1981...
Serra da Rajada, Seridó Potiguar.
São 22 municípios, abrangendo uma área de 9.372 quilômetros quadrados e uma população fixa — segundo o último censo — de 211 mil 936 habitantes. Geograficamente é qualificada como microrregião do Seridó. Seca, pobre de chuvas, é uma das áreas mais sofridas, heroicas e marcadas por contradições do Rio Grande do Norte. Na origem de sua história estão os brutais massacres da população indígena; na trajetória da sua colonização e desenvolvimento estão inúmeros homens que, temperados pelas árduas lutas, demonstraram grandeza suficiente para que seu trabalho também servisse ao Rio Grande do Norte e ao Brasil.
NOTA DO TOK DE HISTÓRIA – Em 1989, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dividiu o Seridó em Oriental e Ocidental, abrangendo uma superfície de 6.970,60 Km², o que representa 13,08 por cento do território estadual.
Vaqueiros do sertão, Acari / RN – Região do Seridó. Foto: Carla Belke – Paisagens do Seridó – OpenBrasil.org
Homens como Tomás de Araújo Pereira, o primeiro Presidente da Província; Padre Francisco de Brito Guerra, político e fundador da Imprensa do Rio Grande do Norte, José Bernardo de Medeiros, José Augusto Bezerra de Medeiros, Juvenal Lamartine de Faria — introdutor do voto feminino e da aviação no Rio Grande do Norte — padre João Maria, Dinarte de Medeiros Mariz. Monsenhor Walfredo Gurgel, José Cortez Pereira, entre outros.
O Seridó é rico em paisagem humana. Talvez como uma compensação da natureza para suprir a agressividade e a pobreza de sua paisagem física.
A FORMAÇÃO
Localizada na parte meridional do Rio Grande do Norte, no reverso da Borborema, a microrregião do Seridó não teve uma formação uniforme, segundo os historiadores.
Fazenda Caiçara, Acari, do Coronel Antônio Galdino de Medeiros, zona rural de Acari.
Conta M. Rodrigues de Melo que as vilas e povoados tiveram origens diferentes.
— Umas — diz ele — tiveram origem nas fazendas de criação de gado, outras no espírito religioso da sua população, outras no ciclo do algodão, enquanto outras mais recentes nasceram à sombra do ciclo da mineração.
As referências oficiais — inclusive as pesquisas de José Augusto — indicam que o povoamento daquela região teve início no fim do século XVII. Para que o processo de colonização começasse foi preciso dobrar a resistência dos habitantes originais — os índios. E as crônicas falam de massacres e guerras violentas, que se estenderam pelas margens do rio Açu e seus afluentes, um dos quais o Seridó. Em seus estudos, José Augusto diz: — Um dos encontros mais sangrentos e cruéis ocorreu no lugar Acauã, localizado no atual município de Acari.
Centro de Caicó,década de 20 do século ado. Foto – José Ezelino
Ainda segundo esse autor, são de 1676 os primeiros registros de terras nessa região, assinalados nos livros da Capitania do Rio Grande do Norte. Contudo, o Seridó só conseguiu a sua emancipação istrativa em 31 de julho de 1788. Ele estava totalmente englobado num amplo “município” que recebeu a denominação de Vila Nova do Príncipe.
Àquela altura, a divisão geográfica e política era completamente diversa da atual. Uma ampla área entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba ficou dividida em três grandes Vilas: Cariris, Seridó e Açu. Que, com a emancipação —autorizada pelo Governador de Pernambuco — aram a se chamar Vila Nova da Rainha, Vila Nova do Príncipe e Vila Nova da Princesa.
Até março de 1818 o Seridó e o Rio Grande do Norte estavam jurisdicionados à Comarca da Paraíba. O alvará de 18 de março daquele ano criou a Comarca do Rio Grande do Norte. A Vila do Príncipe saiu da órbita da Paraíba, embora esse ato desse margem à muitas reclamações da parte dos paraibanos de Pombal e muitas disputas parlamentares.
Casa típica do sertão de Acari, localizada próximo ao canteiro de obras de gargalheiras na década de 1920.
A TRAJETÓRIA
Com o desenvolvimento da região e o crescimento da sua população foram se formando vários núcleos populacionais mais ou menos distintos. O primeiro município a se desmembrar do núcleo original foi Acari. Ainda no período da Monarquia brasileira ocorreu o desmembramento de mais dois: Jardim o Seridó e Serra Negra do Norte. Depois da proclamação da República, seguiram os desmembramentos de Currais Novos, Flores (atualmente Florânia), Parelhas e Jucurutu. No momento (1981), o Seridó é composto, além desses municípios, por Caicó, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, Cruzeta, Equador, lpueira, Jardim de Piranhas, Lagoa Nova, Ouro Branco, Parelhas, Santana do Seridó, São Fernando, São João do Sabugi, São José do Seridó, São Vicente e Timbaúba dos Batistas.
NOTA DO TOK DE HISTÓRIA – Segundo classificação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), oficialmente integram a região do Seridó Potiguar em 2024 os seguintes municípios: Acari, Carnaúba dos Dantas, Caicó, Cruzeta, Currais Novos, Equador, Ipueira, Jardim de Piranhas, Jardim do Seridó, Ouro Branco, Parelhas, Santana do Seridó, São Fernando, São João do Sabugi, São José do Seridó, Serra Negra do Norte e Timbaúba dos Batistas. No entanto, social e historicamente, são ainda integrados ao Seridó os municípios de Bodó, Cerro Corá, Florânia, Jucurutu, Lagoa Nova, Santana do Matos, São Vicente e Tenente Laurentino Cruz.
Pelos caminhos do sertão potiguar…
Em 1782, data do primeiro censo, a população do Seridó era de 3.630 habitantes. Por seis censos consecutivos — até o de 1920 — a população praticamente dobrou de um para o outro, pois, naquele ano, já estava em 85.840. A partir daí houve uma redução nesse processo. E, já no outro censo — 20 anos depois, em 1940 — a população do Seridó chegou a 127.027. É importante verificar a redução nesse índice de natalidade, quando os outros censos tinham um intervalo de 12 anos. José Augusto já havia notado que ” o seridoense é muito prolífero”. Diz. — O comum é o casal de 10 a 12 filhos e não são raros os que atingem a 15, 20 e até mais. O aumento da população do Seridó, nas suas primeiras etapas, pode ser melhor avaliado, em toda a sua intensidade, se se levar em conta o fato que em muitos períodos de seca ter ocorrido o êxodo dos homens mais produtivos para outras áreas do Estado ou do País. Se não houvesse o fenômeno da seca sistemática é até possível que, hoje, a população do Seridó fosse muito superior ao que é.
AS CONTRADIÇÕES
A região tem sido marcada por contradições curiosas em sua trajetória econômica. A principal atividade econômica do Seridó, nos primórdios de sua história, foi a pecuária, a criação do gado de corte. Muitas famílias foram atraídas para o Seridó — principalmente de Pernambuco — pelas perspectivas da criação de gado. Só num certo estágio é que os seridoenses se deram conta de serem possuidores de uma riqueza tão ou mais preciosa do que o gado e, de qualquer forma, mais resistente às secas constantes: o algodão.
A produção do algodão era muito importante no aspecto econômico no Rio Grande do Norte r movimentava as principais cidades das áreas de produção. Na foto vemos a escolha da “Rainha do Algodão”, na cidade de Currais Novos, em 1954, durante um congresso. Da esquerda para direita vemos Maria Lourdes Medeiros (Representando a cidade de Jardim do Seridó), Deise Trindade (De Caicó e vencedora do concurso) e Nazareth Cortez (Currais Novos).
E não simplesmente algodão. Mas o algodão “mocó”, de fibra longa, nobre da melhor qualidade.
Sempre observador das coisas do Seridó, José Augusto observa, a esse respeito: — Pode assim ser dito com segurança: O gado levou o homem civilizado para o Seridó e o algodão expulsou o gado e fixou o homem à região. Esse é todo o drama econômico do Seridó
Contam outros estudiosos que por muito tempo não foi notada a verdadeira importância do algodão “mocó”. Aliás, a própria procedência e a maneira como o algodão “mocó” chegou ao Seridó são incertas. Há muitas divergências. José Augusto, por exemplo, não atinou com uma fonte precisa, nem outros autores. De todo modo, há uma forte corrente que defende a opinião de ser o “mocó” nativo, tendo sido a sua fonte original os chamados serrotes pedregosos da serra da Formiga, em Caicó. Mas não há concordância. Outra corrente acha mais sensato afirmar que ele procedeu do Egito, através da Paraíba. E há, ainda, quem sustente a tese da espécie híbrida. No caso, o “mocó” teria surgido como uma variedade, a partir da mistura da semente selvagem original.
Usina de beneficiamento de algodão. Foto meramente ilustrativa.
O fato é que o algodão “mocó” do Seridó e irável. De fibra longa, é perene, arbóreo e, sobretudo, resiste bem às estiagens. E aí está outro detalhe: é o clima seco do Seridó que facilita as propriedades especiais do seu algodão. Por um estratagema da natureza, suas raízes vão fundo na terra à procura da areia mais úmida, com que se nutre. Também as reservas de salitre (nitrato de potássio) favorece o algodão com os minerais necessários ao seu robustecimento.
A outra grande fonte de riqueza do Seridó — os minérios — também teve um descobrimento tardio em sua história. Mais ainda do que o algodão. A exploração em escala industrial ainda não tem 40 anos. Todo o potencial das reservas de scheelita só foi levantado cm época relativamente recente. Mas além da scheelita, o Seridó tem ainda a tantalita, o berilo, e a cassiterita, entre outros.
OS PROBLEMAS
O principal problema do Seridó é a água. A sua densidade pluviométrica é uma das mais baixas do Estado e do Nordeste. Por ironia, esse clima seco favorece à saúde da sua população, pouco afetada pelas verminoses e doenças típicas dos climas úmidos.
Açude sangrando.
Muitas das figuras políticas do Seridó lutaram e lutam por uma política de armazenamento d’água. As preocupações com o problema são de tal forma que Oswaldo Lamartine de Faria escreveu um livro exclusivamente abordando o tema “Os açudes dos Sertões do Seridó”, no qual pesquisa antigos documentos para descrever como surgiu a ideia, como eram construídos os primeiros açudes da Região, os homens que trabalharam, etc.
A propósito da necessidade do açude no Seridó, diz José Augusto, num dos seus estudos: — E o homem governando a água e levando-a, na hora oportuna, e nas quantidades necessárias à germinação das sementes e à manutenção da lavoura. Todos os povos em que a agricultura é feita racionalmente, se socorrem da irrigação.
Mas o Seridó tem o problema da evaporação e o da salinização, segundo mostra Garibaldi Dantas. A solução para os açudes na região tem sido a drenagem, uma das saídas básicas para escapar ao problema.
O Seridó tem se valido dos seus açudes. Garibaldi Dantas diz em “O Problema da Água no Nordeste Brasileiro” que já em 1915 havia na região 710 açudes. Posteriormente, foram construídos os grandes açudes como Itans, Mundo Novo, Cruzeta, Totoró, Gargalheiras, Boqueirão e outros.
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Para uma pessoa que faça parte de uma família que tenha sido seriamente atingida pela violência e lhe tenha sido negado o direito ao conhecimento desses episódios, normalmente essa pessoa tem dois posicionamentos clássicos – Ou cria um total desinteresse por tudo ligado ao ado, ou a a ter uma vontade extrema de buscar conhecer tudo que ocorreu com a sua família, para assim compreender como se desenrolou a história.
Eu me coloco no segundo caso!
Sou neto por parte do meu pai de Joaquim Paulino de Medeiros Filho, um pequeno fazendeiro conhecido como Jaco, que viveu na região entre as cidades potiguares de Acari, Carnaúba dos Dantas e Jardim do Seridó. Em 13 de abril de 1952 ele foi brutalmente assassinado a punhaladas por um primo. O assassino se chamava José Quintino de Medeiros, e o caso se deu em decorrência de uma suposta dívida. Meu avô foi morto diante do meu pai, Calabar Medeiros, que na época tinha apenas 12 anos de idade. Essa terrível ação sangrenta, algo extremamente pesado na existência dos meus familiares e na minha própria formação, teria sido influenciada e apoiada a mando de um soba regional, que desejava a morte do meu avô por questões de terra e política. Mas antes mesmo desse terrível assassinato, meu avô sofreu toda uma série de perseguições e dissabores que atingiram a sua vida e a de seus familiares desde novembro de 1935.
Na nossa história familiar essa ação sangrenta ficou indelevelmente marcada. Mas igualmente ficou marcada entre nós os nomes daqueles que realizaram ações de apoio ao meu avô. Um dos nomes que ouvi da minha avó era de um homem chamado Bento Quirino.
Há pouco tempo, ainda no mundo anterior ao COVID-19, eu parti numa busca para tentar encontrar algo sobre essa figura, saber sobre sua história e ter ideia de sua relação com meu avô.
Encontrei muito material sobre um homem chamado Bento Quirino, um sertanejo típico dos primeiros anos do Século XX. Ele era disposto, lutador, que se meteu em confusões e sofreu a perda violenta de toda a sua família no sertão da Paraíba. Na sequência foi para a cadeia e até participou de uma revolta organizada por um homem letrado.
Casa grande da fazenda Rajada, entre as cidades potiguares de Acari e Carnaúba dos Dantas, pertencente a Joaquim Paulino de Medeiros, bisavô do autor desse texto.
Teria sido esse mesmo Bento Quirino o mesmo homem que ajudou meu avô e que no sertão de outrora viveu em meio a tragédias extremas?
Quem Foi Bento Quirino?
Sou nascido em Natal, capital do Rio Grande do Norte, onde o começo de minha vida foi no bairro operário das Rocas, na beira do Oceano Atlântico. Poderia nunca ter me importando com o sertão. Mas certamente por toda a minha história familiar, na minha mente eu sempre achei que o sertão possuí algo de verdadeiramente mágico.
É uma região que gravita entre o árido e o belo, em meio a paisagens únicas e uma natureza ressequida e dura. Onde vivem homens e mulheres criativos, trabalhadores, prestativos, persistentes e corajosos, que não têm medo nem de cara feia e nem de enfrentar as dificuldades da vida!
Talvez mais no ado do que agora, onde valores e tradições mudam tão rápido quanto a velocidade ditada pela internet e o meio digital, os sertanejos iravam fortemente aqueles que mantinham a palavra, os que lutavam pela sua honra e os que não aceitavam serem desmoralizados. Tinham muita estima por aqueles que, por mais humilde que fosse a sua existência, eram ousados, valentes, que brigavam para conservar a própria altivez e daqueles que não tinham medo do limite entre a vida e a morte para manter intacta sua dignidade e seus valores. Valores que hoje em dia são considerados arcaicos!
Nesse sertão do ado não foram raros os episódios que terminaram em terríveis cenas de sangue para reparar a honra atingida. Normalmente essas situações limite tinham dois lutadores que travaram lutas épicas, permeadas de muito ódio. Muitas vezes os resultados dessas contendas eram tão impactantes, que chamavam a atenção de comunidades e regiões inteiras. Mormente essa curiosidade se dava pela maneira tranquila dos adversários encararem a morte. Na sequência esses casos eram propagados de forma intensa e com forte apelo popular.
Típico punhal do sertão do Nordeste.
Essa divulgação poderia acontecer de várias maneiras, principalmente nos encontros sociais que aconteciam nas feiras sertanejas, ou nos alpendres das casas centenárias. Os primeiros comentaristas geralmente eram aqueles que estavam mais próximos dos acontecimentos, dos fatos. Mas logo a narrativa avançava e os episódios narrados cresciam tanto em grandiloquência como em popularidade.
Não demorava muito e um talentoso poeta do povo escutava o caso e em pouco tempo a terrível cena de sangue se metamorfoseava em uma bela estrofe, no formato de uma sextilha, ou de uma décima de sete sílabas, ou de um martelo alagoano. Depois os versos poderiam ser impressos no formato de um tradicional folheto de cordel. Isso dava condições daquelas histórias ganharem a eternidade que o material impresso possui. Mas isso não significava que todas as histórias de lutas figadais do Nordeste do Brasil, de adversários que “se pegavam no Campo da Honra”, se tornariam versos populares, ou seriam impressas em cordel. Até onde sei esse foi o caso de Bento Quirino.
Vaqueiros em uma antiga fazenda no sertão.
Mas para contar corretamente essa história precisamos voltar para o ano de 1910, um ano bastante seco no sertão[1].
O local é a cadeia pública da cidade paraibana de Patos, onde uma pessoa que desconhecemos seu nome ali esteve para conhecer um dos prisioneiros. Esse desconhecido certamente era um homem de letrado, pois na primeira página do jornal paraibano O Norte, edição de 21 de setembro de 1913[2], ele narrou com riqueza de detalhes sobre esse encontro.
Lhe apresentaram um homem cujo nome de batismo era Bento José de Guimarães, mas era conhecido por todos como Bento Quirino. Foi descrito como sendo alto, com músculos fortes, de espaduas largas e bonito na fisionomia. Ainda segundo o desconhecido articulista o detido falava com altivez, tinha a palavra desembaraçada, se exprimia com gestos fortes e seus olhos azuis movimentavam-se de forma rápida e rítmica, acompanhando as suas ideias inteligentes. E continuou apresentando o encarcerado nas páginas de O Norte da seguinte forma:
“Na Chronica pavorosa dos delictos, que enche pintada em sangue a história do sertão parahybano, Bento Quirino é figura única pela exquisita caracteristica de sua modalidade criminal. Nem Adolfo, Nem Jesuíno Brilhante, nem Antônio Silvino reúne como elle as qualidades maximas de fôrça, de bravura, de mal orientado heroismo selvagem. Se é mais longa a vida de cada um daquelles e mais variada de peripécias monstruosas e ruins, a de Bento Quirino tem a originalidade mascula que reflecte o grau alto e bruto de sua energia organica.
Elle só mata a punhal”
Fazia então quase quatro anos que Bento Quirino estava preso na Cadeia Pública de Patos, aguardando um julgamento por dois assassinatos. O detalhe é que até o momento do encontro, em 1910, ele ainda não tinha sido julgado e poderia receber uma pena de até trinta anos de cárcere. Mesmo diante dessa situação, Bento Quirino não demonstrou ao homem que lhe visitou esperança. Mas também não exprimiu a menor contração de tibieza, ou de fragilidade.
Foto meramente ilustrativa de um típico vaqueiro do sertão – Fonte – IBGE.
Contou que seu primeiro problema com a justiça ocorreu anos antes, na cidade paraibana de Campina Grande, quando foi acusado de furtar um cavalo, situação que Bento Quirino apontou como sendo “calumniosa”. Respondeu à justiça por esse caso e foi absolvido. Logo voltou a se encontrar com o aparato jurídico paraibano daqueles tempos, quando respondeu por um crime de assassinato. Nesse caso, que provavelmente também ocorreu em Campina Grande, ele foi atacado por um grupo de homens e apunhalou um deles, levando seu agressor a óbito. Novamente Quirino foi absolvido, pois o caso foi enquadrado como legítima defesa.
No mesmo jornal paraibano O Norte, edição de 21 de setembro de 1913, soubemos que após esse caso de legitima defesa, houve um terceiro encontro entre Bento Quirino e a justiça, só que dessa vez o caso estava ligado a uma cidade da região do Seridó do Rio Grande do Norte.
Consta que Bento Quirino decidiu seguir para uma aldeia menor. Estava nesse lugar levando a vida, quando recebeu um chamado de um primo e amigo para ir até a cidade potiguar de Jardim do Seridó. Ali seu parente havia se metido em confusões e ao destemido paraibano foi solicitado que protegesse essa pessoa em uma viagem pelos caminhos do sertão. Quirino aceitou a empreitada.
Uma noite partiu de Jardim do Seridó pelas estradas sertanejas com seu parente, quando em um determinado lugar foram emboscados por três homens que possuíam armas de fogo. Mesmo diante dessa situação desvantajosa, o paraibano não se perturbou e partiu para cima dos atiradores. Atacou a todos valentemente com seu punhal, enterrando sua arma até o cabo nos corpos daqueles infelizes, em meio a tiros, gritos e muita confusão. Ao raiar do dia os três espingardeiros estavam mortos e Bento Quirino e seu parente vivos. Novamente esteve diante da justiça, nesse caso não sei se a paraibana ou a potiguar, onde foi novamente absolvido.
Depois de tanto bater na porta da justiça, segundo o desconhecido articulista do jornal O Norte, Bento Quirino decidiu buscar paz. O valente paraibano seguiu com sua família (da qual não temos nenhuma informação anterior) para uma área que foi assim apresentada, conforme está no original: “Foi assentar a tenda de agricultor no fertil valle dos Ferros, frauda acidental da borburema, sobre os ultimos fios dagua do Pinháras”. Foi nessa região que Quirino comprou algumas braças de terras, levantou uma tosca casa de taipa e por lá ficou vivendo e sobrevivendo.
Aparentemente a região onde a casa foi erguida não seria muito distante da então da cidade de Taperoá, antiga vila de Batalhão. A partir desse ponto vamos incorporar as fontes dessa história o jornal natalense A República, que em 12 e 15 dezembro de 1906 publicou duas interessantes notas da tragédia que envolveu Bento Quirino e sua família[4].
1906 foi um ano de boas chuvas e aquele momento poderia ser muito positivo na vida de Bento Quirino. Mas ele começou a ter problemas por questões de terra com um cidadão de nome Benedicto Leite.
Aparentemente a coisa toda desandou de forma intensa para uma situação extremamente radical, certamente pelo espírito bélico dessas duas figuras sertanejas. Pois os jornais apontam que por essa questão Quirino e Leite haviam se tornado “inimigos irreconciliáveis, jurando matar-se ao primeiro encontro, sendo ambos peritos no manejo das armas e de uma coragem de leões”.
A questão desbancou para a violência sangrenta quando um dia, ao retornar para sua casa de uma pequena viagem, Bento Quirino soube que suas filhas foram “insultadas” por parentes de Benedicto Leite. Os jornais não narram os detalhes e nem a natureza desses “insultos”, mas em uma época e em uma região onde a honra de mulheres era algo sagrado, nem necessitaria que as filhas de Bento Quirino sofressem alguma violência mais intensa e ampla, como a sexual, para que fosse possível uma resposta violenta de seu pai.
Lhe foi narrado com detalhes o ocorrido, mas Quirino não disse absolutamente nada. Apenas esperou chegar o sábado, dia 25 de novembro de 1906, dia de feira em Taperoá.
Uma das fontes pesquisadas aponta que ele seguiu para o lugarejo com um filho, outra aponta que ele foi só mesmo. O certo é que chegou na cidade e ou a circular pela praça, em meio ao burburinho dos vendedores e clientes. Por lá se encontravam o filho e um genro de Benedicto Leite. Estes logo foram informados da presença do desafeto, mas não se alteraram e nem partiram.
Depois de um tempo, Quirino, sem maiores alardes, levou seu burro até a casa onde estava hospedado o filho de Benedicto e, após iludir o dono da vivenda, chegou sem dificuldades ao quintal onde encontrou o rapaz e lá o inquiriu sobre o acontecimento envolvendo suas filhas. Logo os dois partiram para a luta armados de punhais e não demorou para Quirino matar seu oponente a estocadas.
Na sequência saiu para a rua ainda sujo do sangue do inimigo abatido e com o punhal pingando rubro líquido. Logo estava diante do genro de Benedicto, que igualmente não fugiu. Ambos partiram para a luta na frente de toda a comunidade e novamente Quirino venceu seu adversário, mas dessa vez ficou ferido.
Nesse ponto as fontes pesquisadas (Jornais A República, de 1906, e O Norte, de 1913) são unanimes sobre a vingança de Benedicto Leite.
Depois de velarem e enterrarem os cadáveres do filho e do genro, Benedicto partiu para a propriedade de Quirino com seus familiares na terça-feira, 28 de novembro. O seu inimigo obviamente não se encontrava na vivenda, mas os Leites não perderam a viagem!
Em meio a gritos de dor e desespero, começaram surrando todos na casa. Na sequência estupraram brutalmente a mulher de Quirino, que depois foi morta a punhaladas no pescoço, isso tudo diante do terror e desespero de suas filhas. Estas foram logo seviciadas e depois mortas com várias estocadas. Um filho de 12 anos e um cunhado de 17 foram igualmente assassinados com armas brancas. Depois os cadáveres foram arrastados para o terreiro e colocados sob o sol inclemente do sertão paraibano para tostarem e serem comidos pelos urubus.
No caminho de casa os Leites, roupas tingidas de vermelho e sem nenhum remorso ou medo pela barbárie cometida, gritavam informando que quem enterrasse aqueles cadáveres sofreriam as mesmas consequências.
Mesmo com o recado dado pelos assassinos da família de Quirino, quatro ou cinco dias depois, um membro da comunidade de Taperoá conhecido como Capitão Sulpício mandou enterrar os cadáveres já completamente destroçados. Certamente o triste espetáculo de aves de rapina banqueteando-se com os restos mortais dos familiares de Quirino foi maior que a ameaça dos Leites. Consta que enterramento dos restos mortais daqueles miseráveis foi difícil, tal o estado como se encontravam.
Consta nos jornais que Bento Quirino jurou matar a todos da família Leite.
A Prisão em Nova Cruz
Benedicto sabia da terrível vingança que se abateria sobre ele e sua família e decidiram partir para o Ceará. Essa inclusive foi a última referência que encontrei sobre essa família[5].
Já em relação a situação de Bento Quirino sabemos que quatro meses após a matança de sua família ele foi preso no dia 13 de fevereiro de 1907, na cidade potiguar de Nova Cruz. Provavelmente quem o deteve foi o delegado Anísio Alípio de Carvalho e depois Quirino foi enviado para a Cadeia Pública de Natal[6].
Não sabemos o que Bento Quirino veio fazer em Nova Cruz, talvez buscar algum tipo de apoio? Ou refugiar-se da perseguição da polícia paraibana? Ou procurar membros da família Leite? Mas sabemos que o então Chefe de Polícia da Paraíba, o desembargador Antônio Ferreira Balthar, comemorou muito a captura daquele homem. Entretanto nenhuma nota, informação, ou qualquer outra coisa foi divulgada sobre uma possível prisão, ou abertura de algum inquérito contra Benedicto Leite e sua família[7].
Bento Quirino então ficou detido na Cadeia Pública de Patos, sem julgamento, até o dia 24 de maio de 1912, quando um bacharel em direito, formado na tradicional Faculdade de Direito de Recife, lhe tirou de sua cela. Mas isso não aconteceu com um Habeas Corpus na mão, mas com um rifle calibre 44 e uma cartucheira de balas!
Augusto de Santa Cruz Oliveira nasceu em Alagoa do Monteiro, atual Monteiro, Paraíba, em 1º de novembro de 1873, sendo oriundo de uma tradicional família de latifundiários e políticos. Seguiu para o Recife onde se formou bacharel em direito no ano de 1895 e três anos depois era promotor público em sua cidade natal.
Nos primeiros anos do Século XX a política na Paraíba era um grande caldeirão fervescente, onde não faltavam ações violentas com perseguições, espancamentos, invasões de vilas, tiroteios e mortes. Em meio a busca de espaços políticos, no ano de 1910 Augusto Santa Cruz arregimentou homens para se “proteger”, mas igualmente atacar adversários[9].
Por suas ações Augusto Santa Cruz foi pronunciado pela justiça paraibana em 25 de janeiro de 1911. Foi preso, levado para a capital e perdeu o cargo de promotor. Após sua soltura através de um Habeas Corpus, retornou a sua terra. Seu julgamento, onde ele estava certo que seria uma farsa realizada para prendê-lo, iria se realizar em 6 de maio de 1911. Só que nessa data Augusto Santa Cruz atacou Alagoa do Monteiro com um grupo que para alguns era formado por cerca de 200 homens armados. Várias figuras importantes da comunidade foram feitas reféns, sendo levados para sua fazenda chamada Areal[10].
Casa grande da fazenda Areal, próximo a Monteiro, Paraíba. Anos atrás visitei esse local com a ajuda do amigo Ary Prata, grande estudioso da história da região de Monteiro – Foto – Rostand Medeiros.
Consta que Augusto Santa Cruz tinha a intenção de trocar a liberdade de seus prisioneiros por uma anistia pelos crimes nos quais estava sendo acusado. Mas o então governador paraibano João Lopes Machado fez ouvidos moucos aos pedidos de negociação do “Doutor Rebelado” e mandou a força policial atacar sua fazenda, prender Santa Cruz e libertar os reféns. Depois de forte troca de tiros, Augusto Santa Cruz, seus homens e seus reféns conseguiram fugir[11]. O chefe decidiu seguir para o Ceará, para Juazeiro do Padre Cícero. No caminho foi soltando os reféns aos poucos e depois ou mais de seis meses na meca dos romeiros nordestinos.
Serra de Teixeira – Fonte – IBGE.
Augusto Santa Cruz não havia conseguido sua tão desejada anistia e retornou com vários de seus homens para Alagoa de Monteiro, onde aliou-se com o médico Franklin Dantas, do município paraibano de Teixeira, igualmente desprestigiado pelas lideranças locais e pelo Estado. Juntos organizaram um novo grupo armado, que era constituído desde amigos e parentes, ando por moradores e empregados, tendo espaço até para fugitivos da justiça e cangaceiros. Consta que dessa vez o grupo alcançou a cifra de 400 a 500 homens. Estava tendo início um conflito armado que ficaria conhecido como “A Guerra de 12”.
Revista carioca mostrando uma charge de Augusto Santa Cruz e sua luta.
Em 24 de março de 1912, uma sexta-feira, Augusto Santa Cruz comandou os primeiros ataques as fazendas de seus inimigos em Alagoa de Monteiro. Depois atacou a cidade de Taperoá, que se defendeu durante cinco dias antes de render-se. O próximo alvo foi a cidade de Patos. Os revoltosos de Augusto Santa Cruz chegaram a essa cidade por volta de duas da tarde. Os 16 a 18 praças da polícia que defendiam o lugar, comandados pelo alferes José Ramalho fugiram, assim como muitos habitantes. Foram alguns jovens que tentaram uma resistência a partir da igreja local, mas diante de um grupo com cerca de 400 homens, logo depam armas, que foram tomadas pelos homens de Santa Cruz, mas os defensores não foram maltratados.
Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Patos, Paraíba. Não sei se foi essa a igreja que foi utilizada como baluarte de defesa quando da invasão do grupo de Augusto Santa Cruz – Fonte – IBGE.
Um dos que mais sofreu em termos de prejuízos foi o coronel José Jeronimo de Barros Ribeiro, conhecido como “Coronel Tota”. Sua casa e seu comércio foram intensamente saqueados, com prejuízos na ordem de 150 contos de réis. O coronel José Jeronimo e seus familiares ficaram escondidos por dois dias em um quarto na casa de amigos e ele só conseguiu fugir de Patos no domingo, dia 26. Tomou destino para o Rio Grande do Norte, onde percorreu junto com amigos mais de 300 quilômetros até a antiga Baixa Verde, atual cidade de João Câmara. De lá pegaram um trem da Estrada de Ferro Central até Natal e depois um outro trem, desta vez da Great Western, até a capital de Pernambuco[12].
Foto de Patos na década de 1950, onde vemos a Avenida Sólon de Lucena e a Praça Edvaldo Mota – Fonte – IBGE.
Foi na ocasião que Augusto Santa Cruz tomou a cidade de Patos que Bento Quirino e outros prisioneiros foram libertados! Consta em um jornal que Quirino desejava ass o “juiz Fenelon”. Esse não era outro se não o juiz Fenelon Ferreira da Nóbrega, magistrado da cidade de Patos[13].
Bento Quirino não conseguiu seu intento e permaneceu junto ao pessoal de Augusto Santa Cruz e Franklin Dantas. Estes atacaram as cidades e vilas de Santa Luzia do Sabugi, Soledade (29/05/1912) e São João do Cariri (30/05/1912) e pensaram em atacar Campina Grande. A desse ponto, com escassez de munição e diante da resistência oferecida pelo governo estadual, os líderes dispersaram a cabroeira. Augusto Santa Cruz fugiu para Pernambuco e em março de 1913 foi submetido a júri popular em Alagoa de Monteiro, com os irmãos Miguel e Arthur atuando na defesa, sendo absolvido por unanimidade[14].
Após a dispersão do grupo, somente quatro meses depois vamos ter notícias de Bento Quirino.
O alferes Irineu Rangel soube de sua permanência no distrito de Pocinhos, hoje município autônomo, mas que na época pertencia a Campina Grande. A informação era que o foragido procurava um inimigo e não estava com nenhuma arma de fogo, apenas com seu mortal e eficaz punhal. Rangel seguiu com uma tropa que chegou a mandar bala em Quirino, que estava sozinho e conseguiu fugir[15].
Cinco Anos Foragido, Uma Nova Prisão e o Desaparecimento
Então, apesar da sua propalada periculosidade, Bento Quirinio some do mapa. Durante cinco anos nada é divulgado sobre ele. Não temos notícia se ele formou um bando de cangaceiros, ou ou a fazer parte de algum bando, ou que tenha praticado algum assalto, ou tenha assassinado seus inimigos. Parecia que ele havia se escondido e assim tentar viver em paz!
Mas o braço da justiça é longo e pouco dado a esquecimentos, quando isso não convém. Então, em uma pequena nota publicada no jornal O Norte do dia 24 de dezembro de 1918, o delegado de polícia da cidade paraibana de Soledade, o Sr. Genésio Nóbrega, capturou Bento Quirino. Nem o então Chefe de Polícia da Paraíba, Manuel Tavares Cavalcanti, fez qualquer menção sobre essa prisão!
Desse ponto em diante a pesquisa em jornais, livros e outros meios parou. Por esses caminhos nada mais encontrei sobre essa figura. E não tinha resposta se foi esse Bento Quirino que ajudou meu avô na década de 1930.
Comecei então uma busca junto aos ditos ”Cangaceirófilos”, os que se arvoram de pesquisadores do Cangaço. Outra perda de tempo e uma fonte de chateação diante da ignorância, canalhismo e da total falta de educação de alguns desses ditos “cientistas”.
Então o jeito era pegar a estrada!
A Busca Pela História e a Descoberta de um Esconderijo de Pistoleiros
Antes do COVID-19 tomar conta do Planeta Terra, eu segui para a Paraíba com meu primo Hélio de Medeiros Vianna, tentando descobrir se esse personagem tinha relação com nosso avô.
O autor e seu primo Hélio de Medeiros Vianna em busca da História de nossa família.
Seguimos adiante com os poucos dados que a nossa tradição familiar tinha deixado. Primeiramente estivemos na cidade paraibana de Frei Martinho, na Microrregião do Seridó Paraibano, onde uma fazenda na região poderia ter relação com a figura de Bento Quirino.
Casa de Memória Vicente Ferreira de Macedo, na propriedade Várzea verde, Frei Martinho – PB.
Estivemos na dita fazenda e comprovamos que ela tem relação com uma outra pessoa que ajudou nosso avô Jaco Medeiros, mas nada sobre Bento Quirino. Entretanto a visita a Frei Martinho e região foi muito proveitosa. Chamou a nossa atenção a existência de um local denominado “Casa de Memória Vicente Ferreira de Macedo”, na propriedade denominada Várzea verde, destinada a preservar a história da família Ferreira de Macedo.
Outra situação interessante nessa pequena cidade de pouco mais de 3.000 habitantes foi a existência em uma de suas praças principais de um memorial em honra dos frei-martinenses que participaram da Força Expedicionária Brasileira – FEB, durante a Segunda Guerra Mundial.
Dessa cidade seguimos para a cidade de Cuité, com cerca de 20.000 habitantes, onde contatamos uma pessoa que nos ou uma referência interessante sobre uma propriedade onde viveu um cidadão cuja história se enquadrava ao personagem Bento Quirino. Comentou também que essa propriedade ficava alguns quilômetros da vizinha cidade de Barra de Santa Rosa.
Com seus mais de 15.000 habitantes, Barra de Santa Rosa se mostrou uma localidade interessante e acolhedora. Lá conhecemos o Senhor José Severino de Oliveira Lima, conhecido como Zé de Nininha, comerciante local, que de uma forma tranquila e prestativa se prontificou a nos apresentar pessoas que poderiam ampliar nosso conhecimento. Através desses contatos descobrimos que nas propriedades denominadas agem do Salgado e Gangorra, cerca de 35 quilômetros de distância dessa cidade, poderíamos encontrar boas informações.
Plantação de sisal na zona rural de Barra de Santa Rosa – PB.
Buscamos o caminho que segue em direção ao município paraibano de Olivedos. Ao percorremos essa estrada de barro avistamos muitas plantações de sisal e após um tempo chegamos nessas propriedades. Ali fomos recebidos de maneira magistral e calorosa pelos membros da família Viriato.
Em uma conversa bem tranquila, na sala de uma antiga casa de fazenda, cercada de pessoas altamente atenciosas e receptivas, descobrimos que ninguém possuía nenhuma referência se meu avô se refugiou naquelas propriedades, ou se um cidadão conhecido como Bento Quirino viveu naquele setor. Segundo as pessoas do lugar, quem poderia dar alguma informação já se encontrava em outro plano espiritual.
Fazenda Gangorra.
Infelizmente não consegui descobrir nada que pudesse elucidar a questão se o Bento Quirino que encontrei nos jornais antigos, que viveu momentos tão intensos e violentos em sua vida, foi a mesma pessoa que ajudou meu avô Jaco Medeiros.
José Antônio Maria da Cunha Lima Filho – Fonte – httptrilhasdeareia.blogspot.com201002major-cunha-lima-o-barbado-de-areia.html
Mas os membros da família Viriato me garantiram que a tradição oral local informou que no ado, antes deles chegarem por lá, aquelas propriedades serviram de esconderijo para pistoleiros que trabalhavam para o “Coronel Cunha Lima”, da cidade paraibana de Areia. Acredito que eles se referiam ao fazendeiro e líder político José Antônio Maria da Cunha Lima Filho, um importante político paraibano, eleito deputado estadual em várias ocasiões, elegendo prefeitos em Areia e foi fundador da UDN naquele estado. Para os membros da família Viriato, o poder desse homem era tanto que bastava alguém pegar em um mourão da cerca dessas propriedades que estava protegido e nem a polícia poderia fazer nada contra essa pessoa.
Como esse não era o objetivo da nossa pesquisa, demos a busca por encerrada.
Uma antiga balança de pesagem de algodão.
Mesmo com o resultado sendo negativo, em nenhum momento me senti decepcionado. Havia realizado uma maravilhosa viagem com meu primo Hélio, tinha conhecido pessoas super prestativas e atenciosas, onde a tradicional hospitalidade do sertanejo nordestino esteve presente de maneira magistral.
Pesquisar história é assim mesmo. Tem dias que funciona e em outros não, mas o que valeu nessa empreitada foi o caminho e não o destino!
Continuo com a minha busca!
NOTAS –
[1] Sobre a cronologia histórica das secas na Região Nordeste, ver o interessante trabalho Secas no Nordeste: registros históricos das catástrofes econômicas e humanas do século 16 ao século 21, de José Roberto de Lima, Antonio Rocha Magalhães, ível em – http://seer.cgee.org.br/index.php/parcerias_estrategicas/article/viewFile/896/814
[2] Ver jornal O Norte, João Pessoa-PB. edição de 21 de setembro de 1913, pág. 1. Sobre quem teria escrito esse texto permanece um mistério, mesmo após extensas buscas. Entretanto me chamou a atenção a forma muito bem escrita do texto e a maneira como o autor apresenta Bento Quirino.
[3] O termo “Hecatombe de Taperoá” certamente causará estranheza nas pessoas oriundas dessa interessante cidade, pois até onde sei essa terminologia não existe por lá, foi uma criação minha para esse texto. Na verdade, eu nem sei se esses horrendos e sangrentos crimes são de conhecimento da população local. Entretanto, eles estão claramente referenciados em pelo menos dois grandes jornais da Paraíba e Rio Grande do Norte do início do Século XX.
[4] Ver A República, Natal-RN, edições de 12 e 15 de dezembro de 1906, sempre nas páginas 2 dessas respectivas edições.
[5] Ver A República, Natal-RN, edição de 15 de dezembro de 1906, pág. 2.
[6] Na Mensagem entregue pelo governador potiguar Alberto Maranhão ao Congresso Legislativo do Estado, atual Assembleia Legislativa, no ano de 1904, encontramos na página 16 que Anísio Alípio de Carvalho havia sido empossado para o cargo em 15 de outubro de 1903.
[7] Sobre a prisão de Bento Quirino ver a Mensagem Apresentada a Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, em 1º de setembro de 1907, pág. 7.
[8] A melhor fonte de informações sobre Augusto Santa Cruz e sua revolta em 1912 é o livro Guerreiro togado – Fatos históricos de Alagoa de Monteiro, de Pedro Nunes Filho, Editora UFPE, Ed. 1997, Recife-PE.
[9] Um desses inimigos foi José Pereira de Gouveia, o capitão Zé Gouveia, que em 10 de outubro de 1910 se envolveu em um tiroteio contra o pessoal de Santa Cruz na sua propriedade Cachoeirinha, perto da vila de São Tomé, atual cidade paraibana de Sumé. Desse embate Gouveia saiu ferido, quase perde a perna e por essa razão se retirou da região e foi viver em Pernambuco.
[10] Durante o ataque a Alagoa do Monteiro os homens de Santa Cruz dominaram a cadeia, libertaram os presos e o chefe deixou seus homens agirem com liberdade pela cidade contra tudo que pertencesse aos seus inimigos.
[11] Nesse episódio a polícia paraibana queimou a fazenda de Santa Cruz totalmente.
[12] Ver jornal O Norte, João Pessoa-PB, edição de 7 de junho de 1912, pág. 1.
[13] Ver jornal O Norte, João Pessoa-PB, edição de 8 de junho de 1912, pág. 1.
[14] Depois disso, exerceu o cargo de juiz de Direito em várias localidades de Pernambuco e ganhou fama de magistrado realmente justo. Aposentou-se em Limoeiro-PE, onde faleceu, em 31 de outubro de 1944, aos 69 anos de idade.
[15] Segundo o amigo Sérgio Augusto de Souza Dantas, Irineu Rangel era um destacado e valente policial paraibano, tendo combatido Antônio Silvino, Lampião no Ceará após ao ataque a Mossoró de 1927 e combatido as tropas do coronel José Pereira na chamada Guerra de Princesa de 1930.
Qual a Razão Para a Construção desses Campos de Pouso? Como Se Deu Esses Eventos? Quem Pilotou o Avião e Que Aeronave Era Essa?
Rostand Medeiros – Escritor e Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
Campo dos ses em Parnamirim e o avião Breguet XIV AV2, matricula F-AGBV, número 306, o experiente aviador André Depecker, que levou o governador Juvenal Lamartine ao Seridó em 1928.
Eram nove e meia da manhã de uma quarta-feira ensolarada e em uma cidade do sertão potiguar uma multidão não parava de observar o céu. Estavam todos atentos ao surgimento de algo diferente daquilo que normalmente divisavam no horizonte, as desejadas nuvens de chuva.
Estamos no dia 16 de agosto de 1928, na centenária cidade de Acari, região do Seridó, onde a maioria dos seus habitantes se concentrava em uma área a alguma distância do centro da pequena urbe. Um local que até recentemente era apenas mato. Logo circulava de boca em boca no meio da multidão, que na cidade o dedicado telegrafista Mário Gonçalves de Medeiros havia recebido uma mensagem dando conta que o governador potiguar Juvenal Lamartine de Faria estava a caminho.
E os acarienses continuavam olhando para o alto, pois dessa vez aquela autoridade não chegaria de automóvel, vindo pela Rodagem, mas estaria entre seus amigos desembarcando de um moderno avião. A primeira aeronave a voar pelo interior do Rio Grande do Norte.
Aquele era o momento da inauguração do campo de pouso de Acari, um acontecimento que era visto com extremo orgulho por todos na cidade e apontava para interessantes possibilidades de progresso.
Acari era a primeira cidade potiguar a ter esse tipo de benfeitoria inaugurada pelo governador Lamartine. Sendo uma obra construída pela comunidade, com assessoria do governo do estado, tendo a frente dos trabalhos os fazendeiros Cipriano Bezerra Galvão Santa Rosa e Cipriano Pereira de Araújo. Além de Acari, ainda naquele dia 16 de agosto o governador Lamartine seguiria para Caicó, a maior e mais importante cidade da região, para inaugurar o campo de pouso local. Uma grande e detalhada reportagem do jornal natalense A República (18/08/1928), foi publicada em sua primeira página sobre a construção desses campos e como ocorreram esses eventos.
Circulavam pela pista de terra dos mais abastados aos mais humildes acarienses e seridoenses. Veio gente das povoações de Carnaúba, Cruzeta, São José e outros das vizinhas cidades de Currais Novos, Jardim do Seridó, Parelhas e até de mais distante. Homens, mulheres, crianças e idosos com seus cabelos prateados se misturavam aos vaqueiros com chapéus de couros, que orgulhosamente eavam em seus cavalos. Estes últimos circulavam ao lado dos automóveis dos coronéis, que traziam seus familiares para ver o progresso vindo dos céus.
Em meio à agonia da espera, alguns comentaram Mário Gonçalves de Medeiros havia recebido novas informações da agem do avião sobre as cidades de Macaíba, Santa Cruz e Currais Novos.
O Avião Está Chegando
Realmente para os potiguares da época, todo aquele movimento aviatório era um assombro. Nem fazia tanto tempo assim, quase seis anos, quando o hidroavião com Euclides Pinto Martins e alguns norte-americanos, conhecido em Natal como “Libélula de Aço”, tinham sido a primeira aeronave a sobrevoar o Rio Grande do Norte e a visitar a capital. Logo vieram outras aeronaves, como um hidroavião branco que sobrevoou Natal e depois baixou no Rio Curimataú, perto de Canguaretama, sendo pilotado por um argentino chamado Ollivieri. Na sequência a capital potiguar recebeu os hidroaviões do italiano De Pinedo, do português Sarmento de Beires e a esquadrilha de três aeronaves da aviação do exército dos Estados Unidos.
Hidroavião da esquadrilha Dargue, que esteve em Natal em 1927.
Mas o que verdadeiramente encheu os potiguares de orgulho e enlouqueceu a capital foi à chegada do hidroavião brasileiro Jahú, pintado de vermelho e pilotado pelo paulista João Ribeiro de Barros. Mesmo com todos os problemas ligados a esse “Raid”, os potiguares quase explodiram de satisfação ao saber que eram os primeiros brasileiros a receber aquele hidroavião em nosso território continental.
Não demorou a circular a notícia que os ses estavam construindo um campo de pouso em um lugar chamado Parnamirim, não muito distante de Natal. E em outubro de 1927 aquele local foi palco de um verdadeiro prodígio – Um avião francês atravessou o Atlântico com o piloto Dieudonné Costes e seu companheiro Joseph Le Brix e aterrissou em Parnamirim, depois de terem partido de Paris apenas dois dias antes. No mês anterior ao da inauguração dos campos no Seridó, os italianos Arturo Ferrarin e Carlo Del Prete tinham descido em uma praia perto de Touros, depois partirem de Roma e voar sem escalas entre a Europa e a América do Sul.
População de Touros (RN) empurrando o avião S.64 de Ferrarin e Del Prete até a vila de pescadores.
Aquelas notícias corriam por todo Rio Grande do Norte. Mesmo com muitos sertanejos sem compreender totalmente seu significado, só o fato de saber que modernas aeronaves vindas do outro lado do mundo tinham como destino a sua terra, o seu estado, era algo que criava um clima diferente, positivo e intenso.
No caso de Acari, quando chegaram os homens do governo para elaborar a construção da pista do campo de pouso, tendo a frente o capitão-tenente aviador naval Djalma Fontes Cordovil Petit, o falatório e a curiosidade foram gerais. Agora, naquela ensolarada manhã de quarta-feira, ali no campo de pouso, todos aguardavam o governador Juvenal Lamartine para inaugurar aquela obra.
Djalma Petit e Juvenal Lamartine. Foto da Revista Cigarra. Fonte-http://peryserranegra.blogspot.com
Quando faltavam cerca de dez minutos para as dez, alguém viu ao longe um avião pintado de branco e o frêmito da multidão foi geral. Primeiramente a máquina sobrevoou algumas vezes Acari e logo, com extrema maestria e para assombro de todos os presentes no campo de pouso, o “bicho” ou baixo e roncando forte. Deu para ver o piloto acenando e umas letras pintadas de preto na lateral da máquina voadora. Aí o avião deu uma volta e ou de novo sobre a pista, como querendo observar o lugar para ter segurança para pousar. Não demorou e o piloto aterrissou seu avião com perfeição, mas levantou uma poeira danada.
Chegada do Breguet no campo de pouso de Acari em 15 de agosto de 1928.
A máquina rodou pela pista que tinha 500 metros de extensão, por 150 de largura. Foi aos poucos desacelerando e parou. Quando o governador Lamartine surgiu com um gorro de piloto, a multidão estourou em aplausos.
Juvenal e a Aviação
Mesmo tendo nascido na cidade potiguar de Serra Negra do Norte, mais precisamente na fazenda Rolinha, Juvenal Lamartine cultivou uma relação muito próxima com Acari, terra de sua mulher Silvina Bezerra de Araújo Galvão. Ali foi juiz de direito por sete anos, tinha muitos amigos e a região era seu principal reduto eleitoral.
Festividade em Natal para os aviadores italianos Ferrarin e Del Prete. Da esquerda para direita vemos o Cônsul italiano em Recife, Arturo Ferrarin, Juvenal Lamartine, Carlo del Prete e a cientista Berta Lutz.
Homem inteligente, culto e vivaz, Lamartine certamente foi um dos primeiros potiguares a perceber as vantagens positivas que a localização do Rio Grande do Norte trazia para a incipiente indústria da aviação. Quando assumiu o governo potiguar em janeiro de 1928, Lamartine propagava um forte discurso desenvolvimentista, utilizando como exemplo a aviação em terras potiguares. Imaginava Lamartine que em pouco tempo o Rio Grande do Norte, bastante carente de ligações rodoviárias e ferroviárias, poderia ter na aviação uma maneira de ligar mais rapidamente seus extremos.
Entre seus feitos nessa área podemos listar o total apoio às empresas aéreas estrangeiras que aqui se instalaram, a criação de um aeroclube e de uma escola de aviação em Natal e a construção de campos de pouso em cidades do interior.
Mesmo com toda sua inteligência e capacidade, Juvenal era um homem do seu tempo e do seu lugar. Não foi surpresa ele apoiar e incentivar fortemente a criação nas cidades de Acari e Caicó dos primeiros campos de pouso no sertão. No futuro aqueles locais poderiam até nem receber mais aeronaves, mas realizar aquelas inaugurações, diante de sua gente e chegando dos céus em uma aeronave estrangeira, era algo que não tinha preço.
De Cavalo de Batalha na Primeira Guerra, Para o Sucesso no Uso Civil
Já o avião biplano que transportou o governador era de fabricação sa, chamado Breguet XIV AV2, desenvolvido inicialmente como avião militar na Primeira Guerra Mundial.
Seu idealizador foi o engenheiro Louis Charles Breguet, que no início de 1916 propôs as forças armadas sas o desenvolvimento de um grande biplano monomotor de dois lugares, chamado Breguet AV. O protótipo AV1 voou pela primeira vez em 21 de novembro de 1916, com um motor de 250 hp e se mostrou extremamente bem sucedido. Essa aeronave podia levar uma carga de 730 kg, se elevando aos 6.500 metros de altitude em alguns minutos e atingindo a velocidade máxima de 175 km/h, feito que poucos aviões de caça da época poderiam alcançar. Breguet então decide ampliar a capacidade de motorização de sua nova aeronave para 275 hp e nasce o protótipo AV2, que incorpora dois tanques de combustível de 130 litros e um tanque de óleo (20 litros) no lado direito do motor.
Assim que os testes oficiais do AV2 foram concluídos em janeiro de 1917, ele é batizado de Breguet XIV e 508 unidades foram encomendados pelos ses. O resultado geral é bastante positivo e a nova aeronave se torna um verdadeiro “Cavalo de batalha” da aviação sa nos últimos anos da Primeira Guerra. Logo surge uma versão de bombardeio de dois lugares, equipada com motor V12 Renault, de 300 cv. Mais de 1.500 aeronaves são encomendadas a Louis Breguet, que também foi vendida para a aviação militar belga e para a Força Expedicionária Americana. Em abril desse ano Louis Breguet consegue entregar aos seus clientes quatro unidades dessa aeronave por dia e 2.000 aviões estão em serviço no final da guerra, com versões que incluem aviões de treinamento, bombardeiro de longo alcance, transporte de feridos e uma versão equipada com flutuadores.
Em fevereiro de 1919, Louis Breguet e outros sócios fundam a Compagnie des Messageries Aériennes (CMA), cuja linha principal liga Paris a Londres. Essa empresa aérea civil opera entre 1919 e 1923 e os aviões militares Breguet XIV A2 são usados com tanques adicionais e recipientes colocados sob as asas para transportar malas postais entre Paris, Bruxelas e Londres. O uso pela CMA desses aviões mostram suas vantagens e qualidades para a aviação civil. Logo outra empresa aérea sa vai utilizar o mesmo avião com esse fim, principalmente do outro lado do Oceano Atlântico.
Breguet XIV AV2 da Latécoère na França.
Durante a Primeira Guerra Mundial o visionário Pierre Georges Latécoère, decidiu transformar sua fábrica de vagões em um centro de produção aeronáutica. Em 1918, com a paz restaurada e percebendo a urgência de acelerar a comunicação entre os países, Latécoère cria em 1º de setembro de 1919 uma linha aérea regular para transportar o correio entre a França e o Marrocos, cujo voo inicial foi realizado pelo piloto Didier Daurat, diretor das linhas Latécoère, em um Breguet XIV A2. Depois a linha, ou “La Ligne”, como os ses a denominavam, chegou a Dacar, na antiga África Ocidental sa e hoje capital do Senegal. Na sequência Daurat recrutou pilotos como Jean Mermoz, Henri Guillaumet, Antoine Saint-Exupéry e André Depecker.
Em abril de 1927 Pierre Georges Latécoère cedeu a linha aérea à Marcel Bouillioux-Lafont, investidor francês radicado na América do Sul. A razão social da empresa ou a ser Compagnie Générale Aéropostale (CGA).
Marcel Bouilloux-Lafont
Lafont tinha planos ambiciosos, com a ideia de criar uma grande linha aérea postal de Toulouse, Casablanca, Dacar e daí para Natal, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Santiago do Chile. Nesta ideia empreendedora, ainda em julho de 1927, vindo do Rio de Janeiro, chega a capital potiguar um avião Breguet pilotado pelo francês Paul Vachet e mais dois companheiros. Eles vêm para implantar em um descampado conhecido como Parnamirim, o primeiro aeródromo do Rio Grande do Norte. Fato que comentamos anteriormente.
Em 1 de março de 1928 foi inaugurado o primeiro serviço aeropostal entre a França e a América do Sul. Nesta operação os aviões partiam de Paris até Dacar, onde os malotes com correspondências eram então embarcados em navios pequenos e bastante velozes conhecidos como “Avisos Postais”, ou “Avisos Rápidos”, que atravessavam da África até Natal. Depois eram embarcados em aviões para o sul do país.
Como no Brasil basicamente as rotas aéreas dos ses percorriam o litoral, certamente eles jamais pousariam com alguma regularidade em Acari, Caicó ou algum outro campo de pouso que viessem a ser criado no interior do Rio Grande do Norte. Mas não era nenhum prejuízo para esses estrangeiros realizar aquele voo e satisfazer o governador Lamartine naquela viagem ao Seridó. Contanto que este continuasse colaborando com seus interesses em terras potiguares. Percebi que a Compagnie Générale Aéropostale deu muita importância no apoio àqueles eventos, pois além do piloto e Juvenal Lamartine, seguia no avião George Piron, diretor da empresa sa em Natal.
O Primeiro Piloto a Sobrevoar o Sertão Potiguar
E para ocasião festiva em Acari e Caicó foi convocado para pilotar o Breguet XIV A2, matricula F-AGBV, número 306, o experiente aviador André Depecker, um dos melhores da Aéropostale, com anos de atuação no transporte de correio aéreo e de ageiros na Europa, África Ocidental e América do Sul. Além de tudo isso, Depecker era um dos pilotos ses mais populares e conhecidos em Natal.
Detalhe do avião Breguet.
Realmente aquela missão tinha de contar com um piloto como Depecker. Até aquela data nenhuma aeronave havia sobrevoado o sertão do Seridó e nem aterrissado nas cidades de Acari e Caicó. Ele tinha experiência suficiente para voar com mapas simples e poucas referências, seguindo adiante basicamente no visual. É possível que Juvenal Lamartine tenha ajudado Depecker na orientação do caminho a seguir para Acari, pois no ado já havia realizado várias viagens no lombo de burros entre o Seridó e Natal, conhecia bem as referências do caminho por terra e falava fluentemente francês.
André Depecker nasceu em 1904, na cidade de Hautmont, extremo norte da França, não muito distante da fronteira com a Bélgica. Ele tinha apenas dez anos de idade quando estourou a Primeira Guerra Mundial. Não sabemos se sua família foi atingida diretamente pelo conflito, mas sabemos que sua cidade esteva na zona ocupada pelas tropas alemãs e só foi libertada pelos ingleses em novembro de 1918.
André Depecker.
Sobre aspectos de sua vida e sua entrada na aviação, nada conseguimos apurar. Mas nos antigos jornais sempre encontramos várias notas elogiosas sobre seu trabalho, atuação e caráter.
O conceituado crítico de arte Antônio Bento de Araújo Lima, que se criou na fazenda Bom Jardim, em Goianinha, Rio Grande do Norte, registrou no Diário Carioca (12/11/1935-P.6) como havia sido seu primeiro voo, seguindo a rota entre Natal e o Rio de Janeiro, cujo piloto foi André Depecker. Para Bento o voo foi fenomenal, onde ele teve a oportunidade de sobrevoar o Rio durante a noite, “fantasticamente iluminado”, em condições atmosféricas perfeitas. O ageiro classificou o piloto francês como “Forte, calmo, corajoso e ao mesmo tempo de uma prudência incomparável”. Segundo o periódico recifense Jornal Pequeno (14/04/1930-P.1) Depecker foi condecorado em abril de 1930 pela Societé Aeronautique de , em decorrência do apoio prestado aos aviadores italianos Ferrarin e Del Prete em Touros.
O francês parece que gostou muito do Brasil, tendo um carinho muito especial pelo Rio Grande do Norte. Em 2007 eu realizei uma entrevista com o escritor Oswaldo Lamartine de Faria, filho do governador Juvenal Lamartine e que na juventude conheceu vários pilotos ses que estiveram em Natal, pois sua casa no bairro de Petrópolis era próxima do local que alojava esses aviadores. Oswaldo Lamartine me disse que André Depecker havia se apaixonado ardorosamente por uma jovem da cidade de São José de Mipibu. Meu entrevistado não sabia a situação anterior dessa mulher, mas sabe que o francês montou uma casa para ela, onde se encontravam quando ele aqui escalava. O fato chamou tanta atenção na provinciana e pequena cidade, que essa mulher foi apelidada de “Maria de Depecker” e até uma música de carnaval foi para ela criada.
Avião em que pereceu André Depecker.
Anos depois, em 5 de novembro de 1935, vamos encontrar André Depecker pilotando um avião Latécoère 28, prefixo F-AJIQ. Segundo o Diário Carioca (06/11/1935-P.1) junto com ele seguiam os ses Joseph Le Duigou, operador de rádio, Auguste Morel, engenheiro de voo, e Fernand Clavere, navegador. A aeronave procedia de Buenos Aires, Argentina, com escala em Montevideo, Uruguai, pousando nos principais aeródromos ao longo da costa brasileira e tendo como destino Natal. O Latécoère 28 transportava quilos de correspondências destinadas a Europa. Após a partida de Salvador a equipe confirmou pelo rádio que tudo estava indo bem a bordo. Algum tempo depois, no que se acredita ser o litoral do atual município baiano de Conde, o avião caiu no mar em circunstâncias até hoje desconhecidas. Os destroços da aeronave e os quatro corpos foram encontrados, bem como algumas malas postais.
Juvenal Lamartine em Acari
Segundo a reportagem de A República (18/08/1928), após Juvenal Lamartine, George Piron e André Depecker desembarcarem do Breguet XIV A2 no campo de pouso de Acari, foram recebidos por várias autoridades. Entre estes se encontravam o Coronel Felinto Elísio (de Jardim do Seridó e presidente da Assembleia Legislativa), o Padre Bianor Aranha e o Dr. Eurico Montenegro (juiz de direito de Acari). Logo se sucederam vários discursos.
Na sequência foi formado um grande corso de automóveis e todos seguiram para a residência de Cipriano Pereira de Araújo, onde foi oferecido um almoço aos presentes. No final do banquete Juvenal Lamartine levantou um brinde para Terezinha, filha do seu amigo Cipriano.
Após esse almoço o grupo seguiu para a sede da Presidência da Intendência, onde foi realizada uma cerimônia de incentivo ao sufrágio feminino no Rio Grande do Norte, que contou com a presença da cientista paulista Betha Maria Julia Lutz, ativista feminina, grande incentivadora do voto feminino. Sobre esse interessante evento eu comentarei em uma futura postagem do nosso TOK DE HISTÓRIA.
Martha Maria de Medeiros
Entre os seridoenses que vieram testemunhar o fato estava Marta Maria de Medeiros, professora formada na Escola Doméstica de Natal e filha do fazendeiro Joaquim Paulino de Medeiros, conhecido por todos em sua região como Coronel Quincó da Ramada, e de Maria Florentina de Jesus. Marta vivia com os pais na Fazenda Rajada, que ficava próximo da grande e bela serra homônima e do povoado de Carnaúba, atual município de Carnaúba dos Dantas. A professora era uma iradora do governador Lamartine, com quem sua família tinha ótimas relações. Marta havia seguido o chamamento do governador quando ele pediu que jovens senhoritas potiguares, que possuíam determinado nível de instrução, se inscrevessem para a concessão de títulos eleitorais, os primeiros da América do Sul. Ela se inscreveu oficialmente em Acari no dia 10 de dezembro de 1927, tornando-a a quarta eleitora do Rio Grande do Norte e a primeira da região do Seridó. Inclusive foi Marta Medeiros quem recebeu Bertha Lutz em Acari, conforme comentarei futuramente.
O autor dessas linhas, quando ainda era um simples estudante, teve o privilégio e a honra de ouvir Marta Maria de Medeiros, minha tia-avó, narrar a sua visão da inesquecível chegada desse avião em Acari.
Chegada em Caicó
Somente às três da tarde os tripulantes retornaram ao avião Breguet, em meio a muitos aplausos dos presentes, e partiram de Acari para Caicó,.
Após 30 minutos de voo a aeronave sa sobrevoou Caicó e depois seu campo de pouso. A aterrissagem, segundo o jornal A República, foi dificultada pelas pequenas dimensões do campo de pouso, que teve a frente dos trabalhos de construção o Coronel Celso Dantas. Mas o pássaro de aço francês aterrissou em segurança. Segundo Antônio Luís de Medeiros, competente genealogista potiguar e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, as dimensões desse antigo campo de pouso em Caicó eram reduzidas e ficava localizado próximo da estrada que segue para Jardim do Seridó, numa área conhecida como Baixa do Arroz, não muito longe da área onde se localiza atualmente o Açude Itans.
Juvenal Lamartine, na inauguração do campo de pouso em Caicó.
Após deixarem a aeronave, tal como em Acari, começaram os discursos e aplausos. Segundo A República o empresário caicoense Renato Dantas realizou um elogio a André Depecker, comentando que o francês havia realizado uma pilotagem competente, por uma região “nunca dantes navegada”.
Eles ficaram hospedados na casa de Celso Dantas e a noite todos participaram de um evento em homenagem ao governador e a ativista Betha Lutz, que chegou a Caicó de automóvel.
Segundo o jornal natalense A República (18/08/1928), no outro dia pela manhã o Breguet decolou e pousou novamente em Acari, onde esteve na Escola Tomaz de Araújo, onde foi recebido pela professora Iracema Lopes Brandão, que pronunciou um discurso. À tarde o Breguet retornou a Natal.
Serra da Rajada, Seridó Potiguar – Fonte – Rostand Medeiros
Autor – Fernando Antonio Bezerra – Potiguar do Seridó. Iniciante no ofício de escrever sobre fatos e personalidades do Seridó amado. É advogado e membro do Instituto de Genealogia do Rio Grande do Norte.
José Augusto Bezerra de Medeiros, além de político, foi um grande pesquisador a respeito das coisas do Seridó. Felizmente deixou vários apontamentos impressos que servem de pesquisa e, de fato, ajudam a estabelecer o elo entre o presente e o ado. De início, confirmando outros tantos estudos já feitos, José Augusto comenta que “na zona do Seridó, por exemplo, certo e seguro é afirmar que todo movimento povoador decorreu da necessidade de encontrar espaço para a localização de fazendas de criação de gado”. Acrescenta, ainda, que, durante algum tempo, foi o Rio Grande do Norte o principal fornecedor de carne bovina para as Capitanias da Paraíba e Pernambuco. Presente, portanto, desde o início, nossa vocação para a pecuária e, de certa forma, o longo aprendizado que nos permite, mesmo diante de secas inclementes, criar e manter rebanhos bovinos no Seridó que a gente ama.
E os primeiros grandes núcleos familiares se estabeleceram, em regra, em função da pecuária. José Augusto menciona o que chama de fundadores das primeiras famílias do Seridó: 1) Araújo, com Tomaz de Araújo Pereira e Maria da Conceição Mendonça; 2) Dantas, com Caetano Dantas Correia e Josefa de Araújo Pereira; 3) Medeiros, com Rodrigo de Medeiros e Apolônia Barbosa; Sebastião de Medeiros e Antonia de Morais Valcacer; 4) Galvão, com Cipriano Lopes Galvão e Adriana de Holanda Vasconcelos; 5) Garcia, com Antonio Garcia de Sá e Maria Dorneles Bitencourt; 6) Bezerra, com José Bezerra Menezes e Maria Borges de Sacramento; 7) Monteiro, através de Manuel Pereira Monteiro e Teresa Tavares de Jesus; 8) Nóbrega, com Manuel Alves de Nóbrega e Maria José de Medeiros; 9) Silva, com Francisco Gomes da Silva e Maria Joaquina dos Santos Dantas; 10) Faria, com Joaquim Álvares Gomes de Faria e esposa; 11) Azevedo, com Antonio de Azevedo Maia e Josefa Maria de Almeida; 12) Fernandes, com Cosme Damião Fernandes e Isabel Maria de Araújo Fernandes. Outras famílias – Brito, Álvares, Pires, Alves dos Santos, Batista, Queiroz, Vale, por exemplo – também são antigas no nosso lugar, entretanto, o trabalho de pesquisa de José Augusto não investiga os fundadores dos primeiros núcleos, lacuna que já foi preenchida por outros pesquisadores, sobre os quais em outro momento conversaremos.
De todo modo, particularizando a família Medeiros, numerosíssima em todo o Seridó, José Augusto reafirma que os irmãos Rodrigo e Sebastião são portugueses e se instalaram na Região, proximidades do Sabugi, nos limites do que hoje é Santa Luzia, na Paraíba. Os irmãos Medeiros conseguiram casamento por aqui com Apolônia e Antônia, irmãs entre si, filhas de Manuel Fernandes Freire e de Antônia de Morais. Uma pesquisa mais aprofundada da Família Medeiros/Dinoá complementa, sem contrariar os apontamentos de José Augusto, que Rodrigo e Sebastião são filhos de Manuel Afonso de Matos, Alferes, e Maria de Medeiros Pimentel, naturais da Ilha de São Miguel, nos Açores, Portugal e, por lá, eram da família Matos. Migraram para o Brasil na primeira metade do século XVIII, aram a usa r o sobrenome Medeiros e deixaram aqui numerosa descendência.
Os laços e abraços entre as famílias do Seridó são intensos. Por muitos anos, inclusive, a preferência das famílias era o casamento entre parentes. Razões para tanto não faltavam. Desde a preservação do patrimônio até o fato de que a população era menor, os eventos sociais raros, as distâncias maiores, enfim, muitas vezes não existia sequer a oportunidade do encontro entre os jovens. Ademais, de um tempo para frente, o fluxo migratório inverteu, ou seja, deixamos de receber outras famílias. Ao contrário, começamos a sair para outros centros e espalhar o sangue bom do Seridó em lugares como Natal, Recife, Campina Grande, São Paulo e Brasília, dentre outros onde os núcleos seridoenses são mais visíveis. Aliás, é relativamente comum em Natal encontrarmos descendentes de famílias seridoenses em uma mesma roda de conversa e, não raro, um ser parente do outro e não saber. Mas, mesmo não tendo o parentesco próximo, o laço de estima à Região nos une e, ao nos unir, é comum a batida no peito e a palavra de orgulho: ei, mas eu também sou do Seridó!
ROSTAND MEDEIROS – SÓCIO EFETIVO DO INSTITTO HISTÓRICO DO RIO GRANDA DO NORTE
O ano de 1927 seria marcante, extremamente interessante na história potiguar. Em meio à chegada de primitivos aviões que atravessavam o Atlântico, a agem de Lampião e seus cangaceiros atacando Mossoró, ocorria em nosso estado uma forte campanha para ser concedido legalmente o direito das mulheres terem o direito ao sufrágio universal, fato este que tornaria estas mulheres às primeiras eleitoras a votar no Brasil e na América do Sul.
Nos final dos anos 20 do século ado, crescia fortemente no país a idéia do voto feminino, mas estas idéias não alcançavam a devida atenção das classes dominantes.
Bertha Maria Júlia Lutz
As mulheres partiam para a luta, com a criação de entidades de apoio à causa do sufrágio feminino, uma destas entidades era a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que através da sua Presidente, a cientista brasileira Bertha Maria Júlia Lutz, buscava deputados federais que apoiassem a criação de um projeto de lei dando vez ao voto das mulheres.
A Luta pelo Voto Feminino
No Senado Federal, o senador potiguar Juvenal Lamartine de Faria apoiava a intenção à idéia do voto feminino, mas encontrava pouco apoio dos seus pares. Quando este deputado, membro da elite dominante da política potiguar entre os anos de 1910 e 1930, teve o seu nome apontado para a sucessão de José Augusto Bezerra de Medeiros, já pleiteava pioneiramente em seu programa de governo, lançado em 9 de abril de 1927, a idéia das mulheres terem o direito a votar e serem votadas em território potiguar.
Ainda em 1926, estava sendo revista à lei eleitoral do Rio Grande do Norte, quando a redação final estava quase pronta, Juvenal Lamartine manda um telegrama do Rio de Janeiro mandando acrescentar um artigo que abria uma real possibilidade para a efetivação do voto feminino.
Oficialmente, em 27 de outubro de 1925, era sancionada a lei nº 660 que “Regula o Serviço Eleitoral do Estado”, onde no artigo 77 das Disposições Gerais estava escrito “No Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, SEM DISTINÇÃO DE SEXO, todos os cidadãos que reunirem condições segundo a lei”. A lei foi sancionada pelo Governador José Augusto e referendada pelo então Secretário Geral, Anfilóquio Carlos Soares da Câmara.
Em poucos dias esta lei repercutia fortemente na Capital Federal, mais precisamente na Câmara dos Deputados, provocando acalorados debates, onde os deputados potiguares, principalmente Dioclécio Duarte, defendiam a iniciativa. Em pouco tempo na notícia corria todo o Mundo, sendo aclamado em vários jornais feministas.
Para votar, as mulheres necessitariam ser maior de 21 anos, ter uma profissão que lhes garantisse renda, não ser analfabeta, nem estar vivendo na mendicância e não ser religiosa com voto de obediência.
Os jornais potiguares todos os dias traziam novas notícias sobre os debates em relação ao voto feminino em várias partes de país.
As Primeiras Eleitoras
Com a vigência da lei, logo algumas mulheres buscaram o seu alistamento e começou uma espécie de corrida para saber quem seria a primeira.
Celina Guimarães Vianna
Coube a Mossoró a honra de ter a primeira mulher oficialmente alistada e a primeira a receber um título eleitoral na América do Sul. Coube a professora Celina Guimarães Vianna, com 29 anos, que teve seu alistamento eleitoral publicado no Diário Oficial, em 25 de novembro 1927. A jovem professora foi notícia em todo Brasil e teve seu nome registrado em vários jornais pelo Mundo afora.
Logo depois, na Argentina, mais precisamente na província de Santa Fé, movimento igual ao ocorrido em terras potiguares se repetiria, tornando a nação platina à segunda no continente a sufragar o direito do voto feminino.
Mas voltando ao Rio Grande do Norte, no dia 29 de novembro de 1927, Beatriz Leite de Morais, também de Mossoró, teria a publicação do seu alistamento estampada no Diário Oficial e se tornaria segunda eleitora inscrita.
Júlia Alvs e o juiz Montenegro
Em Natal, a professora Julia Alves Barbosa requereu seu alistamento no dia 24 de novembro, mas entre o parecer do juiz eleitoral da capital, J. Manuel Xavier Montenegro e a publicação no Diário Oficial, em 1 de dezembro, transcorreram nove dias e a eleitora da capital se tornava a terceira se alistar corretamente.
As congratulações do políticos a primeira eleitora de Natal
Enquanto isto no Seridó, mais precisamente em Acari, a professora Marta Maria de Medeiros, de 24 anos, nascida e morando na Fazenda Rajada, filha do fazendeiro e coronel nomeado da Guarda Nacional Joaquim Paulino de Medeiros e da senhora Maria Florentina de Medeiros (conhecida como Dona Maricota), buscava junto ao Juiz da cidade, João Francisco Dantas Sales, o seu alistamento eleitoral, pois preenchia todas as condições para a inscrição. O Dr. Sales era irmão do também juiz Celso Dantas Sales, pai dos Cadeais Dom Eugênio de Araújo Sales e Dom Heitor Sales.
Marta Maria de Medeiros
A decisão do juiz Sales, ante o pedido da professora, foi publicada oficialmente no dia 10 de dezembro de 1927, tornando-a a quarta eleitora do Rio Grande do Norte e a primeira da região do Seridó.
Vitória
Em um documento pontuado por diversas razões de ordem histórica para argumentar sua decisão, o juiz aponta que “Não há motivo para se recusar à mulher o direito a voto. A história de todos os povos e de épocas, lida atenciosamente encerra em cada página a eloqüência de um vulto feminino. A mulher foi sempre à inspiradora do homem: teve sempre uma influência incontestável nos assuntos políticos e sociais”. (Mais adiante neste artigo temos a íntegra da decisão do juiz Sales, mantida na grafia original).
Mas este seria apenas a primeira batalha, faltava a votação. Esta viria a ocorrer quase quatro meses depois, na vaga aberta para o Senado Federal, com a eleição de Juvenal Lamartine para Governador. Era o momento das mulheres sufragarem seu direito.
Grupo de eleitoras. Marta Medeiros seria a primeira que está sentada, a esquerda do grupo. Foto da revista “A Cigarra”
O candidato único ao Senado, como era praxe naquele período de eleições com uma conotação partidária distinta, foi o ex-governador José Augusto. Era na prática, uma troca entre correligionários.
Independente do sistema eleitoral em vigor neste período, no dia 5 de abril de 1928, das vinte eleitoras inscritas em todo Rio Grande do Norte, quinze exerceram pela primeira vez no Brasil o direito do sufrágio político.
Julia Medeiros votando em Caicó
Tempos depois Marta Medeiros teve a oportunidade de conhecer Bertha Lutz, quando a mesma visitou o interior do Rio Grande do Norte e recebeu a líder sufragista em Acari. Vale ressaltar que Marta foi à primeira eleitora oficial do Seridó. Contudo, a primeira mulher a efetivamente realizar o gesto de colocar um voto em uma urna eleitoral na região, diante dos representantes dos partidos, do juiz e ter este fato registrado fotograficamente, foi a caicoense Julia Medeiros. A foto que mostra esta ocasião é a que ilustra este artigo.
Página do primeiro número da revista “A Cigarra”, de 1928, mostrando a ação das mulheres que batalhavam pelo voto
Para a poetisa Palmyra Wanderlei, o comparecimento das mulheres as urnas foi chamado por ela de “os votos de páscoa”, pela coincidência das eleições de 5 de abril serem realizadas próximas a Semana Santa de 1928. A poetisa escreveu em “A Republica”, de 13 de abril, que o sufrágio feminino “Chegou com a Aleluia. E cheira a rosa fresca de uma madrugada de um dia de Ressurreição”.
Reações ao Voto Feminino no Rio Grande do Norte e a Primeira Prefeita da América do Sul
Estas mulheres poderiam comemorar esta votação tão importante, mas logo viria a já esperada reação. Em 18 de maio, a toda poderosa Comissão de Poderes do Senado, exclui os votos femininos da eleição de José Augusto, mas mesmo assim proclama-o senador pelo Rio Grande do Norte.
Elas foram às primeiras eleitoras da América do Sul a votar e as primeiras a terem os votos anulados.
Julia Alves Barbosa
Mas nem tudo eram flores. A eleitora Julia Alves Barbosa, assinando um artigo com suas iniciais “JAB”, na segunda página da edição de domingo, 15 de abril de 1928, do jornal “A Republica”, fazia uma severa crítica a falta de vontade das próprias mulheres potiguares em se alistar. Dizia “Porque tanta timidez quando se trata de alistamento eleitora?”. Julia apontava que havia as que não participavam e ainda criticavam o movimento feminista. “As mulheres, no Rio Grande do Norte, sem entusiasmo, muitas até ridicularizado o movimento emancipador, não vem com bons olhos suas vinte ou trinta companheiras interessadas na campanha feminista. Indagando a causa, vejo, com pesar, outra não ser, senão o tal preconceito social”. Para ela a raiz deste “preconceito social” estaria no fato de muitas não desejarem “desgostar seus maridos, noivos, irmãos, etc”.
O artigo apontava que dentro dos lares e nas rodas sociais, as críticas as feministas eram extremamente severas e preconceituosas. Para Julia era conveniente aos homens que as mulheres fossem “suas inferiores-escravas humildes, nas senzalas de seus lares”.
A manchetes sobre o voto feminino era quase diárias em Natal
Independente desta questão, a luta continuou e novas conquistas vieram. Como a lei 660 dava o direito a votar e ser votado, em 1929, a Senhora Alzira Soriano venceu o pleito eleitoral para prefeitura da cidade potiguar de Lages, obtendo 60% dos votos e derrotando o Senhor Sérvulo Pinheiro Neto Galvão. Tornando-se a primeira prefeita eleita da América do Sul.
Como as eleitoras que tiveram os títulos anulados, Alzira Soriano viria a ostentar o negativo título de primeira prefeita cassada por uma revolução. Isso ocorreria no movimento revolucionário de 1930, que a depôs, juntamente com o governador Juvenal Lamartine.
Mas a semente fora lançada e cada vez mais as mulheres conquistariam seus direitos eleitorais neste país.
Orgulho
A inscrição de Marta Medeiros foi um motivo de extremo orgulho para sua família. Uma das razões que muito ajudou a jovem professora a se alistar foi apoio do seu irmão mais velho, Joaquim Paulino de Medeiros Filho, meu avô, mais conhecido como Jaco. Este era um homem de muita cultura e de espírito extremamente rebelde. Jaco havia abandonado, por divergências políticas junto a seus professores, a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Mesmo sendo filho de um fazendeiro importante na sua região, era simpatizante do Partido Comunista, tendo atuado junto à causa e sido preso e condenado pela sua participação na Intentona Comunista de 1935.
“O Seridoense”, edição de 23 de dezembro de 1927
A única cópia existente e integral da sentença do despacho do Juiz João Francisco Dantas Sales, está em um exemplar do jornal “O Seridoense”, publicado em Caicó, na edição de 23 de dezembro de 1927. O mesmo se encontra na coleção de jornais antigos do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
JURISPRUDÊNCIA
Juiz de Direito da Comarca de Acary
Alistamento eleitoral. A Senhorita Martha de Medeiros, diplomada pela Escola Domestica de Natal, requer sua inclusão no alistamento eleitoral do município de Acary.
Despacho-Vistos, etc. – A Senhorita Martha Maria de Medeiros, com 24 annos de idade, natural deste Estado, filha legitima de Joaquim Paulino de Medeiros, solteira, professora particular, residente no sítio “Rajada”, deste Município, exhibindo os documentos flas. a (ilegível) requer a sua inclusão no alistamento eleitoral.
O sufrágio feminino tem agitado a imprensa e os parlamentos dos povos mais cultos do mundo. E já foi adoptado pela legislação de quasi todas as nações civilisadas. As mulheres exercem direitos eleitoraes em trinta e nove paízes.
Na Europa, quem primeiro agitou no seio de uma assembléa legislativa o voto das mulheres foi o grande Stuatt Mill, que, pleiteando essa medida, exclamara em pleno parlamento inglez: “É necessario dar a essas escravas uma protecção legal, porque nos sabemos muito bem qual a protecção que os escravos podem esperar quando as leis são feitas pelos seus senhores.”
Para os antigos a missão da mulher era toda obediência, ividade, sacrifício.
Era a submissão incondicional, era um ente secundario e cujo unico destino se encarnava na maternidade. A mulher não tinha direitos. Era um animal inferior e despresivel, tendo apenas deveres, os mais rudes, os mais dolorosos, os mais humilhantes.
Actualmente, porem, a mulher desempenha dentro das repartições, dos ministérios, as mesmas funcções dos homens.
A lei eleitoral veda o politico às mulheres, pergunta Augusto de Lima, deputado federal pelo Estado de Minas Gerais.
Absolutamente não, responde o mesmo deputado, se o vedasse, infrigeria a Constituição, que não o veda, nem o poderia vedar, porque é uma Constituição democrática.
Alei eleitoral, copiando a Constituição, concede o direito ao voto aos “cidadões brasileiros, maiores de 21 annos, exceptuados: 1º os analfabetos; 2º os mendigos; 3º as praças; 4º os religiosos de ordens monásticas e outros, sujeitos a votos de obediencia ou outra qualquer renuncia ou restricção da liberdade.”
Os cidadãos brasileiros, portanto, maiores de 21 annos, que não estiverem capitulados nestas restricções prohibitivas, são alistáveis, como eleitores, e juiz nenhum pode, sem prevaricar, denegar-lhes o direito de incricção, diz Augusto Lima.
As mulheres são cidadãos brasileiros? Pergunta o mesmo deputado.
Se não fossem, seriam extrangeiros, mas pertencentes a que paíz, interroga Augusto Lima.
Constituição é clara e explicita; São considerados cidadãos brasileiros: a) os nascidos no Brasil.
A mulheres nascidas no Brasil são, pois, cidadão brasileiros: e, desde que não estejam incluídas em nenhuma das excepções que privam os cidadãos brasileiros do exercício do voto, não se pode deixar de reconhecer-lhe o direito de alistar-se como eleitor.
Ouçamos, agora, a opinião do Dr. Tito Fulgencio.
Este escritor em seu livro “Carteirinha o Alistando e do Eleitor” assim se expressa: “O que é da verdade mais verdadeira é que o direito de se inscreverem as mulheres entre os que formam o corpo de eleitores do paíz está regiamente garantido no texto expresso da Constituição: cidadãos são ellas, e está escrito no Artigo 69 da Constituição tanto que exercem direitos políticos, participando aos olhos de toda gente, no exercicio de funcções publicas, e desde que saibam ler e escrever, e não sejam mendigas, nem de ordem religiosa com voto de obediencia, eleitores são, e assim o diz o artigo 70 da Le Fundamental. O juiz brasileiro, continua Tito Fulgencio, que em verdade o queira ser, não exclue, não cercêa, não restringe direitos, senão quando isso lhe é soado aos ouvidos pelo teor da lei, pela sua expressão verbal.
Por argumentos, por subtilezas, por conveniencias… isso não, que é forma especifica de denegação de justiça”.
“Si a lei quizesse excluir a mulher do sulfragio politico, o teria expressado do mesmo modo que expressou quanto aos analfabetos, as praças, aos mendigos, aos religiosos”.
Demais é principio immutavel de interpretação juridica que em direito não se restringe por inducção, conforme affirma o senador Juvenal Lamartine, em sua “Plataforma” e mesmo porque “UBI LEX NON DISTINGUIT. NEC INTERPRES DISTIGUERE DEBET”. (Do latim – Quando a lei não distingue, tampouco o intérprete deve distinguir).
Não ha motivo para se recusar á mulher o direito do voto.
A historia de todos os povos e epoca, lida atenciosamente, encerra, em cada pagina, a eloquencia de um vulto feminino. A mulher foi sempre a inspiradora do homem: teve sempre uma influencia incontestavel nos assunptos políticos e sociaes.
Desde Catharina Paraguaçu, auxiliando com efficiencia a aproximação de duas raças: Clara Camarão e Dona Maria de Souza, as protagonistas da restauração de Pernambuco: Barbara Heliodora, que tudo sacrificou pelo dever e pela virtude, tomando parte saliente na Conjuração Mineira: Anita Garibaldi, do Rio Grande do Sul, fazendo quase toda a campanha da “Guerra dos Farrapos”: Dona Anna Nery, a valorosa baiana constituindo-se enfermeira nos campos de batalha da guerra do Paraguay: Dona Rosa da Fonseca, içando a bandeira nacional na frente de sua casa para festejar a victoria de Itororó, na qual succumbira seu filho Eduardo, até Bertha Lutz, que representa no Brasil a mais alta expressão o feminismo, batendo-se desassombradamente pela emancipação politica do sexo feminino, a mulher tem dado provas irrefragáveis de seu valor intellectual no seio da sociedade brasileira, onde tem sido representada com brilhantismo no magisterio, na litteratura, no jornalismo, no commercio, na lavoura, na burocracia, na medicina, na engenharia, na advocacia, na pintura e na musica.
Num regimem democratico como é o nosso, diz o senador Juvenal Lamartine, é absurdo que se prive metade da população brasileira de exceser de seus direitos políticos, quando a mulher vem collaborando em todas as resoluções do paíz, agindo pela palavra, pela penna, em seu esforço constante e dedicado, para que se effective as grandes aspirações collectivas.
Isto posto é:
Considerando que o artigo 77, da lei 660, de 25 de outubro do corrente anno, que regula o serviço eleitoral do Estado, (ilegível) que “No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem distincção de sexo, todos os cidadãos que reunirem condições exigidas por lei.”
Considerando que, segundo prescreve o artigo (ilegível), do Decreto nº (ilegível), de (ilegível) de Novembro de 192(ilegível), o requerimento para o fim de alistamento eleitoral deve ser instruído com a prova de edade maior de 21 annos, renda que assegure a subsistencia e residencia no Municipio pelo praso de quatro meses ininterruptos.
Considerando que a requerente prova a edade de 21 annos com a certidão extrahida do registro civil e exibida as fls…, a renda e residencia com as fls. a fls. Estando as firmas dos mesmos devidamente reconhecida por tabellião pubblico, conforme exige o inciso 42, letra D, do artigo (ilegível) do referido decreto:
Considerando que fica expendido e (ilegível) dos autos:
Defiro o requerimento de Dona Martha Maria de Medeiros, e mando que se lhe insira o nome no alistamento eleitoral deste Municipio, expendindo-lhe o competente titulo.
Sem custas.
Acary, 10 de dezembro de 1927.
João Francisco Dantas Sales.
Conclusão
Marta Maria de Medeiros era tia do meu pai, mas todos a nós a chamávamos de “Tia Marta”. Era uma mulher forte, mas percebi que o preconceito que ela sofreu ao longo da sua vida, pela sua decisão de se tornar eleitora, a transformou em uma pessoa severa consigo mesma e muito sofrida. Outros reveses, como o brutal assassinato do seu irmão Jaco, crime que abalou Acari em 1952, a tornariam muito reservada a estranhos.
Nunca casou e nem teve filhos. Era extremamente católica, muito educada e, apesar de todos os reveses, era comunicativa com os amigos e os membros da família.
Por toda a vida se orgulhava de ter sido a primeira eleitora de sua amada região e isso eu a vi comentar várias vezes. Era um dos poucos momento que me recordo de ver o seu sorriso. Faleceu aos 81 anos, no dia 12 de setembro de 1984.
Três anos antes de sua morte, na época em que minha família tinha uma casa de veraneio na praia de Búzios, a cerca de 30 quilometros ao sul de Natal, aconteceu para mim algo muito especial. Eu me lembro bem que por por pura diversão e sem maiores intenções, gravei em antigas fitas K7 um longo papo que tive com Tia Marta.
Neste diálogo ela me contou praticamente toda sua vida. Desde a infância na “Rajada”, sobre seus pais, a pequena Carnaúba dos Dantas, sobre Acari, sua formatura na Escola Doméstica, o assalto dos cangaceiros de Chico Pereira a Fazenda Rajada (em fevereiro de 1927), a luta pelo voto, o rompimento político com a família Lamartine, a adesão a Mário Câmara, a prisão do irmão na Intentona de 1935, o assassinato do meu avô e as consequencias desta tragédia para nossa família.
Creio que grande parte da minha paixão pela história venha destas fitas que guardo com muito carinho.
Toda a luta de Tia Marta pelo seu voto causa imenso orgulho para a nossa família, sendo tudo isso muito positivo. Entretanto, apesar da falta que ela faz, fico feliz que ela não veja o quanto o título eleitoral, pelo qual tanto lutou, tenha perdido o seu valor em meio a tanta picaretagem política.