HISTÓRIA MILITAR DO RIO GRANDE DO NORTE – PARTE 2 – OS COMBATENTES

Felipe Nery de Brito Guerra – Publicada originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1927, Volumes XXIII e XXIV, páginas 228 a 239.

* Informação do Blog Tok de História – Como comentado anteriormente, busquei atualizar o centenário texto do Desembargador Felipe Guerra, sem, contudo, alterá-lo. Foi necessário também dividi-lo em duas partes, uma dedicada as lutas e outra aos combatentes potiguares, que será a nossa próxima publicação.. 

Entre seus filhos que mais se distinguiram por feitos militares é preciso citar que nos dois primeiros séculos da conquista, os Potiguares ILHA GRANDE, JACAÚNA, e o maior de tolos eles, Dom Antônio Felipe Camarão, chefe dessa valorosa tribo que, já em 1603, havia fornecido 800 guerreiros para pacificar os Aimorés, que se revoltaram na Bahia, e para dar fim aos Quilombos, que infestavam a região do Itapecuru, na mesma Capitania.

Retrato anônimo de Felipe Camarão, do século XVII, no Museu do Estado de Pernambuco– Fonte – Wikipedia.

Inquestionavelmente na grande crise da luta holandesa, o mais sério e grave perigo que ameaçou a integridade do Brasil, na frase de Silvio Romero, foi Camarão um dos mais valorosos generais, e o completo conhecimento que tinha, do teatro da luta, pode-se bem avaliar quão decisivo foi o papel que desempenhou na campanha. Não é esta a ocasião de escrever a vida de Camarão, já proficientemente estudada pelo desembargador Luiz Fernandes.

Cabe, porém, citar ligeiramente alguns episódios.

Camarão recebera ordens para estabelecer guerrilhas contra os holandeses entre Goiana e Itamaracá. “O terror que incutia o seu nome era tal que o general holandês Arciszewski (Krzysztof Arciszewski) saiu de propósito do Recife com mil soldados para destruir esse punhado de valentes guerrilheiros e prender seu chefe”.

Krzysztof Arciszewski- Fonte – Wikipedia.

Sobre o resultado da empresa disse o próprio general holandês: “Há mais de quarenta anos que milito na Polônia, na Alemanha e em Flandres, ocupando sem interrupção postos honrosos; mas só o índio Camarão veio abater-me o orgulho”.

Logo depois, seguiu Camarão para Alagoas guiando, através de 70 léguas de território dominado pelo inimigo, milhares de pessoas até Porto Calvo, onde se achavam as forças do general em chefe de então. Sob o comando do conde da Torre, auxiliou eficazmente a defesa da Bahia, recebendo ordens dele para percorrer os sertões hostilizando os holandeses. Portou-se de tal forma nessa excursão que, referindo se a ele, o inimigo chamou-o Anjo do extermínio.

Juntou-se depois as forças de Luiz Barbalho, que haviam desembarcado em Touros, no Rio Grande do Norte, após a derrota sofrida pela esquadra do conde da Torre, guiando essas forças, com Vidal e Henrique Dias, por ínvios sertões em luta aberta contra os inimigos até a Bahia, onde chegaram “a tempo de poder livra-la de ser atacada e tomada pelas forças do almirante Lichthart (Jan Cornelisz Lichthart), já as suas portas“. Os holandeses haviam seguido de porto a coluna sem alcança-la, vingando-se cruelmente ao matar aqueles que, doentes ou estropiados, não podiam acompanhar a heroica retirada que assim caminhou cerca de quatrocentas léguas.

Quadro que mostra os fortes na foz do Rio Paraíba, capturados pelo almirante Lichthart em 1634 – Fonte – Wikipedia.

Regressando a Pernambuco ordenou Vital a Camarão que viesse prosseguir novas hostilidades no Rio Grande do Norte e vingar, nesta parte do Brasil, tantas crueldades não só dos selvagens, como dos próprios holandeses, que se bem que cristãos de nome, mais bárbaros se haviam mostrado que os índios.

Camarão cumpriu o seu mandato muito além do que se podia esperar; e conseguindo chamar a si um grande número de índios que estavam com o inimigo, chegou a dominar todo o sertão do norte até os confins do Ceará”. Assim se exprimiu o visconde de Porto Seguro, citado pelo desembargador Luiz Fernandes, que muito judiciosamente acrescenta: Acreditamos que esse fato reduzindo a força dos Tapuias, poderosos aliados dos holandeses, foi uma das causas determinantes do seu enfraquecimento e consequente perda das suas conquistas“.

Frota de guerra holandesa – Fonte – Wikipedia.

Esse homem superior ao cansaço, lutando da Bahia ao Ceará, esse general de gênio que soube aliar o esforço e a disciplina no cumprimento do dever à coragem do soldado, à estratégia do índio, gozando da férrea resistência do selvagem, pode ser colocado ao lado de Caxias, como um dos fatores da integridade nacional, sem desdouro para este general que ocupa o ponto culminante na história militar e política do Brasil.

Não houve uma só ação, diz Fernandes Pinheiro, em que se pleiteasse a causa da liberdade, em que os batavos não sentissem o peso do seu braço, empalidecendo ao ouvir seu nome aqueles mesmos que nas águas do Zuiderzee haviam submergido os brasões de Castela.

O indígena Antonio Felipe Camarão (ilustração de autor desconhecido/Domínio público) e, ao fundo, carta escrita por ele a Pedro Poti – Imagens: Arquivo de Eduardo Navarro.

Hoje, para bem se poder aquilatar o valor da intervenção de Camarão na guerra holandesa é suficiente refletir que, em uma época de arraigados preconceitos de raça, de nobreza e de religião, ele representante de selvagens, sobre os quais a qualidade de “humanos” havia sido objeto de controvérsias, recebia excepcionais distinções não só da parte dos que se achavam à frente da luta como também da parte da Côrte da Metrópole.

Assim, por carta regia de 1633 foi-lhe conferido brasão d’armas, 40$ de soldo e patente de Capitão-mor de todos os Índios do Brasil. Depois o rei da Espanha também lhe conferiu o Hábito de Cristo e o tratamento de Dom, e mais tarde foi recompensado cora a comenda lucrativa, na Ordem de Cristo dos Moinhos da Vila de Soure, em Portugal, com que eram galardoados os heróis lusitanos que se distinguiam por serviços em guerras na África, havendo excepção para Camarão, conforme diz o visconde de Porto Seguro: “Por faltarem serviços em África, ocorreram dúvidas e foi necessário dispensa da Cúria, de modo que a comenda só chegou a realizar-se a 3 de maio de 1641”.

De volta de suas excursões guerreiras, a junção de Camarão aos chefes da guerra era recebida como um desafogo. A sentinela, diz o historiador Southey, que teve a fortuna de anunciar a vinda de sete índios do regimento de Camarão, que traziam aviso da próxima chegada do seu comandante, deu Vieira dois escravos de alvissaras..

O indígena Antonio Felipe Camarão (ilustração de autor desconhecido/Domínio público) e, ao fundo, carta escrita por ele a Pedro Poti – Imagens: Arquivo de Eduardo Navarro.

O Brasil ainda está em dívida para com esse seu glorioso filho: falta-lhe um monumento digno, capaz de exteriorizar a gratidão nacional para com o mais genuíno representante da raça aborígene.

E Portugal? Os holandeses chegaram a dominar até Sergipe. A política portuguesa pensou seriamente — e manifestou em acordo — reconhecer o domínio holandês. Firmado essa dominação, teria a colonização portuguesa resistido a pressão holandesa do norte para o sul; a pressão espanhola ao sul; as ambições sas?

E se a bela língua de Camões se estende hoje a uma região cem vezes maior que Portugal, e é falada por uma população cinco vezes maior do que a do seu país de origem, deve a expulsão dos holandeses do Brasil, para qual o gênio de Dom Antônio Felipe Camarão teve preponderante e decisivo valor. Portugal acha-se assim também em dívida para com o grande Poti.

Dona Clara Camarão era mulher do índio potiguara Antônio Felipe Camarão (na gravura da direita), herói decisivo na guerra dosbrasileiros e portugueses contra o invasor holandês. Fonte – https://auniao.pb.gov.br/noticias/caderno_diversidade/clara-camarao

Dona Clara Camarão, legitima esposa de Felipe Camarão, tomou parte nas lutas e acompanhou seu marido nas horas de extremo perigo, batendo-se denodadamente ao seu lado. Da grande emigração de Mathias de Albuquerque, diz a história: “Nesta penosa emigração distinguiram-se pelos seus grandes feitos militares Felipe Camarão e sua mulher Clara Camarão”.

Na revolução do 1817, como já ficou dito, não foram os feitos guerreiros que imortalizaram a gloriosa tentativa. Assim diz o Capitão Alípio Bandeira no seu completo estudo histórico — O Brasil Heroico de 1817 — “o que constitui a gloria dos heróis de 1817 é o esforço valoroso com que trabalharam pela nossa autonomia política, são as reformas verdadeiramente liberais que eles tentaram implantar no governo que estabeleceram, são a lisura e o desprendimento, a lhaneza e a tolerância, em suma — a honesta fraternidade com que invariavelmente procederam”.

Depois de abafado o movimento, nenhuma revolução no Brasil fez tantos mártires quanto a de 1817. Segundo a citada obra do Capitão Alípio Bandeira, foram fuzilados quatro patriotas, enforcados nove, supliciados em horrorosas prisões por mais de três anos e meio cerca de trezentos, e por mais de um ano cerca de duzentos!

Do Rio Grande do Norte, além do nobre chefe André de Albuquerque, estúpida e barbaramente assassinado em Natal, além de Miguelinho, o puro e evangélico mártir, ambos riograndenses, fornece a história numerosa lista de patriotas martirizados nos cárceres, sendo talvez João Francisco Fernandes Pimenta, com o ardor de seus vinte anos, a encarnação mais forte e mais ativa do guerrilheiro e lutador que, nos sertões do Rio Grande do Norte, durante meses, zombou de forças legalistas que o perseguiam.

Bênção das bandeiras da Revolução de 1817, óleo sobre tela de Antônio Parreiras– Fonte – Wikipedia.

Estudando a história da revolução de 1817 no Rio Grande do Norte, fica-se certo de que se o governador de então, José Ignacio Borges, talvez inclinado aos ideais da revolução, tivesse os mesmos sentimentos ferozes e sanguinários daqueles que dirigiram a reação em Pernambuco e Bahia, muito mais elevado teria sido o número dos mártires riograndenses.

Considerando que grande número de pessoas de destaque daquele tempo, no sertão do Rio Grande do Norte, principalmente em Portalegre, Patu, Martins, Pau dos Ferros, Apodi e Campo Grande, estiveram implicados na revolução, em comunicação direta com os chefes do movimento em Recife, é de supor, com bons fundamentos, que duas causas concorreram para diminuir o número daqueles mártires riograndenses.

A primeira foi o espirito de benevolência, de camaradagem e amizade reinante entre os sertanejos do Rio Grande do Norte, naquela época principalmente, oriundos de pequeno número de famílias, já então ligados por entrelaçamentos e afinidades, formando quase que uma só família: não houve delações; o esforço de cada um e de todos foi salvar o amigo das garras tigrinas das Juntas Militares.

O Carmelita Miguel de Almeida e Castro, conhecido como Frei Miguelinho, era potiguar de Natal e teve participação ativa na revolta de 1817 em Pernambuco. O quadro mostra seu julgamento em Salvador, onde foi condenado a morte pelo fuzilamento e a pena cumprida no dia 12 de junho de 1817. É nome de cidade em Pernambuco e muito cultuado no Rio Grande do Norte– Fonte – Wikipedia.

A segunda causa deve ser procurada na coragem nobre e santa de Miguelinho, em seu elevado espirito.

Sabendo que no dia seguinte seria encarcerado, não se abateu, não se entregou a inúteis fraquezas; ou a noite queimando papeis e documentos capazes de comprometer a sorte de seus amigos. Ao entrar em casa disse Á sua irmã em lagrimas, as memoráveis palavras: “Mana, nada de choros; estás órfã. Tenho enchido os meus dias. Logo virão buscar me para a morte; entrego te à vontade de Deus, nele terás um pai que não morre mais aproveitemos a noite. Imita-me. Ajuda-me a salvar a vida de milhares de desgraçados”.

Miguelinho durante alguns anos fora professor no Seminário de Olinda. Muitos vigários do Rio Grande do Norte haviam sido seus discípulos e, naturalmente, continuavam amigos do mestre. O seminarista José Ferreira da Motta, de Portalegre, e que então cursava o seminário de Olinda, correspondeu-se diretamente com seu pai, capitão José Ferreira da Motta. Seguiu imediatamente, disfarçado em boiadeiro a entender-se com os chefes em Recife, o sargento Mór Manoel Fernandes Pimenta. Teve assim a revolução, que depois relacionou-se com os chefes do movimento em Natal, fortes ramificações pelo sertão. Não foram relativamente numerosos os sertanejos que padeceram nos cárceres. É de supor que a noite de vigília de Miguelinho, queimando papeis, o amargurado Horto da vítima votada ao sacrifício, tenha redimido muito sofrimento e evitado muita lagrima em seu torrão natal.

Quadro de um combate de forças de cavalaria, como os que ocorreram durante a Guerra do Paraguai – Fonte – Wikipedia.

Durante a guerra do Paraguai foram inúmeros os contingentes enviados do Rio Grande do Norte. Muitos de seus filhos lá cumpriram o seu dever, derramaram o sangue, perderam a vida. Entre os riograndenses, já mortos (em 1927), que ocuparam postos de destaque no Exército, acham-se:

– José Xavier Garcia de Almeida, engenheiro militar e brigadeiro José Correia Telles, natural do Assú, praça em 1856, fez toda a campanha do Paraguai a começar pela do Uruguai. Cavaleiro da Ordem de Aviz, recebeu a medalha argentina da comemoração da guerra. Fez parte da junta governativa de Alagoas em 1891, Coronel em 1894, foi reformado como general em 1897 e faleceu no mesmo ano.

Nota sobre José Pedro de Oliveira Galvão após a Guerra do Paraguai.

– José Pedro de Oliveira Galvão, praça em 1862. coronel efetivo em 1895. Fez a campanha do Paraguai. Senador pelo Rio Grande do Norte, por seis anos, faleceu em 1896.

Coronel Fonseca e Silva, anos após a Guerra do Paraguai– Fonte – Wikipedia.

– Francisco Victor da Fonseca e Silva, natural de São Gonçalo, praça em 1865, reformou-se com a graduação de general de divisão, vindo a falecer em 1905. Fez também a campanha do Paraguai. Como comandante da força policial da então Província do Rio de Janeiro foi um dos auxiliares da revolução de 15 de novembro de 1889. Foi deputado à Constituinte Republicana pelo Estado do Rio de Janeiro, e, ainda, deputado da primeira legislatura da Câmara Federal pelo mesmo Estado. Eleito, depois, deputado pelo Rio Grande do Norte, representou este Estado na quarta e quintas legislaturas.

– Antônio da Rocha Bezerra Cavalcante, fez com distinção, a campanha do Paraguai, falecendo no posto de general, reformado.

Foto de combatentes da Guerra do Paraguai. O terceiro sentado da esquerda para a direita, é o Coronel Joca Tavares e seus auxiliares imediatos, incluindo José Francisco Lacerda, mais conhecido como “Chico Diabo” (terceiro em pé, da esquerda para a direita), que matou o ditador paraguaio Solano Lopez. Imagem: Wikipedia, Domínio Público. In: Salles, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2003. ISBN 85-333-0264-9 (p.180)

– Francisco de Paula Moreira. Fez a campanha do Paraguai. Tomou parte na organização republicana do Estado, como deputado à Constituinte. Faleceu no posto de Coronel, reformado.

Antônio Florêncio Pereira do Lago

– Antônio Florêncio Pereira do Lago. Foi um distintíssimo rio-grandense-do-norte que morreu no posto de coronel, reformado. Nascido em 1827, bacharelou se em ciências físicas e matemáticas e pertenceu ao corpo do Estado-Maior de primeira classe. Oficial da Ordem da Rosa, cavaleiro da Ordem de Cristo e da de São Bento de Aviz, foi condecorado, ainda, com a medalha da campanha do Uruguay em 1851 e com a da guerra do Paraguai. Exerceu com brilho comissões do Ministério da Guerra e do da Agricultura. Por ordem do Governo fundou a colônia do Alto Uruguai.

Escreveu várias obras e trabalhos oficiais, entre os quais “Relatório dos estudos da comissão exploradora dos rios Tocantins e Araguaia”. Ilustre e esquecido brasileiro que honra a sua pátria e é uma legitima glória de sua corporação. O visconde de Taunay traçou o retrato de sua personalidade: “Lago, isto é, a prudência, a força, a reflexão, o sentimento apurado de dever; Lago, a personificação do bom senso, mas, ao mesmo tempo, a tenacidade levada ao extremo da teima. Alto, gordo, então simples capitão, mas com proporções para ser general, tem ele fisionomia, franca e simpática. Possui inteligência, ilustração e, sobretudo, consciência. Reto e leal, é amigo as deveras, mas também inimigo decidido”.

No posto de capitão de engenheiros fez parte do Corpo de Exercito que seguiu para Mato Grosso, e que escreveu a heroica e dolorosa pagina que é a Retirada de Laguna. O visconde de Taunay escreveu que a expedição de Mato Grosso escapou de completo aniquilamento devido á energia e ao estoicismo de Pereira do Lago que, nos momentos mais cheios de angustia, perigo e desalento, conseguia com seu exemplo, sua calma e coragem, levantar o espirito de todos. “Oficial do maior valor moral, nunca foi apreciado na medida de seus méritos”, ainda repetia Taunay, em 1896, em seu livro “Viagens de Outrora”.

Pereira do Lago faleceu na idade de 65 anos, no posto de coronel, reformado, 1º de janeiro de 1892.

– Padre Amaro Theó Castor Brasil, que seguiu de Campo Grande (RN) com mais dois irmãos e dois parentes para o Paraguai, onde fizeram toda a campanha como Voluntários da Pátria, e voltaram como oficiais. Um deles, José Lucas Barbosa prestou depois valiosos serviços nas3 lutas e na organização do Acre, onde foi comandante da Guarda Nacional.

– Ulysses Olegário Lins Caldas e João Percival Luiz Caldas, eram irmãos, ambos do Assú, seguiram como Voluntários da Pátria para o Paraguai. O primeiro, ardente e destemido jovem de 18 anos, encetou seus os na campanha como herói, e assim continuou até cair fulminado por uma bala no coração, nas avançadas de Curuzu, em novembro de 1866. Galgando trincheiras inimigas, arrebatando canhões, morreu pouco depois de completar vinte anos e alcançara o posto de tenente e por distinção o Hábito de Cavalleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. A ordem do dia do Exército em campanha, de 4 de setembro de 1866, referindo-se ao assalto de Curuzu, citando o nome de alguns oficiais, diz: “…que quais leões, se lançaram sobre as baterias inimigas, chegando ao ponto de subir sobre sua artilharia, como fez este último oficial, com uma intrepidez que a todos surpreendeu”. Este último oficial, que “a todos surpreendeu com sua intrepidez” era, na citação, Ulysses Caldas.

O Barão de Porto Alegre liderando as tropas em Curuzu, pintura de Victor Meirelles– Fonte – Wikipedia.

– Alexandre Baraúna Mossoró. Filho da cidade de Mossoró, humílimo e obscuro herói, soldado da quinta companhia do terceiro batalhão de infantaria, fez a campanha do Uruguai. Tomou parte no assalto de Paissandu. Ferido, continuou a bater-se encarniçadamente. Novo ferimento lhe vasou uma vista; mandam-no retirar-se do combate e ele continua a bater-se. Terceiro ferimento inutiliza-lhe o braço direito. Empunha então a arma com a mão esquerda, pois “com o canhoto ainda pôde dar uma lição aos gringos“, conforme grita ao comandante; escala a trincheira e cai lutando ainda, do lado oposto, em meio dos inimigos, sendo então morto! O seu comandante cerca de veneração o cadáver do herói. Ao espirar, vêm-lhe à lembrança sua mãe e seu torrão natal: “minha mãe… viva o Mossoró!…” Indômito filho do povo não menos herói, mais infeliz, porém, do que o corneta Jesus ainda não teve a consagração condigna, nem mesmo da poesia, a imortalizar lhe o nome!

– Ponciano Souto, natural do Assú, Voluntário da Pátria que fez toda a campanha do Paraguai, voltando como capitão, e faleceu em 1882, em Bananal, São Paulo, como tabelião vitalício.

João Mafaldo, do Martins, alferes, morto no assalto à cidadela de Canudos.

Nota sobre o batalhão de potiguares na Guerra de Canudos, no Jornal “A República”, 10 de dezembro de 1897.

José da Penha, de Angicos, sincero republicano, escritor, polemista e tribuno, absorvido e sacrificado, infelizmente, pela politicagem que o vitimou no posto de capitão, a 19 de fevereiro de 1914, em Iguatu (Ceará).

Theophilo Guerra, jornalista, e cronista das secas. Quando cadete em Minas Geraes, levantou uma “questão militar,’ não se sujeitando, em serviço local, ao cominando de oficial de polícia. Submetido, então, a conselho de guerra, foi absolvido. Faleceu no posto de alferes..

São esses os traços gerais da história militar do Rio Grande do Norte, que poderia comportar largo desenvolvimento, mas não é possível em ligeira “introdução” nomear todos aqueles, numerosos, que no cumprimento do dever, souberam honrar a Pátria.

As figuras culminantes desta história são — Camarão, Pereira do Lago e o obscuro soldado Baraúna Mossoró. Sofredores, incansáveis, superiores ao desalento e aos revezes, tenazes na luta, devotados, estoicos, são bem tipos representativos desta população martirizada pelas secas, oferecendo sempre sobre humana e tenaz resistência a desapiedados golpes da natureza, sem abandonar o ingrato e querido solo, que, afinal, será conquistado.

FELIPE GUERRA.

Agosto—1920. (Socio effectivo)

A MÃO FORTE DA INQUISIÇÃO EM TERRAS POTIGUARES

Rostand Medeiros e Mozart Xavier

Os termos “Inquisição” ou “Tribunal do Santo Ofício” são palavras que até hoje nos lembram duma época de iniquidade, terror e medo. Onde a Igreja Católica extrapolou em todos os aspectos possíveis, a sua atuação como propagadora da fé e carrega até hoje esta nódoa negra na sua secular história institucional.

Com uma atuação muito forte na Europa, a Inquisição não deixou de tocar as terras do Brasil durante o nosso período colonial e a pequena Natal, na incipiente Capitania do Rio Grande, foi visitada pelos homens que doutrinavam através do terror.

Pesquisas realizadas apontam que os inquisidores encontraram nestas terras banhadas de sol, casos de eclesiásticos envolvidos em práticas proibidas a eles pela Santa Sé e observaram o comportamento dos moradores desta pequena e irrelevante capitania.

O Padre que fez Propostas Indecorosas a Sete Mulheres em Natal

O antropólogo baiano Luiz Mott, ao realizar uma pesquisa nos arquivos da Torre do Tombo, em Portugal, encontrou inúmeras denúncias remetidas ao Santo Ofício a partir do Brasil, algumas destas se referiam à Capitania do Rio Grande, atual estado do Rio Grande do Norte.

Em um artigo intitulado “A inquisição e o Rio Grande do Norte”, o antropólogo mostra que Natal, além de ser o principal núcleo populacional da Capitania, era o local onde habitavam o maior número de pessoas de cor branca, fazendo com que a pequena urbe fosse uma parada obrigatória para os religiosos da Santa Inquisição.

Para desgosto destes rígidos homens da doutrinação da fé católica, uma das primeiras ocorrências averiguadas na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, Matriz da capital do Rio Grande, tinha como acusado um religioso, o Padre Manuel Cardoso Andrade onde ele teria sido denunciado por ter feito propostas indecorosas a sete mulheres e 1750.

Uma das mulheres, Maria José de Barros, afirmou que o referido sacerdote ordenou que a mesma que fosse buscar o seu atestado de confissão quaresmal na casa do acusado. A denunciante afirma que o religioso, já se encontrando em sua residência, teria prometido fornecer quantos atestados à denunciante desejasse, desde que tivesse com ele o número de cópulas equivalentes em número de atestados.

O mesmo padre foi acusado de ter possuído algumas escravas, dentre elas a crioula Rita, que afirmou ter tido contato carnal com o acusado duas vezes. Pesou sobre o padre a acusação do mesmo ter feito “cantadas” a três mulheres: Joana Mulata, Ana Maria Crioula e Lucrécia, esta última de nação Angola.

Apesar da preferência do religioso por mulheres negras, o mesmo foi igualmente denunciado pela tentativa de persuadir mulheres brancas. Entre estas está o relato de Teodósia Maria, esposa de certo Capitão Dias, que acusou o Padre Cardoso de ter feito “propostas indecorosas” no momento da confissão.

Como as atitudes do Padre Cardoso contra as mulheres, brancas ou não, provavelmente eram de conhecimento da população da pequena urbe, não é difícil deduzir a repercussão que ocorreu quando o mesmo foi denunciado por ter apertado um dos dedos, provavelmente com intenções lascivas, da jovem Josefa, filha do então Capitão Albuquerque Maranhão, descendente do primeiro comandante da Fortaleza dos Reis Magos. Como a moça em questão pertencia a uma família muito influente e poderosa, o acusado se viu diante das garras da Inquisição.

Contudo, o Padre Manuel Cardoso Andrade não fora condenado, pois falecera em 1762, antes das investigações do Santo Ofício ser concluídas.

Os Padres que Atacavam na Hora da Confissão

Outro religioso envolvido com os convites para as práticas de torpezas foi o Frei Inácio de Jesus, um Carmelita reformado, da Província de Pernambuco e morador na Freguesia d e São João Baptista do Assú.

Denunciado em 1752 por Isabel Pereira, mulher casada, onde afirmou ter o acusado aproveitando-se da pouca iluminação da igreja e ter feito nela uma pulsão (masturbação) na denunciante, que assombrada e com medo silenciou diante da agressão sexual.

Neste caso encontramos um agravante, no dia seguinte ao ato o Frei Inácio concedeu a confissão a Isabel Pereira e ainda lhe deu a comunhão.

Apesar da denúncia, o Santo Ofício arquivou o processo, mesmo com a confirmação do agravante.

Outro caso foi o que envolveu padre José Inácio de Oliveira, então residente da Freguesia de São João Baptista do Apody, localizada já nos limites do Ceará.

Pesa em sua acusação o fato de ter tido atos pecaminosos com todas as mulheres que vinham para fazer a confissão.

Contra o “Corpo Fechado” 

A maioria das denúncias contra eclesiásticos está restrita ao âmbito sexual, entretanto essas práticas não se limitavam apenas a este campo.

Houve uma denúncia pela utilização de representações ou símbolos proibidos pela igreja; no ano de 1765, na Freguesia de Nossa senhora do Carmo de Inhamus, no Ceará, um cidadão chamado Pedro Álvares Correia foi acusado de portar em uma pequena bolsa que trazia no pescoço “patuás de mandingas”. Esta bolsa foi doada, segundo o acusado, pelo Padre André Sapúlveda, da Freguesia do Apodi.

A denúncia teria partido de outro religioso, o Padre José de Freitas Serrão que chegou a afirmar o motivo do uso destas peças era utilizado para proteger as pessoas que estavam constantemente adentrando o sertão, que neste período era uma área muito violenta e os apetrechos eram utilizados para “fechar o

corpo” contra tiros e facadas.

Roupas Indecorosas em Portalegre

Outras denúncias apontam problemas de comportamento dos religiosos e dos seus fiéis.

Em um artigo escrito em 2004, o historiador Francisco Firmino Sales Neto, mostra em seu artigo “Pelos ásperos caminhos do deserto: Um estudo das Visitas Episcopais a Capitania do Rio Grande”, que em 1779 o visitador Joaquim Monteiro da Rocha fez severas críticas ao comportamento dos religiosos que respondiam pela Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

Desejava o inquisidor que fosse alterado o comportamento dos homens que propagavam a fé católica na pequena Natal, servindo de exemplo para o resto da população. Em suas lamuriosas críticas o visitador comenta “É digno de chorar-se com lágrimas de sangue a pouca reverência, com que se assiste nos templo, e a santa missa, conversando, e tratando matérias profanas, como que estivessem na praça. (…) E os sacerdotes são os primeiros que se profanam a santidade do lugar sagrado, conversando, tratando com menos reverência às coisas sagradas, e provocando aos mesmos seculares, a quem deviam dar bom exemplo”.

Nesta mesma época, no atual município serrano de Portalegre, no Oeste do Estado, os membros do Santo Ofício apontaram desvios de seus habitantes brancos e negros.

Estes encontraram mulheres da pequena vila, que não se vestiam da forma considerada correta. O Bispo Dom José Fialho repreendia essas mulheres vestidas de “invenções diabólicas” a se absterem “dos tais vestidos somente usando trajes que mostrem composição e respeito”. O Bispo ameaçava afirmando que “se assim não estão trajadas, usaremos dos meios que nos parecer necessário para evitar as demais lascívias das composições e também advertimos aos senhores de escravos não consintam que estas andem despidas como vulgarmente costumam mais sim cobertas com aquele ornato que seja bastante para encobrirem as provocações da sensualidade”.

Até o culto a São Gonçalo, santo muito popular no Brasil colonial tinha na Freguesia de São João Batista da Vila de Portalegre uma versão deturpada, causando indignação no reverendo visitador, ao que diz: “É abominável a falta de religião que se observa em alguns dos fregueses desta freguesia, e muito de se estranhar a indiscrença devoção que com, o pretexto frívolo de piedade, costumam festejar o Senhor São Gonçalo em suas casas, itindo nelas pessoas de um, e outro, sexo, formando danças sem advertirem que semelhantes congressos não podem resultar serviço a Deus e culto ao glorioso santo”.

Contra o Consumo de Jurema em Arês

Já em Arês, que em 1760 possuía uma população de 949 almas, foi possível identificar um cotidiano religioso bem diverso do encontrado na capital.

A preocupação dos visitadores que estiveram na Freguesia de São João Batista da Vila Nova de Arês era com o comportamento indígena, “porque sendo os índios naturalmente descuidados”, como colocou em documento o visitador, “deve o pároco aplicar maior desvelo em doutriná-los”.

Neste documento o visitador dá fortes indicações para que o vigário local repreenda a prática do ritual indígena, conhecida por “Jurema”, ao que diz: “considerando que estes pobres índios, e neófitos necessitam de dobrado cuidado, e vigilância no pároco, para conservá-los na observância dos dogmas, ritos católicos, e apartá-los de algumas devoções filhas de sua brutal e gentílica natureza a que são propensos, e inclinados no que muito lhe encarregamos a consciência de seu pároco principalmente para que não pratiquem a sua célebre, e antiga bebida chamada jurema que constantemente bebem em lugares retirados, por ser bebida forte ficam embriagados, e alienados do juízo, e fingem visões indignas de católicos, cujos erros se devem extinguir quanto couber nas forças de um diligente pároco”.

As Possíveis Causas

Dentre algumas explicações para se entender essas transgressões, podemos apontar a distância que havia das regiões mais importantes e, portanto, mais populosas da colônia com as áreas mais distantes. A consequência disso foi à falta de fiscalização por parte da igreja, no que se refere à punição de clérigos que de algum modo transgrediram contra os seus princípios enquanto lideres espirituais.

No caso de uma região pouco habitada e muito afastada dos centros populacionais, como o sertão, o mecanismo de denúncias funcionava assim: qualquer indivíduo podia entrar com uma denúncia a um religioso, que enviava o relato dos fatos em caráter de urgência ao “Comissário” mais próximo, que despachava uma carta secreta para Lisboa na primeira caravela que estivesse de regresso à Europa. Acredita-se que existia uma rede de espiões que tentavam cobrir toda a colônia, que convenhamos era uma tarefa muito difícil.

Outro fator que pode ser levado em consideração para se compreender a ousadia destes “Homens de Deus”, se refere ao prestígio que esses religiosos tinham conseguido junto aos contingentes populacionais.

Mesmo que a grande maioria deles não tivesse um conhecimento teológico apurado, gozavam de certo cabedal, uma vez que a sua palavra era legitimada pela população, considerada por esta como a do próprio Deus. O Padre, uma vez aceito como representante do criador, tinha todo o direito de interferir na vida dos habitantes dos locais em que estavam.

Podemos somar a esse fator outra questão; a falta de conhecimento que as pessoas tinham da teologia católica, principalmente as mulheres. Estas não possuíam praticamente nenhuma instrução e quando a tinham se limitava ao âmbito das práticas domésticas. Essa falta de conhecimento as tornava “presas” fáceis para os padres mais audaciosos, que aproveitando o cair da noite, utilizavam a penumbra dos lampiões das igrejas para persuadir as moças e as senhoras a praticarem com eles os mais libidinosos desvios da conduta cristã.

Esse tipo de crime era conhecido como Solicitação e a sua denúncia ficava registrada no Caderno dos Solicitantes. O termo canônico para este pecado era “solicitatio ad turpia”.

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